Introdução
A Entamoeba histolytica é um protozoário amebóide associado a infeções intestinais e extra-intestinais. A infeção ocorre por ingestão de cistos maduros presentes em alimentos ou água contaminados por fezes. Por fenómenos de excistação, no intestino delgado, formam-se trofozoítas que migram para o cólon. Os trofozoítas podem continuar o ciclo de vida no lúmen intestinal sem provocar infeção (portadores assintomáticos) ou podem invadir a mucosa intestinal e/ou disseminar por via hematogénea ou linfática, sendo responsáveis por abcessos hepáticos, esplénicos e cerebrais, derrame pleural e pericárdico. A amebíase é mais frequente nos países em desenvolvimento, sobretudo nas regiões da América Central, América do Sul, Ásia e África. Nos países desenvolvidos ocorre em imigrantes de países em desenvolvimento, viajantes/turistas de zonas tropicais, homossexuais e indivíduos institucionalizados.1,2
Caso Clínico
Doente do sexo masculino, 36 anos de idade, autónomo, com antecedentes de asma na infância, rinite alérgica e medicado com inalador de fluticasona e salmeterol em SOS desde há 1 ano. Referia consumo tabágico (10 unidades maço/ano), consumo alcoólico inferior a 12g álcool/dia e história de viagem à América do Sul (República Dominicana), há 2 anos, com visita a áreas rurais. Sem consumo de produtos lácteos não pasteurizados, residente em habitação com água canalizada, sem animais de estimação e sem contacto com outras pessoas doentes.
Após acidente de bicicleta com traumatismo perineal minor, iniciou dor e edema escrotal assimétrico, predominante à direita, e edema perineal. Recorreu a consulta de urologia, que realizou ecografia escrotal descartando alterações genitais para além de sinais inflamatórios cutâneos, sendo medicado com doxiciclina e anti-inflamatório não esteroide. Após 3 semanas, por ausência de melhoria clínica, recorreu ao Serviço de Urgência onde foi observado por cirurgia geral que identifica um abcesso nadegueiro à direita, submetido a drenagem, tendo alta medicado empiricamente com amoxicilina e ácido clavulânico.
Regressa dois dias depois por agravamento rapidamente progressivo, sendo internado no Serviço de Cirurgia por suspeita de Gangrena de Fournier. Não referia queixas digestivas, respiratórias e urinárias e negava febre.Durante o internamento desenvolve placas edematosas não eritematosas, pouco dolorosas na região extensora dos antebraços e perna esquerda, concomitantemente surge artrite da tibiotársica direita e progressivo agravamento do edema escrotal e perineal com áreas equimóticas e descolamento epidérmico, sem necrose.Analiticamente apresentava eosinofilia crescente (admissão com 670 μL, 9%, atingindo um máximo de 1980 μL, 14,8%), sem leucocitose, trombocitopenia (85000 μL), Proteína C reativa normal à admissão com ligeira subida (2,4 mg/dL), DHL e mioglobina normais.Realizou TC pélvica que revelou celulite da região perineal e raiz da coxa direita sem sinais de envolvimento fascial e sem outras alterações. Perante este quadro, a hipótese de Gangrena de Fourniertornava-se menos provável, sendo pedida observação por Medicina Interna que, perante a possibilidade de infeção estreptocócica com eritema nodoso, alargou espectro antibiótico após novas colheitas microbiológicas (hemoculturas, coproculturas e urocultura), realizou estudo virológico, imunológico e estudo imagiológico tóraco-abdomino-pélvico. Foi também pedida observação por dermatologia que realizou biópsias incisionais da região perineal e das placas edematosas na face extensora do antebraço direito.
O estudo microbiológico foi negativo, tal como as serologias para sífilis, vírus da imunodeficiência humana 1 e 2, vírus das hepatites B e C, vírus de Epstein-Barr, Brucella spp, Ricketsia spp, Toxocara spp, Trichinella spiralis, Ticaria spp, Strongiloides stercoralis, Schitosoma spp, Echinococcus spp, Taenia solium, Cisticercose e Fascíola hepática. O estudo imunológico, nomeadamente anticorpos anti-nucleares (ANAs), anti-citoplasma dos neutrófilos (ANCA), anti-cardiolipinas, fator reumatóide, complemento, anticoagulante lúpico e Enzima Conversora da Angiotensina (ECA), foi negativo. O estudo imagiológico revelou derrame pleural bilateral, incipiente à direita e de pequeno volume à esquerda, densificações subpleurais em vidro despolido de predomínio basal, sem outras alterações a nível pulmonar, sem alterações a nível abdominal e pélvico, exceto ligeira densificação do tecido adiposo perineal.
Após exclusão de causa infeciosa bacteriana, foi discutido com Dermatologia que considerava a possibilidade de tratar-se de Celulite Eosinofílica. Como tal foi iniciada corticoterapia com metilprednisolona 40mg id oral (ao 11º dia de internamento), permitindo uma progressiva melhoria clínica e analítica com redução da eosinofilia e normalização da trombocitopenia.
Posteriormente, a biópsia das lesões do períneo e antebraço revelaram paniculite eosinofílica com vasculite associada e, na derma mais superficial, infiltrado inflamatório rico em eosinófilos peri-vascular e peri-anexial (Fig 1). Assume-se então o diagnóstico de Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte (Síndrome de Churg-Strauss) ANCA negativa, cumprindo 4 critérios da classificação da American College of Rheumatology3: asma, eosinofilia no sangue periférico >10%, infiltrados pulmonares, documentação histológica de vasculite e infiltrado eosinofílico extra-vascular.Por forma a excluir atingimento de órgãos major, foi ainda realizado ecocardiograma e estudo Holter que não mostrou alterações, estudo funcional respiratório que foi normal e broncofibroscopia (BFO) que mostrou secreções mucopurulentas acastanhadas dispersas bilateralmente, sem outras alterações, sendo colhido Lavado Bronco-Alveolar (LBA) para microbiologia, pesquisa de Mycobacterium tuberculosis e imunofenotipagem. Esta última revelou celularidade aumentada com predomínio de macrófagos, a maioria com inclusões citoplasmáticas associadas a tabagismo; 2% linfócitos, 1% neutrófilos, sem eosinófilos; CD4 33%, CD8 61%, Razão CD4:CD8 0.541; sem critérios de alveolite.Não apresentava atingimento neurológico sob a forma de neuropatia periférica e atingimento renal, uma vez que a função renal e sedimento urinário com pesquisa de eosinófilos na urina foram normais. A telerradiografia das mãos e calcâneos e a TC dos seios nasais não mostraram alterações.
Manteve imunossupressão com prednisolona 0,5mg/kg/dia e iniciou azatioprina (AZA) 100mg id oral, com objetivo de redução de corticoide. O doente evoluiu favoravelmente com importante redução do edema escrotal e perineal, surgindo novamente trombocitopenia, que foi interpretada como iatrogénica à AZA, sendo suspensa por ausência de atingimento de órgão major. O doente teve alta clínica ao 25º dia de internamento, orientado para consulta externa de doenças auto-imunes.
Entretanto, o resultado microbiológico do LBA identificou, no exame parasitológico a fresco e com coloração, alguns trofozoítas, cistos imaturos e fenómenos de excistação compatíveis com E. hystolitica. Considerou-se assim tratar-se de uma infeção pulmonar por E. hystolitica com vasculite associada, sem abcessos hepáticos ou pulmonares. Foram repetidas as coproculturas, que mais uma vez foram negativas, e inicia metronidazol 750mg tid oral durante 14 dias, com redução progressiva de corticoide. Progressivamente melhorou das lesões cutâneas perineais com resolução completa das mesmas e verificou-se resolução dos infiltrados e do derrame pleural. Após tratamento com metronidazol repetiu BFO com LBA não se isolando nem identificando qualquer microrganismo.
Discussão e Conclusão
Após a ingestão de cistos de E. hystolitica, a invasão do intestino grosso por trofozoítas pode demorar dias a anos e caracteriza-se por febre, dor abdominal e diarreia sanguinolenta. Contudo, 90% dos doentes permanecem assintomáticos.4 Os abcessos hepáticos são a manifestação extra-intestinal mais comum, seguindo-se a amebíase pleuropulmonar, que ocorre em 2 a 3% dos casos de amebíase invasiva.5 A infeção pleuropulmonar pode desenvolver-se por vários mecanismos: inalação direta de partículas contaminadas; extensão hepática direta com atingimento pleural (formação de derrame ou empiema) ou com atingimento pulmonar (consolidações, abcessos pulmonares ou fístulas bronco-hepáticas); e, por último, por disseminação hematogénea ou linfática com ponto de partida intestinal ou hepático, com formação de abcessos múltiplos ou únicos e áreas de consolidação localizadas ou difusas. Neste caso, suspeitamos que a primo infeção tenha ocorrido aquando da viagem à República Dominica com visita a áreas rurais e que posteriormente tenha ocorrido disseminação hematogénea ou linfática a partir do trato gastrointestinal, apesar da negatividade das coproculturas. Sabe-se que o exame direto de fezes é pouco específico e tem uso limitado no diagnóstico de amebíase extraintestinal, dado que cistos e/ou trofozoítas estão presentes apenas entre 15 a 33% dos doentes com amebíase extraintestinal.5
A infeção por E. hystolitica, confirmada pela presença de trofozoítas na BFO apresentou-se inicialmente sob a forma de vasculite. As vasculites são patologias heterogéneas e multiorgânicas que se caracterizam por inflamação e/ou necrose de vasos sanguíneos. Frequentemente são de causa autoimune, porém podem ser secundárias, por exemplo, a infeções víricas, bacterianas e parasitárias por três diferentes mecanismos: lesão direta do endotélio e estruturas vasculares por patogéneos; formação de imunocomplexos com ativação do complemento; e por ativação de células B e T. Na literatura estão descritos casos de vasculite secundária a infeções por Toxocara canis, Cysticercus spp, Angiostrongylus spp e Loa loa.6 Relativamente ao prognóstico deste tipo de situações, depreende-se que a ausência de abcessos, empiema ou outras complicações major sejam fatores de bom prognóstico.
Quanto a outras causas de eosinofilia e diagnósticos diferenciais neste caso clínico, o resultado da biopsia cutânea, apesar de inicialmente apontar para um diagnóstico erróneo, foi fulcral para a orientação diagnóstica procedente, contribuíndo para a exclusão de uma série de outras patologias, tais como: 1) sarcoidose, pela ausência de granulomas não caseosos e ECA normal; 2) neoplasia, nomeadamente hematológica, pela presença de vasculite e por um valor transitório de eosinófilos superior a 1500μL; 3) iatrogenia a fármacos pela exclusão de toma de fármacos potencialmente causadores de Síndrome de DRESS, causadores de vasculite de hipersensibilidade ou de eosinofilia apenas com atingimento pulmonar e cutâneo e sem atingimento renal.
Este caso clínico ilustra uma apresentação rara de infeção por Entamoeba spp e demonstra a importância de um estudo exaustivo para o diagnóstico.
Figura I

Histologia de biópsia cutânea perineal mostrando Intenso infiltrado inflamatório perivascular e peri-anexial (canto superior direito), rico em eosinófilos.
BIBLIOGRAFIA
1. Centers for Disease Control [http://www.cdc.gov/dpdx/amebiasis/] Amebiasis, DPDx - Laboratory Identification of Parasitic Diseases of Public Health Concern. Prevention 2013, consultado a [10 de Agosto de 2017].
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3. Masi AT, Hunder GG, Lie JT et al. The American College of Rheumatology 199 criteria for the classification of Churg-Strauss syndrome (allergic granulomatosis ang angeiitis), Arthritis Rheum 1990, 33:1094-100.
4. Ross A, Olds R, Cripps A, Farrar J, McManus D. Enteropathogens and Chronic Illness in Returning Travelers. N Engl J Med 2013;368:1817-25.
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