Os abcessos cerebrais são uma entidade clínica desafiante, de difícil tratamento e com elevada morbimortalidade1. Apresentamos o caso de um homem de 47 anos, com bronquiectasias e história prévia de amigdalectomia e tuberculose pulmonar na infância. Admitido por cefaleia holocraniana, febre e broncorreia mucosa, sem outra clínica focalizadora de infecção; apresentava quadrantanópsia homónima inferior e parésia facial central esquerda. A RM cerebral evidenciou lesões arredondadas dispersas pelos hemisférios cerebrais, com edema perilesional, captação anelar de contraste e restrição de difusão, correspondendo a lesões abcedadas (Figura 1 e 2).
Documentado défice grave de IgA e bronquiectasias centrais tubulares em todos os lobos pulmonares, com alterações inflamatórias crónicas. Excluída infecção VIH, défice de outras imunoglobulinas (incluindo subtipos de IgG), défice de alfa1-antitripsina, fibrose quística e endocardite.
Pela hipótese de ponto de partida de bacteriemia em bronquiectasias infectadas, iniciou antibioterapia com cobertura de Pseudomonas aeruginosa com meropenem em doses meníngeas. Por agravamento dos défices neurológicos focais, foi transferido para centro com Neurocirurgia e submetido a drenagem neurocirúrgica.
O estudo exaustivo dos vários produtos biológicos foi negativo, incluindo hemoculturas e microbiológicos do líquor cefalorraquidiano e do produto de drenagem neurocirúrgica. Em relação a este último o estudo incluiu exame bacteriológico em aerobiose e anaerobiose, micológico, micobacteriológico directo e cultural, pesquisa de Candida, Aspergillus, MT e Nocardia por técnicas de biologia molecular. A histologia evidenciou apenas inflamação.
O doente completou 12 semanas de antibioterapia após cirurgia de controlo do foco com melhoria clínica e imagiológica. Realizou reabilitação funcional, com recuperação de marcha autónoma e franca melhoria dos défices. Como intercorrência, desenvolveu diabetes insípida central, controlada com desmopressina.
Este caso ilustra uma forma de apresentação extraordinariamente grave de imunodeficiência primária por défice de IgA. Responsável por um espectro clínico alargado, estes doentes podem ser assintomáticos ou apresentar infecções de repetições, sobretudo respiratórias 2-3. O caso distingue-se ainda pela boa evolução clínica posterior apesar da exuberância das lesões e dos défices iniciais. As bronquiectasias infectadas foram provavelmente o foco de bacteriemia.
Figura I

Lesões arredondadas occipitais, com edema perilesional, captação anelar de contraste e restrição de difusão, correspondendo a lesões abcedadas (RM cerebral).
Figura II

Abcessos cerebrais múltiplos (RM cerebral)
BIBLIOGRAFIA
(1) 1 - Brouwer M, Tunkel A, McKhann G, Beek D. Brain Abscess. N Eng J Med. 2014; 371 (5).
(2) 2 - Latiff A, Kerr M. The clinical significance of immunoglobulin A deficiency. Ann Clin Biochem. 2007; 44(2) 131-9.
(3) 3 - Dominguez O, Giner M, Alsina L. Fenotipos clínicos associados a la deficiência selectiva de IgA: revision de 330 casos e propuesta de un protocolo de seguimento. Na Pediatr. 2012; 76(5): 261-267.