INTRODUÇÃO
As infecções fúngicas invasivas constituem um problema clínico de importância e incidência crescentes 1-3. Desafiadoras pela dificuldade diagnóstica que apresentam, condicionam elevada morbilidade e mortalidade 1,4. Embora a maioria seja causada por Candida e Aspergillus, têm-se verificado a emergência de fungos menos comuns - entre estes os dematiáceos produtores de melanina, incluindo os do género Exophiala 2,4,5. Fungos ubiquitários, de coloração preta característica, causam sobretudo infecções cutâneas e dos tecidos moles. As infecções sistémicas são raras e atingem indivíduos gravemente imunodeprimidos. 4,5
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 66 anos, diabético, com síndrome mielodisplásico (SMD) - anemia refractária com excesso de blastos tipo 1 (AREB - 1) com 2 anos de evolução. Ao diagnóstico com critérios de SMD de muito alto risco (segundo os critérios revistos do International Prognosis Score System): 9% blastos, trissomia do cromossoma 8 e pancitopenia (hemoglobina 9.2 g/dl, plaquetas <50 000/mm3 e neutrófilos <800/mm3). Tratado com 5-azacitidina em 1ª linha, evoluiu ao final do 18º ciclo de quimioterapia para leucemia mielóide aguda (LMA) secundária. Na reavaliação medular, foram documentados 22% blastos e trissomia do cromossoma 8, esta já presente ao diagnóstico inicial. O doente foi admitido no hospital e iniciou quimioterapia intensiva com citarabina, etoposídeo e mitoxantrone, profilaxia antifúngica com posaconazol e antivírica com aciclovir.
Ao 17º de aplasia medular foi constatada neutropenia febril (temperatura periférica máxima de 40.3ºC) e elevação dos marcadores inflamatórios (proteína C-reactiva = 123 mg/L). Na região interdigital no pé esquerdo foi identificada uma discreta lesão cutânea traumática com sinais inflamatórios associados, mas sem exsudados. Foi excluída activamente outra focalização clínica e iniciada antibioterapia empírica de largo espectro com imipenem e vancomicina sem resposta favorável. Ao 5º dia de neutropenia febril foi instituída cobertura anti-fúngica com voriconazol - com manutenção de febre alta persistente e parâmetros inflamatórios em perfil ascendente, sem, no entanto, disfunção de órgão associada.
O quadro evoluiu com o aparecimento de lesões cutâneas dispersas, de coloração preta, predominantemente na zona das pregas axilar e inguinal (Figura 1). Concomitantemente objectivava-se dor intensa à mobilização da articulação coxofemoral direita, condicionando limitação funcional marcada.
A tomografia computorizada (TC) cervico-toraco-abdomino-pélvica realizada para esclarecimento do quadro evidenciou múltiplas lesões abcedadas disseminadas (hepatoesplénicas, dispersas no parênquima pulmonar e renal e em ambos os lobos da tiróide), hepatoesplenomegalia e derrame articular ao nível da articulação coxo-femoral direita (Figura 2). O ecocardiograma transesofágico realizado não identificou fonte cardioembólica.
O exame microbiológico das lesões cutâneas, líquido articular e do produto de punção aspirativa ecoguiada das lesões hepatoesplénicas e da tiróide permitiu o isolamento do fungo Exophiala spp. Documentou-se também fungemia a Exophiala spp nas várias hemoculturas.
O restante estudo microbiológico (incluindo hemoculturas seriadas; exame bacteriológico e micobacteriológico directo e cultural assim como pesquisa de Mybocabterium tuberculosis, Mycobacterium avium, Nocardia e Aspergillus por técnicas de biologia molecular dos vários produtos referidos) foi negativo.
Admite-se como ponto de partida provável para a infecção disseminada a lesão cutânea interdigital do pé esquerdo, onde também foi isolado o fungo referido.
Apesar do início precoce de cobertura antifúngica de largo espectro – voriconazol instituído ao 5º dia de neutropenia febril, escalado oito dias depois para anfotericina B lipossómica por agravamento clínico – constatou-se evolução desfavorável do quadro, com agravamento dimensional das lesões, persistência da febre e neutropenia grave, sem evidência de recuperação hematológica. Mantinha-se, no entanto, sem disfunção de órgão associada. A reavaliação medular não evidenciou excesso de blastos.
Ao 57º dia de aplasia, objectivada cefaleia, agravamento progressivo do estado de consciência (Escala de Coma de Glasgow – 10) e ressonância magnética cerebral com trombo visível a nível da carótida direita, com área extensa de enfarte associado (Figura 3). Constatada evolução neurológica desfavorável. Tendo em conta a evolução desfavorável sob terapêutica anti-fúngica de largo espectro e a ausência persistente de recuperação hematológica, sem expectativa de melhoria foi considerado não haver benefício na manutenção de atitudes invasivas, privilegiando-se medidas de conforto sintomático.
DISCUSSÃO
Este caso evidencia a exuberância das formas disseminadas de infecções fúngicas, de importância crescente num universo cada vez maior de indivíduos imunodeprimidos por esquemas terapêuticos mais eficazes, mas agressivos, e expostos a antifúngicos profilaticamente.
A candidose e aspergilose invasivas constituem as infecções fúngicas invasivas predominantes nos doentes imunodeprimidos (incluindo aqueles com patologia hematológica, submetidos a quimioterapia intensiva e/ou transplante de células progenitoras hematopoiéticas.1- 3 Com a utilização cada vez mais frequente de azóis de espectro alargado – nomeadamente posaconazol – como profilaxia anti-fúngica nestes casos, a epidemiologia das infecções fúngicas invasivas tem vindo a evoluir, com aumento do número de casos de outros fungos, previamente pouco comuns.1-4 Entre estes contam-se os Mucorales, Fusarium e os dematiáceos, produtores de melanina, no qual se incluem os do género Exophiala. 1, 3, 4
Estes são fungos dematiáceos - ubiquitários, de coloração preta característica, causam sobretudo infecções cutâneas e dos tecidos moles. As infecções sistémicas são raras e atingem indivíduos gravemente imunodeprimidos. 4,5,6
A coloração escura das colónias fúngicas é conferida pela melanina contida na parede celular. Estão descritos vários mecanismos potenciais pelos quais a melanina poderá constituir factor de virulência – desde impedir a acção dos radicais livres produzidas pelos fagócitos, funcionar como ligante de enzimas hidrolíticas, impedindo a sua acção sobre a membrana plasmática, e contribuir para formação do apressorium, estrutura crucial na invasão das células do hospedeiro. 4,5
O principal factor de risco para infecções fúngicas invasivas é a imunossupressão do hospedeiro. 1- 3 Neste caso clínico concreto, o doente reunia um conjunto de características que o tornavam susceptível: diabetes mellitus, exposição a antibioterapia de largo espectro e, mais importantes, a disfunção imunológica com neutropenia prolongada e aplasia medular sem evidência de recuperação, condicionadas pela doença e quimioterapia intensiva.
Neste caso, admitimos como ponto de partida provável para a infecção disseminada, a lesão cutânea traumática interdigital do pé esquerdo, onde também foi isolado Exophiala spp. De salientar que na maioria dos casos descritos de infecções invasivas por este tipo de fungos, não é possível identificar o ponto de partida da infecção.
Ravenkar S. et al, numa revisão de 72 casos de infecção fúngica disseminada por dematiáceos, descreve a febre como o sintoma mais prevalente, constatado em 76% destes doentes. As manifestações cutâneas foram descritas em 33% e o atingimento do sistema nervoso central (SNC) em 31%. 4
No caso descrito, a clínica predominante foi de febre, à qual se somaram progressivamente o aparecimento de lesões cutâneas dispersas de coloração escura e os sintomas decorrentes do atingimento disseminado. A evolução posterior consistiu num quadro de deterioração neurológica - com cefaleia e diminuição da consciência no contexto de oclusão carotídea com enfarte cerebral extenso. Neste caso, a interpretação é que para o evento trombótico carotídeo tenham contribuído factores locais, nomeadamente possível invasão fúngica do SNC. São vários os casos descritos de trombose cerebral associada a infecção fúngica agressiva do SNC em imunodeprimidos – nomeadamente frequente no caso da mucormicose rinocerebral.7 Os mecanismos propostos são a inflamação perivascular (com acumulação maciça de citocinas e vasospasmo arterial) e a invasão fúngica direta (condicionada pelo crescimento das hifas no lúmen arterial, com lesão endotelial e possibilidade de embolização micótica).7 Este atingimento vascular, num doente com provável doença arterial de base no contexto da diabetes, torna-o susceptível a fenómenos trombóticos. Esta convicção não foi, no entanto, confirmada por meios complementares de diagnóstico, tendo em conta a estratégia adoptada e a ausência de benefício em prosseguir com estudos invasivos.
O diagnóstico microbiológico destas infecções fúngicas pode ser difícil – estes são fungos ubiquitários, muitas vezes considerados contaminantes quando isolados em cultura.2,4 É necessário um alto índice de suspeição para considerar que o isolamento correspondo ao agente patogénico. Para além disso, tal como em relação a outros fungos filamentosos, a identificação por cultura requer experiência na observação e identificação do aspecto das colónias, uma vez que não existem técnicas de biologia molecular disponíveis para estes casos. 4
Nos casos de infecções fúngicas invasivas por dematiáceos, outro aspecto a destacar é a frequente identificação de fungemia.4 Por oposição, nas infecções por Aspergillus, estes são raramente isolados nas hemoculturas, mesmo nos casos de infecção fúngica disseminada. 2,4 A explicação para este facto não está estabelecida, embora alguns autores coloquem a hipótese se ser consequente à evasão dos sistemas de defesa do hospedeiro condicionada por factores de virulência como a presença de melanina.4 No caso que apresentamos foi também documentada a positividade das hemoculturas para Exophiala.
No caso concreto de infecção por Exophiala, não há evidência que permita afirmar qual o anti-fúngico de primeira linha. Sendo uma infecção por uma gente raro, não existem estudos randomizados que avaliem a eficácia dos fármacos antifúngicos ou o benefício dos regimes combinados.4 A taxa de mortalidade é elevada (em algumas séries excede os 70%).4 Na gestão destas infecções graves, o reconhecimento e instituição precoces da terapêutica, a par de desbridamento cirúrgico e reversão da imunossupressão, quando possíveis, provavelmente serão factores com impacto no outcome destes doentes. 2, 4, 5, 8
A par do universo cada vez maior de doentes imunodeprimidos por esquemas terapêuticos eficazes, mas agressivos, constatamos também evolução na gestão das infecções fúngicas, nomeadamente nos esquemas de profilaxia (com azóis), nas ferramentas de diagnostico (incluindo pesquisa de galactomanan e b-D-glucano e métodos de biologia molecular) e estratégias de terapêutica empírica com antifúngicos de largo espectro na neutropenia febril persistente. Estas alterações terão provavelmente um impacto significativo na epidemiologia deste tipo de infecções.
Figura I

Figura 1. Lesões cutâneas de coloração preta na região axilar.
Figura II

Figura 2. Lesões hepatoesplénicas abcedadas, múltiplas.
Figura III

Figura 3. RMN cerebral evidenciando imagem de extenso enfarte cerebral.
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