INTRODUÇÃO
A platipnea-ortodesóxia (SPO) é uma síndrome clínica rara caracterizada por dispneia e dessaturação dependentes do ortostatismo.1
Para o desenvolvimento desta patologia parece ser essencial que exista um defeito anatómico (comunicação interauricular, como por exemplo, foramen oval patente) e um componente estrutural (Tabela 1) que redirecione o shunt, de forma a provocar um shunt dinâmico direito-esquerdo com a posição ortostática (na ausência de hipertensão pulmonar, ao contrário da síndrome de Eisenmenger).1
No entanto, o mecanismo exato das alterações dependentes da posição, incluindo as forças gravitacionais, continua por explicar.2
Assim, apresentamos um caso clínico de uma síndrome platipneia-ortodesóxia com múltiplos contributos estruturais, incluindo uma breve explicação sobre os seus mecanismos.
CASO CLÍNICO
Mulher de 84 anos admitida na Sala de Emergência por dessaturação grave. Apresentava como antecedentes relevantes patologia osteoarticular com cifoescoliose marcada. Referia agravamento progressivo do padrão de dispneia, com dispneia para pequenos esforços, sem ortopneia ou dispneia paroxística noturna e sem clínica de infeção respiratória.
Ao exame objetivo, avaliada com a cabeceira elevada, apresentava-se ligeiramente taquipneica (frequência respiratória 24 ciclos por minuto) com cianose labial mas sem tiragem supraclavicular ou outros sinais de dificuldade respiratória. Apresentava ainda saturação de oxigénio periférica (SatO2) 52% com máscara de alta concentração, hemodinamicamente estável e sem sinais de sobrecarga de volume evidentes. Analiticamente inexistiam alterações relevantes: sem síndrome inflamatório, sem elevação da troponina I e sem elevação do peptideo natriurético auricular (BNP).
Para além disso, a radiografia torácica não apresentava alterações de relevo. Por último, a gasometria à admissão demonstrava insuficiência respiratória hipoxémica grave.
Nas primeiras horas após a admissão foi possível documentar que a dessaturação resolvia com o decúbito, sem necessidade de O2 suplementar ou ventilação não invasiva (VNI). Estas alterações foram perceptíveis através da realização de gasometrias (GSA) seriadas que documentaram hipoxemia grave na posição de sentada/de pé:
· GSA na posição de sentada, sem suplementação de O2: pH 7.46, paO2 44 mmHg, paCO2 32 mmHg, K+ 4.6 mEq/L, Na+ 131 mEq/L, HCO3- 22.8 mEq/L, SatO2 83%;
· GSA na posição de deitada (CN 1L/min) - pH 7.52, paCO2 32 mmHg, paO2 80 mmHg, SatO2 98%.
Neste momento, foi assumida uma possível SPO, tendo sido iniciada a pertinente investigação.
A doente realizou ecocardiograma transtorácico com soro agitado que mostrou aneurisma do septo auricular sem dilatação das cavidades direitas, sem evidência de shunt (com realce para o facto de a doente ter má janela torácica). Tendo por objetivo a exclusão definitiva de shunt realizou ecocardiograma TE com soro agitado que mostrou CIA (comunicação interauricular) por FOP (Fig. 1).
Em relação a outros componentes estruturais, que pudessem contribuir para a clínica da doente, esta não apresentava evidência de tromboembolismo pulmonar (TEP) central em angiotomografia computorizada do tórax, mas apresentava evidência de TEP periférico crónico em cintigrafia de ventilação-perfusão que não era explicado pelo shunt. Não foram documentados quaisquer outros contributos.
Foi assumida SPO com contributos de CIA por FOP, cifoescoliose marcada, aneurisma do septo auricular e TEP periférico.
Durante o internamento, a doente apresentou episódio de alteração neurológica transitório, totalmente revertido (tomografia computorizada cerebral normal), alteração que poderia ser justificada por embolia paradoxal.
Nestes termos, a doente iniciou hipocoagulação, foi proposta para cateterismo direito e encerramento de FOP. O encerramento do FOP com Amplatzer (Fig. 2) permitiu a resolução dos sintomas. Ao fim de dois anos de seguimento a doente permanece assintomática (Fig. 3).
DISCUSSÃO
Apesar de o FOP ser um defeito congénito, a maioria dos doentes permanece assintomática durante muitos anos. Habitualmente, o FOP, por si só, está associado a um shunt esquerdo-direito pequeno ou inexistente, sendo por isso necessário o desenvolvimento dum shunt direito-esquerdo significativo através de uma alteração adquirida para que se desenvolva esta síndrome. 3
Existem múltiplos contributos descritos na literatura para a alteração da conformação do shunt, nomeadamente alterações anatómicas (Tabela 1). No que a esta doente concerne, foram decisivos a documentação de aneurisma do septo interauricular, que causa distorção do septo interauricular tornando o fluxo neste FOP preferencial; as alterações reversíveis do gradiente de pressão esquerdo-direito, como o TEP periférico; as alterações não cardíacas, como a cifoescoliose que origina áreas de hipoventilação alveolares que contribuem para a diminuição da relação ventilação-perfusão.
Existem ainda outras condições associadas a esta situação clínica não verificadas no caso em discussão, mas que devem ser consideradas no diagnóstico diferencial das condições clínicas que predispõem a platipnea-ortodesóxia, em especial outras alterações congénitas, doença endomiocárdica eosinofílica, alterações valvulares, doença pulmonar obstrutiva crónica, doença do pericárdico, síndrome hepatopulmonar secundário a patologia hepática (cirrose alcoólica, hepatite auto-imune, hipertensão portal não cirrótica), bem como alterações da parede torácica, disautonomia, entre outras. Qualquer condição clínica que possa condicionar alterações da ventilação-perfusão e aumento do espaço morto alveolar pode contribuir para o desenvolvimento de platipnea-ortodesóxia. 4
No que respeita a tratamento, o encerramento do FOP confere resolução completa do quadro clínico. 3
Em conclusão, o diagnóstico de SPO pode ser desafiante. Normalmente, a dessaturação dependente do ortostatismo é a pista inicial. Esta é uma patologia que, tipicamente, ocorre em idade avançada e não em idade jovem, uma vez que são necessários outros contributos para que o shunt direito-esquerdo se torne clinicamente evidente. O encerramento percutâneo do FOP com Amplatzer é o tratamento de escolha e resolve por completo toda a sintomatologia. Esta técnica de encerramento é segura, realizada em regra por um acesso periférico e sem necessidade de sedação profunda. Assim, apesar das comorbilidades destes doentes vale a pena perseguir o encerramento do FOP, considerando que a técnica é simples, corrige o problema e devolve qualidade de vida ao doente (Fig.s 2 e 3).
Figura I

Tabela 1 - Alterações cardíacas e não cardíacas associadas a síndrome platipnea-ortodesóxia. Adaptado de Nassif M., et. al, Platypnoea-orthodeoxia syndrome, an underdiagnosed cause of hypoxaemia: four cases and the possible underlying mechanisms.
Figura I

Imagem de ecocardiograma transesofágico a mostrar aneurisma do septo e comunicação interauricular por foramen ovale patente.
Figura II

Imagem de cateterismo cardíaco com dispositivo Amplatzer colocado para encerramento do foramen vale patente (seta vermelha).
Figura III

Imagem de ecocardiograma transtorácico de controlo após 9 meses de seguimento a mostrar dispositivo Amplatzer bem colocado (seta branca); doente clinicamente assintomática.
BIBLIOGRAFIA
(1) Laura Toffetti, et. al, Uncommon late presentation of platypnea-orthodeoxia syndrome, J Geriatr Cardiol. 2015 Nov;12(6):687-9.
(2) Nassif M., et. al, Platypnoea-orthodeoxia syndrome, an underdiagnosed cause of hypoxaemia: four cases and the possible underlying mechanisms, Neth Heart J (2015), 23:539–545.
(3) Cristina Sabater Abad, et. al, Cardiac Platypnea-orthodeoxia Syndrome: A “Mysterious” Cause of Hypoxemia, Scientific Letters / Arch Bronconeumol. 2016;52(9):489–497.
(4) Knapper JT, et. al, Cardiac platypnea-orthodeoxia syndrome: an often unrecognized malady. Clin Cardiol. 2014;37(10):645–9.