INTRODUÇÃO
Os tumores secretores de catecolaminas (feocromocitoma e paraganglioma) caracterizam-se pela tríade clássica de palpitações, cefaleias e hipersudorese, associada a várias apresentações de hipertensão arterial (HTA).1
A maioria dos doentes com HTA tem HTA essencial. Em cerca de 5-10% dos doentes a HTA tem uma causa secundária bem conhecida, tal como, doença do parênquima renal, estenose da artéria renal, hiperaldosteronismo ou feocromocitoma / paraganglioma. Habitualmente os clínicos estão menos alerta para outras etiologias, como a HTA induzida por fármacos, uma vez que existem poucos casos descritos na literatura.2 A venlafaxina é um antidepressivo que pode mimetizar clínica e analiticamente um feocromocitoma.3,4
Descreve-se em seguida o caso de uma mulher com síndrome feocromocitoma-like secundário a venlafaxina, com uma expressão de gravidade não descrita na literatura.
CASO CLÍNICO
Apresenta-se o caso de uma mulher de 66 anos com história de síndrome depressiva recorrente desde 1998 e estava medicada diariamente com venlafaxina 150 mg, carbamazepina 400 mg, ciamemazina 100 mg e lorazepam 5 mg. A venlafaxina tinha sido iniciada 6 meses antes do presente internamento, havendo referência a sobredosagem nos dias anteriores.
De outros antecedentes relevantes, destacava-se HTA com 6 anos de evolução, sem lesão de órgão-alvo documentada, controlada em ambulatório com lecarnidipina 20 mg e dislipidemia, medicada com rosuvastatina 10 mg.
Previamente ao internamento estaria assintomática do ponto de vista cardiovascular.
Na semana anterior ao internamento, por clínica de disúria e poliaquiúria, foi diagnosticada com cistite e foi medicada com nitrofurantoína, sem melhoria. Referia ainda toma de anti-inflamatórios não esteroides (AINE’s) desde o início do quadro.
Recorreu ao Serviço de Urgência por aparecimento de novo de dor lombar, febre e prostração. À avaliação clínica apresentava escala de coma de Glasgow 15, sem alteração da frequência respiratória ou frequência cardíaca e febre. Apresentava ainda sinais de desidratação, sem outras alterações ao exame objetivo. Analiticamente apresentava proteína C reativa elevada (336 mg/L), disfunção renal (creatinina 5,1 mg/dL e ureia 129 mg/dL); ligeira hipocalcémia (1 mEq/L), sem outras alterações iónicas. Não apresentava outras disfunções de órgão. O sumário de urina revelou leucocitúria. A ecografia renal não identificou alterações de relevo. A urocultura identificou E. coli multissensível, as hemoculturas foram negativas.
Assumida pielonefrite e lesão renal aguda, com possíveis contributos de necrose tubular aguda pelos AINE´s e desidratação. Iniciou ceftriaxone e manteve antidepressivo de ambulatório.
Um dia após admissão, apresentou episódio de edema agudo do pulmão (EAP) e taquicardia ventricular monomórfica, com perfil tensional hipertensivo associado (TA 170/90 mmHg). Foi submetida a cardioversão elétrica sincronizada. O eletrocardiograma (ECG) após choque mostrava taquicardia sinusal, bloqueio fascicular anterior esquerdo, QTc normal, sendo que no global era sobreponível ao ECG da admissão. O ecocardiograma revelou ventrículo esquerdo de dimensões normais, função sistólica biventricular conservada e alterações da contractilidade segmentar (hipocinésia dos segmentos médio-basais da parede inferior e segmento basal do septo inferior), sem outras alterações.
A gasimetria arterial apresentava acidemia mista, analiticamente apresentava função renal em agravamento (creatinina 6,1 mg/dL), sem alterações iónicas e mantinha diurese conservada. Pela acidose metabólica com acidemia e azotemia grave iniciou hemodiálise. Admitida em unidade de Cuidados Intensivos para terapêutica de substituição renal (TSR) e suporte ventilatório (ventilação não invasiva).
Na primeira semana de internamento, a doente evoluiu com HTA refratária e episódios de ansiedade paroxística associada a picos hipertensivos, alguns dos quais com insuficiência cardíaca (IC) esquerda congestiva / EAP, mas sem novos episódios de taquidisrritmia. Os ECGs seriados não revelaram alterações evolutivas. Posteriormente foi conseguida compensação da IC e estabilidade clínica.
Para exclusão de causas de HTA secundária, realizou Ressonância Magnética (RM) abdominal que não mostrou imagem de massa supra-renal e excluiu estenose das artérias renais; doseamentos de aldosterona, renina e função tiroideia dentro da normalidade.
Por suspeita de feocromocitoma, efetuou doseamento das metanefrinas totais e fracionadas em urina de 24 horas que se revelou aumentado (metanefrina 370 ug/24h – referência 45-290 ug/24h; nor-metanefrina 1969 ug/24h – referência 82-500 ug/24h). Na altura deste estudo, apresentava síndrome inflamatório em resolução e lesão renal em melhoria, já sem necessidade de TSR. Para exclusão de localização extra-adrenal, realizou cintigrafia com 131I metaiodobenzilguanidina (131I MIBG) que não mostrou aumento de captação do composto.
Simultaneamente, a suspeita de falso positivo do doseamento das metanefrinas urinárias motivou a suspensão de todos os fármacos com potencial interferência com a excreção urinária de catecolaminas, neste caso a venlafaxina, a amlodipina e o beta-bloqueador, apesar de a doente não ter ainda perfil tensional controlado. A doente iniciou terapêutica com sertralina, sem intercorrências, não foram introduzidos outros novos fármacos.
Curiosamente o perfil tensional melhorou significativamente após suspensão destes fármacos, o que levantou a suspeita de síndrome feocromocitoma-like secundário à venlafaxina.
Cerca de 4 meses após o quadro agudo, repetiu o doseamento de metanefrinas totais e fracionadas em urina de 24 horas com normalização (metanefrina 54 ug/24h, nor-metanefrina 184 ug/24h) e manteve resolução completa da clínica.
Os episódios de EAP e a taquicardia ventricular ocorreram na fase aguda, em que a doente se apresentava com sépsis, azotemia grave, acidemia metabólica e elevação das metanefrinas urinárias. Apresentava perfil tensional lábil, mas não houve elevação significativa de marcadores de necrose miocárdica (troponina I AS máxima 640 ng/L), pelo que se considerou tratar-se mais provavelmente de evento arrítmico secundário ao quadro metabólico.
Ainda assim, atendendo às alterações da contractilidade segmentar descritas no ecocardiograma completou estudo com cateterismo cardíaco que revelou doença coronária de 1 vaso: lesão de 70% na artéria circunflexa (Cx) proximal. Para melhor caracterização do significado hemodinâmico da lesão da Cx e esclarecimento de eventual substrato arritmogénico cardíaco realizou RM cardíaca que não confirmou as alterações da contractilidade segmentar previamente descritas e excluiu imagens de realce tardio compatível com fibrose do miocárdio bem como isquemia do miocárdio.
A função renal normalizou após resolução do quadro agudo (estudo para este problema sem alterações relevantes). Documentado défice de vitamina D que justificava a hipocalcémia inicial, para a qual iniciou suplementação.
DISCUSSÃO
Apresenta-se um caso de suspeita clínica de feocromocitoma ou paraganglioma em que a gravidade das complicações cardiovasculares, apresentação com múltiplos problemas e disfunções de órgão obrigaram a investigação exaustiva tal como descrito acima.
De facto, a HTA é a manifestação clínica mais comum do feocromocitoma ou paraganglioma, podendo ser sustentada ou manifestando-se isoladamente na forma de paroxismos hipertensivos. Para além disso, poderá haver comprometimento cardiovascular com diferentes espectros, incluindo síndrome coronária aguda (mesmo na ausência de doença coronária, por espasmo arterial pelo aumento de catecolaminas), miocardite, EAP por IC esquerda (por alterações na permeabilidade capilar pelas catecolaminas e outros peptídeos) e arritmias cardíacas, como a fibrilhação auricular e ventricular.5
Neste caso, o aumento da excreção urinária de metanefrinas fracionadas levantaram a suspeita de se tratar de um paraganglioma, não confirmada com a realização da cintigrafia com 131I MIBG. Outra hipótese levantada foi a interferência farmacológica, que se veio a confirmar com a normalização das metanefrinas urinárias, a resolução clínica e a não recorrência dos eventos após a suspensão da venlafaxina.
A venlafaxina é um inibidor da recaptação da serotonina e noradrenalina, aumentando por este mecanismo os metabolitos livres das catecolaminas e podendo mimetizar clínica e analiticamente um feocromocitoma.3,4 A sua interferência no perfil tensional está descrita na literatura, mas habitualmente em doses superiores a 300 mg/dia, sendo que nesta doente havia história de sobredosagem nos dias prévios ao quadro.4 Nos casos clínicos descritos na literatura a clínica era clássica, tendo sido documentada elevação das metanefrinas fracionadas que normalizou com a suspensão da venlafaxina. Todos foram geridos em ambulatório tendo em conta a ausência de complicações graves3,6, ao contrário do caso apresentado que retrata um síndrome feocromocitoma-like secundário a venlafaxina com uma expressão de gravidade não descrita na literatura.
Embora o quadro infeccioso concomitante e a lesão renal pudessem justificar um doseamento de catecolaminas urinárias aumentado (mas não justifica magnitude superior a duas vezes o normal)7, a colheita foi realizada com o quadro infecioso resolvido e lesão renal em melhoria. Além disso, a melhoria do perfil tensional e da clínica foram coincidentes com a suspensão do fármaco.
A sobredosagem de venlafaxina, a concomitância do quadro infecioso e a lesão renal justificaram possivelmente a apresentação “hiperaguda” do caso.
A gestão posterior da doença psiquiátrica, não espelhada na descrição clínica foram também um desafio, pela dificuldade em encontrar fármacos que fossem seguros na situação clínica da doente em questão.
BIBLIOGRAFIA
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