Introdução:
A febre Q pode apresentar-se com grande variabilidade clínica, este facto associado à ausência de crescimento do agente infecioso nos meios de cultura tradicionais, torna necessária uma elevada suspeição clínica para o seu diagnóstico. A vasculite crioglobulinémica é uma complicação rara e são poucos os casos reportados em que esta ocorre na ausência de endocardite infeciosa.
Caso clínico:
Apresenta-se o caso de uma mulher de 72 anos, residente em meio rural, com antecedentes pessoais de fibrilhação auricular hipocoagulada com varfarina, cardiopatia valvular (estenose mitral moderada) que condiciona insuficiência cardíaca crónica classe II NYHA, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 não insulinotratada e status pós neoplasia maligna da mama, sem evidência de recidiva da doença neoplásica, internada por quadro com 6 semanas de evolução, inicialmente caracterizado por lesão única, papular e eritematosa na região abdominal (Fig. 1A), com evolução ao fim de 3 dias para rash macular generalizado (Fig. 1B), pruriginoso, com envolvimento da região palmar e plantar associado a febre, mialgias e cansaço para esforços moderados. Por manutenção das queixas, quatro semanas antes do internamento foi medicada em ambulatório com doxiciclina (100 mg 2id) que cumpriu durante 7 dias com desaparecimento transitório da sintomatologia. Duas semanas antes do internamento apresentou recidiva das queixas, que se acompanhavam de púrpura palpável dos membros inferiores de novo (Fig. 1C). Negava tosse ou expectoração, dor torácica, cefaleia, fotofobia, artralgias, queixas urinárias ou gastrointestinais.
Analiticamente no início do quadro clínico apresentava trombocitopenia de 18.000/L, discreta leucocitose com eosinofilia e elevação da Proteína C reactiva (PCR) de 3,6 mg/dL. Sem elevação de transaminases ou parâmetros de colestase. À data do internamento (6 semanas após o início do quadro) destacava-se anemia normocítica e normocrómica com Hb 11 g/dl; leucocitose 13900/L; monócitose 3110/L; elevação de parâmetros inflamatórios [PCR 11.2 mg/dl e velocidade de sedimentação 51 mm]; ferritina 618 ng/mL (13-264); bilirrubina total 1.93 mg/dL, GGT 64 U/L, LDH 511 U/L e proteinograma com ponte betagama. Sem outras alterações, nomeadamente sem trombocitopenia.
Dos exames serológicos realizados (Tabela 1) destacava-se anticorpos Ig G (fase I e fase II) para Coxiella burnetti positivos, com anticorpos Ig M negativos. Ecograficamente apresentava hepatomegália homogénea (fígado com 16 mm de diâmetro longitudinal). O ecocardiograma transesofágico não mostrou evidência de vegetações ou outras alterações valvulares sugestivas de endocardite infeciosa.
Foram realizadas biópsias cutâneas das lesões no tronco que revelou “alterações focais de dermite de interface e infiltrado peri-vascular superficial discreto, constituído por linfócitos e eosinófilos” e biópsia das lesões dos membros inferiores revelou vasculite leucocitoclástica, cuja imunofluroescência directa mostrou depósitos de C3, IgA e IgM nos vasos da derme superficial e média, sugestivo de vasculite por imunocomplexos.
Do estudo imunológico destacava-se apenas discreta diminuição de C3 de 82.7 mg/dL (valor de referência 90-180 mg/dL) com C4 normal e crioglobulinas positivas, com criócrito <1%, não tendo sido possível caracterizar as crioglobulinas. O restante estudo imunológico foi negativo (incluindo Anticorpos antinucleares, anticorpos anti-citoplasma de neutrófilo, anti-dsDNA e anticorpos antifosfolípidicos).
Foi excluída ainda infeção pelo vírus da hepatite C (VHC), através de serologia e carga viral no soro, bem como neoplasia hematológica subjacente.
Durante o internamento a doente apresentou resolução espontânea da sintomatologia, mantendo-se apirética ao fim de 3 dias, com desaparecimento gradual das lesões cutâneas, assim como normalização das alterações analíticas (incluindo normalização de complemento e negativação das crioglobulinas). Foi feita reavaliação dos títulos dos anticorpos para Coxiella Burnetti 8 semanas após a primeira colheita, mantendo anticorpos Ig M negativos e IgG positivos, mas com redução substancial dos títulos de IgG-Fase II para 400 e IgG-Fase I para 200. Apesar da boa evolução clínica sem terapêutica, e da descida dos títulos, assumiu-se infecção por Coxiella Burnetti associada a vasculite crioglobulinémica com envolvimento cutâneo e optou-se por realizar tratamento com doxiciclina (100 mg 2id) durante 21 dias, mantendo-se sem recidiva da sintomatologia ou das alterações laboratoriais 6 meses após suspensão da antibioterapia.
Discussão:
O espectro clínico da Febre Q varia entre a ausência de sintomas (entre 20 a 80% dos casos1-3) a síndrome febril mais ou menos prolongado associado ou não a focalizações. A doença apresenta-se habitualmente numa forma aguda auto-limitada1-3, no entanto pode evoluir para cronicidade. A infecção aguda é caracterizada na maioria dos casos, por síndrome febril2,3, pneumonia2,3, hepatite2,3 e/ou meningoenecefalite3, sendo a endocardite a expressão mais comum de doença crónica2-7. Embora rara, a associação entre vasculite crioglobulinémica e febre Q está descrita em alguns casos4-9, sendo que na maioria dos casos descritos essa associação ocorre na presença de endocardite infeciosa por Coxiella burnetti 4-7.
Nos casos descritos, a crioglobulinémia que ocorre em associação com Febre Q é do tipo misto2-7, e geralmente cursa com envolvimento multissistémico, nomeadamente renal, neurológico e gastro-intestinal, e não apenas cutâneo como no caso apresentado. Neste caso, não foi possível a identificação do tipo de crioglobulinas pelo facto de apresentar criócrito <1%. No entanto, a presença de crioglobulinas no soro, associada a consumo de complemento e vasculite cutânea por imunocomplexos com depósitos de C3, IgA e IgM apoiam o diagnóstico de crioglobulinémia em associação com febre Q, feita após exclusão de causas mais comuns de crioglobulinémia, como a infeção por VHC e neoplasia hematológica.
Na maioria dos casos, o diagnóstico laboratorial da Febre Q assenta nos testes serológicos por imunofluorescência directa e permitem distinguir infeção aguda de crónica2. No caso descrito, a doente apresentava serologia compatível com infeção crónica, ou seja, presença de anticorpos anti-fase I com título de IgG ³ 8002 numa primeira avaliação. Desta forma, e de acordo com os critérios de Duke modificados10, a doente preenchia um critério minor para endocardite, aliado ao facto de apresentar patologia valvular subjacente conferindo-lhe maior risco de endocardite, bem como a presença de vasculite crioglobulinémica (associada na maioria dos casos a endocardite4-7). No entanto, o ecocardiograma transesofágico não revelou vegetações ou outras alterações valvulares sugestivas de endocardite, apesar de tipicamente, as vegetações na endocardite por Coxiella burnetti serem de pequeno tamanho ou estarem ausentes10. O facto de ter existido uma resolução espontânea da sintomatologia e das alterações analíticas, assim como a descida dos títulos de anticorpos IgG – Fase I para valores não diagnósticos de infeção crónica, motivou a opção de realizar tratamento com doxiciclina durante 21 dias. Pensa-se que a antibioterapia com doxiciclina instituída no inicio do quadro poderá ter contribuído para a sintomatologia mais frustre em comparação com os restantes casos descritos na literatura4-9. Sabe-se que a febre Q crónica poderá desenvolver-se vários meses a anos após a infeção inicial, em doentes com boa resposta inicial à antibioterapia, sobretudo doentes com fatores predisponentes, nomeadamente patologia valvular ou imunossupressão10, pelo que a doente se manterá sob vigilância para sintomas de cronicidade da infeção.
Este caso ilustra a variabilidade do quadro clínico da Febre Q, com especial destaque para uma das manifestações imunológicas raras, a crioglobulinémia, bem como as dificuldades que se prendem com o seu diagnóstico. A publicação de casos como este tem um papel importante na sensibilização dos clínicos para o diagnóstico atempado da infeção por Coxiella burnetti, bem como a necessidade de vigilância dos doentes expostos como forma de prevenção de cronicidade da doença.
Quadro I
Resultados de exames serológicos pedidos à data de internamento
Serologias | Resultado (título) |
| |
Ac. Anti-Brucela (R. Rosa Bengala) | Negativo |
Ac. Anti-Rickettsia conorii (IgM e IgG) | Negativos |
Ac. Anti-Coxiella Burnetii IgG – Fase I | Positivo (1600) |
Ac. Anti-Coxiella Burnetii IgM – Fase I | Negativo (<50) |
Ac. Anti-Coxiella Burnetii IgG – Fase II | Positivo (800) |
Ac. Anti-Coxiella Burnetii IgM – Fase II | Negativo (<50) |
Ac. Anti-Borrelia burgdorferi (IgM e IgG) | Negativos |
Ac VIH 1 e 2 | Negativos |
VHB, Ag Hbs e Ac Hbc | Negativos |
Ac. anti VHC | Negativos |
| |
Ac=Anticorpos; VIH= Vírus da Imunodeficiência Humana; VHB=Vírus Hepatite B; VHC=Vírus Hepatite C
Figura I

A. Lesão papular na região abdominal
Figura I

B. Rash macular na região abdominal
Figura I

C. Púrpura cutânea no membro inferior direito
BIBLIOGRAFIA
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