Introdução
A doença celíaca é uma enteropatia autoimune sistémica que resulta da exposição à gliadina, um peptídeo do glúten, em pessoas com predisposição genética à intolerância, ocasionando dano variável ao nível da mucosa do intestino delgado com fenómenos de mal-absorção associados1. Além da sintomatologia gastrointestinal, que não está presente em todos os casos, pode ainda manifestar-se por uma miríade de sinais e sintomas extra-intestinais1. As manifestações neurológicas englobam a neuropatia periférica e a ataxia cerebelar, as mais frequentes, mas também a epilepsia, as calcificaçoes occipitais bilaterais, a psicose e a miopatia3. O acidente vascular cerebral é uma manifestação rara2 mas pelo maior risco aterosclerótico conferido por doenças autoimunes de componente inflamatório crónico, como a artrite reumatóide ou o lúpus eritematoso sistémico1, por exemplo, e a forte associação com o haplótipo HLA (DQ2 e DQ8)1, parece igualmente pertinente a sua associação à doença celíaca, como vários estudos retrospectivos tentaram demonstrar, não só em relação à doença coronária com associação positiva em doentes celíacos durante os primeiros 20-25 anos após o diagnóstico4,5, mas também em relação ao acidente vascular cerebral, uma vez que em termos fisiopatológicos os processos a nível da aterosclerose vascular são semelhantes.
Foi no final da década de sessenta, do século XX, que floresceu o interesse na associação entre a doença celíaca e os fenómenos cardiovasculares com publicações pontuais maioritariamente de casos clínicos com um número reduzido de doentes, sendo de destacar a descrição em 1966 por Cooke e Smith de 16 doentes com doença celíaca e manifestações neurológicas, maioritariamente ataxia sensitiva6. A partir do ano 2000 houve um aumento crescente na publicação desta possível associação com estudos a refutar a ideia e estudos a confirmar a associação mas com diversos graus de relevância da mesma6.
Descrevemos o caso clínico de eventos isquémicos cerebrais de repetição num doente sem diagnóstico prévio de doença celíaca relançando a dúvida sobre a possível associação entre a enteropatia e o acidente vascular cerebral.
Caso clínico
Apresentamos o caso clínico de um homem de 53 anos, com hipertensão arterial crónica de diagnóstico há 5 anos e controlada apenas com 1 fármaco, que se apresenta no serviço de urgência (SU) por quadro neurológico, com 3 horas de evolução, de disartria e parestesias na hemiface e membro superior direito. Apresentava uma tensão arterial de 160/110mmHg e o exame neurológico revelava uma parésia facial central direita (PFCD), hemiparésia direita 4+/5 e disartia, pontuando 2 pontos na escala de NIHSS. Realizou tomografia cerebral com angiografia que demonstrou uma hiperdensidade ao longo do segmento M1 da artéria cerebral média direita que poderia indiciar trombo endoluminal, sinais de leucoencefalopatia isquémica e sequelas de lesões vasculares focais estriatocapsulares e talâmicas bilaterais. Pela baixa pontuação, não foi submetido a trombólise. Foi internado sob monitorização cardíaca, sem registo de eventos arrítmicos. Durante o internamento realizou RMN cerebral que demonstrou alargamento marcado dos espaços de circulação do LCR mais acentuado do que seria de esperar na faixa etária do doente, lacunas isquémicas dispersas pela substância branca preferencialmente nas coroas radiadas e centros semiovais de predomínio esquerdo, atingindo igualmente as cápsulas externas e região subcortical das regiões frontais (figuras 1-3). O ecocardiograma transtorácico e o ecodoppler dos vasos do pescoço não apresentavam alterações relevantes. No estudo analítico (figuras 4,5) destacava-se um défice de vitamina B12 (187pg/mL) e de folatos (2,10ng/mL), elevação ligeira de homocisteína (14,3umol/L), HDL de 28mg/dL, sem mais alterações no lipidograma e glicemia capilar e hemoglobina glicada dentro de valores normais. Por apresentar na RMN cerebral alterações que se poderiam enquadrar num CADASIL, embora sem história familiar, foi pesquisada a mutação no gene NOTCH3 que se encontrava ausente. Teve alta medicado com antiagregante plaquetário e suplementação vitamínica, com resolução completa dos défices neurológicos.
No mês seguinte regressa ao SU por instalação súbita de disartria e défice sensitivomotor direito. Pontuava 3 pontos na escala de NIHSS, não realizou trombólise e na TC cerebral apresentava apenas sinais de leucoencefalopatia isquémica crónica já presentes na RMN cerebral do internamento anterior. De relevante a tensão arterial de 134/80mmHg. Realizou ecocardiograma transesofágico que excluiu fontes embólicas e a presença de forâmen oval patente. Por queixas abdominais inespecíficas, e para exclusão de contexto paraneoplásico, realizou TC abdominopélvico que evidenciou adenomegalias mesentéricas. O seu estudo, revelou a positividade para o anticorpo antitransglutaminase e antigliadina A e G e a endoscopia digestiva alta evidenciava atrofia vilositária duodenal com a biópsia duodenal a confirmar o diagnóstico de doença celíaca. A colonoscopia não tinha alterações. À data da alta ainda com disartria, PFCD e hemiparésia direita 4+/5 foi orientado para reabilitação física, sob suplementação vitamínica e dieta com evicção de glúten, com uma adesão subótima do doente à terapêutica.
Discussão
A associação entre doença celíaca e doença cerebrovascular isquémica tem sido descrita, ainda sem um mecanismo fisiopatológico claro2,3.
Várias são as hipóteses colocadas desde o défice de vitamina B12, folatos, piridoxina e vitamina E, pelos seus efeitos neurotróficos e neuroprotectores; associação dos défices vitamínicos à elevação da homocisteína, causa conhecida de fenómenos trombóticos3; mecanismos autoimunes, pela evidência serológica de anticorpos antineuronais e antigangliosídeo, bem como de fenómenos vasculíticos do sistema nervoso central, até pelo possível efeito protector da parede vascular conferido pela transglutaminase2, o autoantigénio principal na doença celíaca e pela toxicidade dos anticorpos antigliadina ao nível das células de Purkinje cerebelosas8; e, por fim, a neurotoxicidade do glúten principalmente em doentes com doença celíaca, epilepsia e calcificações cerebrais8.
Vários são os casos clínicos publicados a reportar a associação da doença celíaca com a doença cerebrovascular isquémica, nomeadamente no que respeita à vasculite cerebral em doentes celíacos com eventos cerebrais isquémicos de repetição, com presença de anticorpos IgA-antiendomísio com actividade inflamatória ao nível da vasculatura cerebral no soro de doentes celíacos, contrastando com a sua inexistência no soro de doentes sob restrição de glúten2,7. Em todos é unânime a relação entre o estado de inflamação crónica a condicionar aceleração do processo de aterosclerose com o consequente resultado vascular.
No caso clínico descrito, embora no primeiro evento, o doente se apresentasse hipertenso e já com sinais imagiológicos de angioesclerose cerebral, que poderiam ser explicados pelo factor de risco vascular supracitado, embora existindo igualmente alargamento marcado dos espaços de circulação do LCR e lesões focais múltiplas da substância branca, duas das alterações imagiológicas cerebrais mais comuns em doentes celíacos9-10. Por outro lado, a associação entre a mal-absorção vitamínica condicionada pela doença celíaca e a consequente elevação de homocisteína conferindo um estado de hipercoagulabilidade sanguínea, torna plausível, face aos possíveis mecanismos fisiopatológicos hoje propostos, a associação entre doença celíaca e acidente vascular cerebral isquémico neste caso em particular. A raridade e o elevado índice de suspeição necessário, neste caso levantado pelos défices vitamínicos e pelas adenomegalias mesentéricas, parecem ser um dos principais obstáculos à publicação de estudos prospetivos com amostras mais relevantes, que permitam estabelecer de forma definitiva esta associação.
O tratamento deverá assim ser holístico, passando pela evicção de glúten na dieta, diminuído a carga inflamatória sistémica e a suplementação vitamínica, ambas de difícil adesão no doente em questão.
Embora nem os mecanismos fisiopatológicos da doença, nem a sua evolução com o tratamento estejam ainda esclarecidos pela difícil adesão à dieta com restrição de glúten, nem pareça haver impacto desta restrição em lesões já estabelecidas6, nem seja unânime a associação entre a doença cerebral isquémica e a doença celíaca, ou a relevância dessa associação, tendo em conta que se trata da enteropatia autoimune mais comum e com múltiplas formas de apresentação, reforçando o seu carácter autoimune, vasculítico, nos doentes jovens com eventos cerebrais isquémicos, após excluídas as causas mais comuns,e mesmo na ausência de sintomas gastrointestinais, esta possível associação, deverá ser tida em conta no diagnóstico diferencial.
Figura I

RMN cerebral (T2-FLAIR) a evidenciar lacunas isquémicas dispersas pela substância branca preferencialmente nas coroas radiadas e centros semiovais de predomínio esquerdo, atingindo igualmente as cápsulas externas e região subcortical das regiões frontais.
Figura II

RMN cerebral (T2-FLAIR) a evidenciar além das alterações supracitadas na imagem 1, o alargamento marcado, para a faixa etária, dos espaços de circulação do líquido encefalorraquidiano.
Figura III

RMN cerebral (DWI) a confirmar a lesão isquémica esquerda responsável pelo quadro neurológico agudo.
Figura IV

Tabela de resultados laboratoriais
Figura V

Tabela de resultados laboratoriais (continuação)
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia
1- Alessio Fasano, M.D., and Carlo Catassi, M.D., M.P.H. Celiac Disease. N Engl J Med 2012; 367:2419-2426.
2- B.El Moutawakil, et al. Maladie cœliaque et accidents vasculaires cérébraux ischémiques. Revue Neurologique. 2009;165:962-966.
3- D S N A Pengiran Tengah, A J Wills, G K T Holmes. Neurological complications of coeliac disease. Postgrad Med J. 2002;78:393–398.
4- Ludvigsson JF, de Faire U, Ekbom A, Montgomery SM. Vascular disease in a population-based cohort of individuals hospitalised with coeliac disease. Heart. 2007 Sep;93(9):1111-5.
5- Ludvigsson JF, West J, Card T, Appelros P. Risk of stroke in 28,000 patients with celiac disease: a nationwide cohort study in Sweden. J Stroke Cerebrovasc Dis. 2012 Nov;21(8):860-7.
6- Edward J Ciaccio, Suzanne K Lewis, Angelo B Biviano, Vivek Iyer, Hasan Garan, Peter H Green. Cardiovascular involvement in celiac disease. World J Cardiol 2017 August 26; 9(8): 652-666.
7- S. Audia, et al. Accident vasculaire cérébral ischémique de l’adulte jeune au cours de la maladie cœliaque. À propos de deux observations. La Revue de Médecine Interne. 2008;29:228-231.
8- Hernández MA1, Colina G, Ortigosa L. Epilepsy, cerebral calcifications and clinical or subclinical coeliac disease. Course and follow up with gluten-free diet. Seizure. 1998 Feb;7(1):49-54.
9- Kieslich M, Errázuriz G, Posselt HG, Moeller-Hartmann W, Zanella F, Boehles H. Brain white-matter lesions in celiac disease: a prospective study of 75 diet-treated patients. Pediatrics. 2001 Aug;108(2):E21.
10- Ghezzi A, Filippi M, Falini A, Zaffaroni M. Cerebral involvement in celiac disease: a serial MRI study in a patient with brainstem and cerebellar symptoms. Neurology. 1997 Nov;49(5):1447-50.