Introdução
A giardíase é uma infeção intestinal causada pelo protozoário Giardia lamblia, também conhecida por G. intestinalis ou G. duodenalis1-6. É uma das causas mais frequentes de diarreia infeciosa não bacteriana a nível mundial2,7,8. Apresenta uma prevalência entre 2 a 5% nos países desenvolvidos e entre 20 a 30% nos países em desenvolvimento2,4,6, afetando geralmente crianças1,5 e imunodeprimidos5. A prevalência de giardíase em Portugal é desconhecida6. Os últimos estudos foram efetuados na população pediátrica em 2006 e 2012, reportando, respetivamente, uma prevalência de 4% na região norte do país e de 6.8% em Lisboa6.
Existem várias estirpes de Giardia, com estrutura antigénica, isoenzimas e infetividade variável9, mas apenas as estirpes A e B infetam seres humanos1,4. A maioria dos surtos comunitários ocorre por ingestão de água contaminada. A transmissão de pessoa a pessoa é frequente em infantários. No seu ciclo de vida, a G. lamblia pode encontrar-se sob a forma de quisto ou trofozoíto10. A infeção ocorre geralmente por ingestão de água contaminada com quistos que quando atingem o intestino delgado libertam os trofozoítos1,2. Estes, por sua vez, fixam-se ao epitélio1,9 e colonizam o duodeno e o jejuno proximal9,10. Antes de deixarem o tubo digestivo, alguns trofozoítos transformam-se em quistos2,10 perpetuando o ciclo. O tempo de incubação é de 1 a 2 semanas1,2,10. A doença é transmissível desde que a pessoa infetada continue a excretar quistos9. A duração da excreção dos quistos é variável e pode persistir durante meses9.
A giardíase é assintomática em 40% dos casos8. Pode apresentar-se como uma infeção aguda autolimitada11 e numa minoria dos casos não tratados evolui para infeção crónica2,4,11. Os sintomas mais comuns na infeção aguda incluem a diarreia2,4,5,10,12, dor abdominal4,5,10,12, vómitos10,12 e perda de peso4,10,11, que geralmente se resolvem ao fim de várias semanas, após eliminação espontânea do parasita13. A giardíase crónica pode apresentar-se com quadros de diarreia crónica2,10,13, síndrome de má absorção1,2,10,13, anemia9, perda ponderal2,10, fadiga crónica1,4,10,11, síndrome de irritação intestinal1,4, intolerância a lactose1,9 e, nas crianças, atraso de crescimento1,4,13. As manifestações sistémicas da giardíase são excecionais10,13, tendo sido descritas: asma13, urticária1,4,10,13, eritema nodoso13, miopatia4, uveíte1,4,13 e artrite reactiva1,4,9,10,13.
Sendo a giardíase uma doença de transmissão fecal-oral, as más condições de higiene e a prática de relações sexuais oral-anal desprotegidas são fatores de risco para a infeção2,5,10,11,12. Na giardíase crónica, a imunodeficiência com hipogamaglobulinemia é o principal fator de risco, mas não há evidência de que estes doentes apresentem doença mais grave9. Outros fatores de risco descritos na giardíase são: imunossupressão por agamaglobulinemia associada ao cromossoma X4,11, malnutrição11, fibrose quística9,11, síndrome nefrótico11 e transplante renal11.
Caso Clínico
Os autores apresentam o caso de uma mulher de 48 anos, em período pós menopausa. Medicada cronicamente com bupropriom 150mg/dia, fluoxetina 20mg/dia, topiramato 100mg/dia, vinpocetina 10mg/dia, alprazolam 0.5mg/dia, trazodona 100mg/dia por síndrome depressivo.
A doente foi referenciada ao Serviço de Urgência por anemia microcítica hipocrómica de novo com hemoglobina de 6.7g/dL, detetada em análises de rotina, sem qualquer repercussão hemodinâmica. Não apresentava queixas gastrointestinais, nem evidência de perdas hemáticas. Não havia contexto epidemiológico relevante e o exame objectivo era normal. Foram transfundidas 3 unidades de concentrados eritrocitários e a doente foi admitida em internamento para estudo etiológico da anemia.
Do estudo realizado, o esfregaço sanguíneo apresentava hipossegmentação de neutrófilos, anisocitose plaquetar, eritrócitos com marcada anisopoiquilocitose, hipo e microcromia. Analiticamente o ferro sérico estava diminuído (5.7µmol/L), sem outras alterações na cinética do ferro(ferritina 17mg/mL, capacidade total de ligação do ferro 65µmol/L, transferrina 298mg/dL, saturação transferrina 8.8%); os anticorpos anti-gliadina, anti-endomísio e anti-transglutaminase tecidular foram negativos e o doseamento de imunoglobulina A foi normal.
Foi realizada uma endoscopia digestiva alta que não apresentou lesões até à segunda porção do duodeno e foram efetuadas biópsias para despiste de síndrome de má absorção. A colonoscopia não apresentava alterações.
O estudo anatomopatológico da mucosa duodenal biopsada (Figura 1) revelou inúmeras estruturas parasitárias com morfologia compatível com Giardia lamblia. A estrutura vilositária da mucosa duodenal estava conservada e não foram verificadas alterações significativas do componente de células inflamatórias mononucleadas.
Admitindo anemia ferropénica por má absorção em contexto de giardíase, a doente foi medicada com uma toma única de tinidazol 2g e sulfato ferroso 357.4mg/dia PO. Na consulta de follow up após 1 mês, a doente estava assintomática, o hemograma e a cinética do ferro tinha normalizado e o exame parasitológico das fezes não evidenciava parasitas.
Discussão
A anemia ferropénica é a alteração hematológica mais comum14. Acomete 20 a 30% da população mundial14. A deficiência de ferro ocorre quando a quantidade de ferro absorvida não é capaz de suprir as necessidades do organismo e/ou repor as perdas sanguínea. Isso deve-se a diversos fatores – fisiológicos, nutricionais ou patológicos14.
Algumas falhas podem ser apontadas na abordagem desta doente com anemia no Serviço de Urgência, para o qual os autores não tiveram controlo, como: a transfusão de hemoderivados de forma não criteriosa e o facto da cinética do ferro ter sido efectuada em sangue pós transfusional. Uma vez que o ferro sérico estava diminuído e a ferritina estava no limite inferior da normalidade após transfusão, admitiu-se anemia ferropénica.
Sendo a hemorragia gastrointestinal a principal causa de deficiência de ferro em mulheres pós-menopausa14, o estudo endoscópico era mandatório neste caso. A giardíase não era um diagnóstico espectável, pois a maioria dos quadros de má absorção associada a giardíase cursa com diarreia crónica esteatorreica1,4 ou outras queixas gastrointestinais que esta doente não apresentava.
Os mecanismos de má-absorção na giardíase ainda não são completamente conhecidos, podendo resultar de lesão epitelial1,5; produção de enterotoxinas5; alteração da motilidade intestinal5; hipersecreção de fluídos4,5; redução da área de reabsorção por colonização maciça de trofozoítos15; crescimento excessivo de bactérias por desconjugação de ácido biliar15; e/ou redução da atividade de dissacaridases intestinais resultando em diarreia osmótica1,4,15. Contudo, a Giardia lamblia tipicamente não invade a mucosa intestinal nem causa ulceração1, portanto a maioria as biópsias duodenais de doentes infetados mostra uma mucosa com estrutura preservada1,5, como aconteceu no caso descrito.
A associação entre depressão e giardíase está descrita10. Neste caso, não sabendo o tempo de evolução da giardíase não foi possível estabelecer uma relação causa efeito.
O diagnóstico de giardíase é baseado na suspeita clínica e faz-se habitualmente por identificação de quistos ou trofozoítos no exame microscópico das fezes9,11,15,13 (são recomendadas pelo menos 3 amostras 15, uma vez que a sensibilidade aumenta de 70% em uma única amostra para 90% em 3 amostras10). A deteção de antigénios por ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay) nas fezes tem sensibilidade de 90-99% e especificidade 95-100%10,15. A pesquisa também pode ser efetuada em aspirado de líquido duodenal5,9,15 ou através da prova da seda entérica (Enterotest)9. O diagnóstico de giardíase por PCR (Polymerase Chain Reaction) tem a vantagem de ser mais rápido e não dependente de observador, podendo ser mais acessível em países onde os recursos humanos são mais dispendiosos7. A biópsia reserva-se para os casos em que o exame de fezes é negativo5,9,15, ou quando é necessário excluir outras patologias5,9, apresentando uma sensibilidade de 82.5%11. No entanto, nenhum exame até à data substituiu a avaliação microscópica das fezes, uma vez que esta permite diagnosticar a existência de outros agentes patológicos concomitantes10,7.
Neste caso, o exame das fezes não foi realizado, pois a doente não apresentava diarreia e toda a investigação foi no sentido de esclarecer a etiologia da anemia ferropénica, tendo a endoscopia digestiva alta um papel fundamental.
Apesar de a maioria dos casos ser assintomática e autolimitada, o tratamento é indicado nos doentes sintomáticos, pela possibilidade de evoluir para a cronicidade9, e nos portadores assintomáticos, pelo risco de propagação de infeção11. Perante um surto devem ser investigados os eventuais contactos que apresentem sintomas.
O metronidazol, utilizado desde a década de 60, continua a ser o fármaco preconizado2,8,9. A dose de 1500mg por dia, divididas em 3 tomas, durante 5 a 10 dias, apresenta uma taxa de cura média de 89%, baixando significativamente para 51% nos regimes de toma única2. A necessidade de múltiplas tomas diárias, tratamento de longa duração e os seus efeitos adversos (sabor metálico2,12, náusea2,12, cefaleia2,12, vertigens2 e leucopenia2,12) são as desvantagens deste fármaco11,12. Tinidazol2,3,9, ornidazol2,3, secnidazol2,3, albendazol2,12, cloridrato de quinacrina2,9 e furazolidona2,9 são outras opções terapêuticas possíveis.
Neste caso, optou-se por administrar o tinidazol por ser o fármaco de toma única mais eficaz3,11, com uma taxa de cura média de 89%2, e por apresentar menos efeitos adversos comparativamente ao metronidazol2,3,12.
O caso descrito apresenta particular interesse, por um lado pela inespecificidade sintomatológica da giardíase, uma etiologia pouco comum de anemia ferropénica e, por outro, porque realça a importância do estudo endoscópico e histopatológico no diagnóstico diferencial de síndromes de má absorção.
Figura I

Visualização microscópica da mucosa duodenal com inúmeras estruturas parasitárias compatível com Giardia lamblia (seta).
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