INTRODUÇÃO
A Hipereosinofila (HE), definida como uma contagem persistente de eosinófilos no sangue periférico > 1.53x109/L, está associada a múltiplas patologias e pode ser responsável por quadros clínicos graves, resultantes da infiltração tecidular e libertação de grânulos eosinofílicos em múltiplos órgãos1. Classifica-se em primária (clonal) ou secundária (reactiva)1. Na maioria dos casos, a eosinofilia é secundária à libertação de citocinas inflamatórias imunoestimuladoras, como interleucina (IL) 3, IL5 ou factor estimulador de colónias de granulócitos e macrófagos (GM-CSF) em associação com condições atópicas/alergias, infecções parasitárias, medicamentos, distúrbios auto-imunes ou neoplasias1. Os tumores sólidos mais frequentemente associados são os gastrointestinais, pulmonares e do ovário2. Segundo a classificação mais recente da Organização Mundial de Saúde (OMS), na HE clonal podem distinguir-se 4 categorias3, entre as quais, as neoplasias mielóides/linfóides com eosinofilia e rearranjos cromossómicos nos genes do receptor do factor de crescimento derivado de plaquetas (PDGFR) alfa (α), do PDGFR beta (PDGFRβ) ou no receptor 1 do factor de crescimento dos fibroblastos (FGFR1)1,3. A Leucemia eosinofilica crónica (LEC) caracteriza-se por eosinofilia persistente e rearranjo genético envolvendo o PDGFRα, sendo o mais comum o que resulta na formação de um gene de fusão (FIP1L1 e PDGFRα) que codifica uma proteína com actividade tirosinaquinase constitutiva e que pode ser detectada por RT-pcr ou por FISH1. A sua detecção pode ser de grande importância pela resposta clínica favorável ao mesilato de imatinibe4. A LEC é mais frequente em homens (17:1)1,5 e apresenta um pico de incidência na quinta década de vida. O Melanoma Maligno (MM) não está habitualmente associado a eosinofilia reactiva, situação que encontramos relatada em apenas um caso6. Igualmente não é frequente apresentar uma expressão aumentada de PDGFRα, embora esta já tenha sido documentada e avaliada como possível alvo terapêutico7. Descrevemos o caso de uma doente com LEC associada a MM extensamente metalizado.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 48 anos, caucasiana, com história de hipotiroidismo, cirurgia bariátrica e colecistectomia, que à admissão apresentava queixas de enfartamento pós prandial e emagrecimento não quantificado. Analiticamente, apresentava, anemia normocítica e normocrómica, leucocitose com eosinofilia, Imunoglobulina E (IgE) total elevada bem como, alterações de citocolestase (Tabela 1). Ao exame objectivo, a destacar apenas palidez muco-cutânea e fígado palpável, multinodular e doloroso. Neste contexto, realizou ecografia abdominal: “Hepatomegália heterogénea pela existência de múltiplas massas que ocupam praticamente todo o parênquima hepático, a maior com 12 cm. Aspectos sugestivos de fígado metastático. Vias biliares não ectasiadas. Colecistectomia prévia. Múltiplas adenomegálias do hilo hepático e da região do tronco celíaco, as maiores com cerca de 4 cm (...)”. Por estabilidade clínica, foi transferida para a enfermaria, admitindo-se como principais problemas: lesões nodulares hepáticas sugestivas de metástases e anemia normocítica e normocrómica associada a leucocitose com eosinofilia. Para esclarecimento etiológico, realizou: tomografia computorizada toraco-abdomino-pélvica (“Nódulos pulmonares bilaterais, sugestivos de depósitos secundários; múltiplos nódulos hepáticos, sugestivos de secundarismo (Fig. 1); múltiplas adenomegálias peripancreáticas, no hilo hepático, mesentéricas, lombo-aórticas e ilíacas, as maiores peripancreáticas necróticas; trombose da veia esplénica e confluente plano portal, com circulação colateral; ascite ligeira.”), ressonância magnética abdominal que apenas acrescentou “Lesão do corpo do pâncreas, com cerca de 7 cm, muito sugestiva de metástase” e biopsia hepática ecoguiada cujo resultado foi: “amostra constituída exclusivamente por uma neoplasia formada por agregados sólidos de células com citoplasma escasso e eosinofílico, com cromatina vacuolizada e nucléolo por vezes evidente; numerosas mitoses e focos de necrose; o estudo imuno-histoquímico revelou positividade para S100; negatividade para cam5.2, AE1/3, CK5, CK7, CK20, cromogranina, sinaptofisina, p63, HMB45, Melan-A, desmina e TTF-1; os aspectos histológicos e o perfil imunofenotípico favorecem tratar-se de metástase de melanoma maligno”. Analiticamente, o valor de hemoglobina manteve-se estável mas, tanto a leucocitose como a eosinofilia apresentaram um agravamento acelerado (Tabela 1). Na investigação da HE, após exclusão de causas secundárias, realizou mielograma e biopsia óssea (exame pedido no início do internamento): “medula óssea com marcada eosinofilia, sem alterações morfológicas e maturativas significativas; hiperplasia ligeira da linhagem mielóide, essencialmente à custa de precursores eosinofílicos e eosinófilos; sem blastos CD34+”. Perante os resultados dos exames realizados admitiu-se que estávamos perante uma doente com: - MM plurimetastizado (fígado, pulmões, pâncreas e gânglios intra-abdominais; com trombose da veia porta); não foi detectado o melanoma primário apesar de investigação exaustiva e - HE de agravamento acelerado, inicialmente interpretada como reacção leucemóide paraneoplásica. Foi, então, referenciada a consulta de melanoma no Instituto Português de Oncologia e foram pedidos: pesquisa de transcritos de fusão FIP1L1-PDGFRα e doseamento de IL3, IL5 e GM-CSF. Contudo, verificou-se um agravamento clínico acelerado acabando a doente por falecer. Os resultados conhecidos à posteriori mostraram: IL3 e IL5 com valores entre os valores de referência; GM-CSF acima do valor de referência (61 pg/mL para N < 10 pg/mL) e pesquisa de transcritos de fusão FIP1L1-PDGFRα – del (4) (q12;q12): positiva.
DISCUSSÃO
O presente caso ilustra uma situação extremamente rara de associação de uma patologia muito pouco frequente (LEC), e que é mais prevalente em homens, com um tumor sólido (MM). No presente caso, a evidencia de MM, motivou a referenciação a consulta especializada, sendo que, na fase inicial, a elevação do número de leucócitos e eosinófilos foi interpretada como reacção leucemóide paraneoplásica. No entanto, o acelerado agravamento da HE levou à realização de múltiplos exames complementares de diagnóstico. A eosinofilia, que por vezes acompanha os melanomas metastizados, é habitualmente de intensidade inferior à encontrada e parece ter valor prognóstico favorável8. A elevação de GM-CSF e a ausência de blastos CD34+ na MO sugeriam HE reactiva. A IgE total elevada favorecia esta hipótese. Já a presença do rearranjo FIP1L1-PDGFRα (mutação somática9) está fortemente associada à LEC. Valores normais de IL3 e 5 corroboravam igualmente este diagnóstico. Níveis elevados de triptase (não doseada) seriam outro dado a favor. De acordo com a última classificação da OMS1,3, a HE desta doente, é classificável como LEC com expressão do rearranjo FIP1L1-PDGFRα. Admite-se a possibilidade da co-existência de ambas (eosinofilia reactiva e clonal), não tendo sido possível esclarecer esta hipótese. O rápido agravamento da eosinofilia a par da evolução acelerada do MM, teve como consequência o falecimento precoce da doente. Alguns resultados foram conhecidos pós-mortem, o que impossibilitou um melhor esclarecimento da situação bem como, qualquer tentativa terapêutica que, à posteriori, admitimos que teria sido com imatinib. A existência de alguns casos de MM com expressão do rearranjo FIP1L1-PDGFRα (4,6% numa grande série publicada7), mutação indispensável para a classificação desta leucemia, permite-nos especular sobre um elo comum no desenvolvimento destas duas patologias.
PRÉMIO: Melhor Comunicação Oral na categoria de Caso Clínico no 23º Congresso Nacional de Medicina Interna (Porto, 28 de Maio de 2017)
Quadro I
Parâmetros analíticos
| | | |
Parâmetro | Unidade | Admissão | Pré-mortem |
Hemoglobina (Hb) | g/dL | 10,5 | 8,7 |
Volume Globular Médio (VGM) | fL | 86 | 98 |
Hemoglobina Globular Média (HGM) | pg | 27 | 32 |
Leucócitos (L) | u/L | 34200 | 259200 |
Eosinófilos (Eo) | u/L | 13300 | 124200 |
Aspartato Aminotransferase (AST) | U/L | 60 | 107 |
Fosfatase Alcalina (FA) | U/L | 193 | 520 |
Gamaglutamiltransferase (Gama-GT) | U/L | 444 | 4459 |
Lactato desidrogenase (LDH) | U/L | 2478 | 4214 |
Imunoglobulina E (IgE) Total | UI/mL | 1724 | - |
Evolução dos parâmetros analíticos ao longo do internamento
Figura I

Tomografia computorizada toraco-abdomino-pélvica: múltiplos nódulos hepáticos, sugestivos de secundarismo.
BIBLIOGRAFIA
1- Reiter A, Gotlib J. Myeloid Neoplasms with Eosinophilia; Blood, February 2017: 129(6): 704-714.
2- Falchi L; Verstovsek S, et al. Eosinophilia in Hematologic disorders; Immunology and Allergy Clinics of North America, 2015 Aug; 35(3):439-52.
3- Arber DA, Orazi A, et al. The 2016 revision to the WHO classification of myeloid neoplasms and acute leukemia. Blood, 2016; 127(20): 2391-2405.
4- Arruda MAS, Sandes AF, et al. Leucemia eosinofílica crónica com expressão do rearranjo FIP1L1-PDGFRa relato de caso e revisão de literatura. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, Maio 2010; 32(2):177-180
5- Kim TH, Gu HJ, et al. Chronic eosinophilic leukemia with FIP1L1-PDGFRA rearrengement. Blood Research, September, 2016; 51(3):204-206.
6- Rule SAJ, Costello C. Paraneoplastic eosinophilia in malignant melanoma. Journal of the Royal Society of Medicine. May 1993; 86:295.
7- Dai J et al. Large-scale Analysis of PDGFRA Mutations in Melanomas and Evaluation of Their Sensitivity to Tyrosine Kinase Inhibitors Imatinib and Crenolanib. Clin Cancer Res. 2013; 19(24); 6935–42.
8- Moreira A, Leisgang W, Schuler G and Heinzerling L. Eosinophilic count as a biomarker for prognosis of melanoma patients and its importance in the response to immunotherapy. Immunotherapy. 2017; 9(2), 115–121.
9- Genetics Home Reference.nlm.nih.gov (homepage na Internet). PDGFRA-associated chronic eosinophilic leukemia (consultado a 15 Março 2018). Disponível em: https://ghr.nlm.nih.gov/.