INTRODUÇÃO
A ascite quilosa deve-se à presença de linfa na cavidade abdominal, tendo como critério a presença de um valor superior a 200 mg/dL de triglicéridos na sua composição (1). As causas mais frequentes de ascite quilosa no mundo ocidental são as neoplasias abdominais e a cirrose hepática (1,2). Outras causas comuns são a tuberculose e o trauma. Nas causas menos comuns incluem-se a pericardite constritiva, a síndrome nefrótica e as etiologias congénitas ou infecciosas que não a tuberculose.
A abordagem da ascite quilosa implica a identificação da etiologia em causa e a o tratamento dirigido à mesma, bem como alterações dietéticas, diuréticos e paracenteses evacuadoras. (1,2)
Os tumores quísticos do pâncreas são lesões raras, e mesmo com o avanço das técnicas de imagem, o diagnóstico de Cistadenocarcinoma do pâncreas é difícil e está muitas vezes dependente de biópsias aspirativas do conteúdo quístico . (3,4)
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 78 anos, caucasiana, autónoma, aparentemente saudável, sem medicação habitual e sem alergias conhecidas. Como antecedentes cirúrgicos destacava-se a realização de histerectomia total com anexectomia aos 52 anos.
Recorre ao serviço de urgência por aumento do volume abdominal com um mês de evolução, acompanhada de anorexia marcada com emagrecimento não quantificado. A doente negava outra sintomatologia nomeadamente icterícia, alterações da coloração da urina ou das fezes, tosse, expectoração, dor abdominal, febre ou sudorese noturna.
Ao exame objectivo destacava-se: doente vigil, consciente e colaborante. Emagrecida. Eupneica, pálida, hidratada, anictérica, apirética. Abdómen globoso, com sinais de ascite. Sem alterações na auscultação cardio-pulmonar e sem alterações ao exame neurológico. Apresentava edema dos membros inferiores até ao joelho.
Analiticamente na admissão apresentava: Hemoglobina 12,0 g/dL, leucócitos 5500 (N 83,5%), ureia 17mg/dL, creatinina 0,47 mg/dL, LDH 249 UI/L, amilase 7 UI/L, ionograma normal, PCR 3,25mg/dL
Foi realizada paracentese diagnóstica com saída de líquido de aspecto leitoso (fig1). O estudo citoquímico revelou: 1220 leucócitos, com 51% de polimorfonucleares e hipertrigliceridemia (596/dL), ADA 6,1 UI/L (normal < 32 UI/L).
Fig 1: líquido ascítico
Realizou-se estudo por tomografia computorizada abdominal, tendo-se verificado a presença de ascite em grande quantidade e pâncreas com região cefálica globosa, com aspecto discretamente estratificado da gordura envolvente, a que se associava uma atrofia da cauda e corpo e uma ligeira ectasia do canal de Wirsung. Os aspectos descritos foram suspeitos de lesão neoformativa nesta topografia, sendo aconselhada a realização de RMN para esclarecimento.
Fig 2: TC abdominal sem contraste (a seta indica a cabeça do pâncreas de aspecto globoso)
No internamento realizou ressonância magnética abdominal, que não confirmou a hipótese de lesão neoformativa inicialmente colocada, documentando-se apenas ascite em grande volume sem qualquer nódulo ou adenopatia.
Fig 3: RMN abdominal com contraste em fase arterial (seta indica a cabeça do pâncreas de aspecto globoso)
A citologia do líquido ascítico foi negativa para células neoplásicas. Nos exames microbiológicos não houve isolamento de agentes infeciosos, nomeadamente no exame cultural do líquido ascítico.
Pedida laparoscopia exploradora para esclarecimento de possível etiologia compressiva/neoplasia, que não mostrou alterações.
Durante o procedimento foram aspirados 3000 cc de líquido ascítico quiloso e não se identificaram, por este método, lesões de natureza suspeita. Ainda durante o procedimento foi realizada biopsia hepática, que igualmente não mostrou alterações.
Para exclusão de etiologia infecciosa, foram solicitados exames culturais (hemoculturas), serológicos e realização de IGRA, que foram todos negativos. As serologias do VIH e Hepatites foram negativas bem como a PCR para Mycobacterium tuberculosis no líquido ascítico.
Foi ainda solicitada imunofenotipagem de sangue periférico para exclusão de doença linfoproliferativa, que foi negativa. Foram então solicitados os marcadores tumorais CA 19.9 e CA 125, que se mostraram elevados (227 U/mL e 1059 U/mL respectivamente).
Foi ainda realizada uma linfocintigrafia no sentido de documentar o local de obstrução/extravasamento de linfa, na qual não foi evidente o extravasamento de radiofármaco para o peritoneu ao longo do estudo. No entanto, salienta-se que este método tem baixa sensibilidade para a visualização de estravasamento linfático lento e de baixo volume.
Durante o internamento a doente manteve ascite persistente com necessidade de paracenteses evacuadoras para alívio sintomático.
A doente iniciou ainda insulinoterapia por diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 inaugural.
Analiticamente desenvolveu um padrão misto de lesão hepática, com hiperbilirubinemia de agravamento progressivo.
Mantendo-se a hipótese de ascite quilosa de etiologia compressiva neoplásica, para exclusão da suspeita inicial de neoplasia do pâncreas e após discussão multidisciplinar do caso optou-se pela realização de ecoendoscopia, que mostrou exuberante circulação colateral da cabeça do pâncreas. Realizou-se biópsia cega, cujo resultado anatomo-patológico mostrou: “Esfregaços e sedimento com fundo mucoide, onde se observam retalhos de epitélio de tipo intestinal duodenal e outros retalhos de epitélio mucinoso com evidência de produção mucinosa pela coloração de PAS. No produto obtido no citobloco e biópsia, há retalhos de epitélio do mesmo tipo e muco. Os retalhos têm sobreposição nuclear e contornos irregulares com núcleos hipercromáticos e aumentados, a favor do diagnóstico de cistadenocarcinoma mucinoso do pâncreas.”
Admitiu-se assim o diagnóstico de ascite quilosa em contexto de cistadenocarcinoma do pâncreas.
Fig. 4 - Biópsia pancreática: Lupa. Coloração Giemsa. Retalhos de células epiteliais em fundo mucoide espesso
Fig. 5 - Biópsia pancreática: 40X. Coloração Giemsa. Arranjo desorganizado, morulado, alteração da polaridade das células e núcleos aumentados hipercromáticos
Dada a inoperabilidade do tumor por envolvimento vascular, foi proposta para quimioterapia, que a doente recusou, tendo falecido cerca de 3 meses após o diagnóstico.
DISCUSSÃO
A ascite quilosa deve-se à presença de linfa no peritoneu, tendo como critério a presença de > 200 mg/dL de triglicéridos na sua composição.
O líquido ascítico característico de ascite quilosa, além do aspecto leitoso, cursa em regra com triglicéridos acima de 200 mg/dL (geralmente mais de 1000 mg/dL), densidade entre 1010 e 1054, com valores de colesterol baixo, níveis de glucose e amilase normais, proteínas na ordem de 3,7 mg/dL, contagem celular elevada (superior a 500/mm3) e é estéril.
As causas de ascite quilosa são muito variáveis. A compressão linfática por envolvimento ganglionar no contexto de doença linfoproliferativa, nomeadamente pelos linfomas não-Hodgkin, é a etiologia mais frequente. Pode, contudo, ocorrer compressão linfática por outras neoplasias disseminadas, como os tumores do pâncreas, mama, cólon, próstata, ovário, testículo e rim. (5,6)
A tuberculose é outra causa frequente de ascite quilosa, nomeadamente em países em desenvolvimento, com maior prevalência desta doença, e no contexto da infecção pelo VIH/SIDA. (5) Causas menos frequentes são a cirrose hepática, sobretudo em fases mais avançadas, com ascite recorrente, e, ainda mais raramente, a trombose da veia porta, a irradiação pélvica no tratamento antineoplásico, a peritonite bacteriana espontânea, a pancreatite, a síndrome nefrótica e como complicação da diálise peritoneal. As etiologias congénitas devem ser investigadas na infância e são raras no doente adulto. (6)
Na abordagem da ascite quilosa a adaptação da dieta é essencial, com dieta pobre em ácidos gordos, nomeadamente os ácidos gordos de cadeia longa, privilegiando os ácidos gordos de cadeia média. (1,2,7)
A maioria das lesões quísticas do pâncreas são cistadenomas. Os cistadenomas serosos são, em regra, lesões benignas e representam a maioria dos casos de lesões quísticas do pâncreas. Os cistadenomas de características mucinosas podem mais frequentemente evoluir para malignidade. (3)
Os tumores quísticos malignos do pâncreas são muito raros, correspondendo a cerca de 1% de todos os tumores malignos deste órgão. O cistadenocarcinoma do pâncreas é um dos tumores quísticos malignos do pâncreas, sendo extremamente raro. (3, 4)
Níveis elevados de CEA (400 ng/mL) e CA 19-9 (50 000 U/ml) no fluído quístico podem ser um importante auxiliar no diagnóstico das lesões quísticas do pâncreas, uma vez que apresentam uma elevada especificade na diferenciação de pseudoquistos pancreáticos e tumores mucinosos. (8)
Mesmo com o avanço das técnicas de imagem, o diagnóstico de cistadenocarcinoma do pâncreas é difícil e está muitas vezes dependente de biópsias aspirativas do conteúdo quístico.
Por outro lado, a transformação de lesões quísticas do pâncreas em lesões malignas é rara e difícil de comprovar. (8)
O modo de apresentação do cistadenocarcinoma é variável. Na revisão da literatura, a apresentação inicial mais frequentemente descrita é a icterícia obstrutiva.
Da revisão da literatura efectuada pelos autores, não se encontraram descrições de ascite quilosa como forma de apresentação inicial do cistadenocarcinoma do pâncreas.
A presença de diabetes mellitus é descrita como fortemente indicativa de tumor de características malignas, tal como se sucedeu no nosso caso. (8)
A terapêutica de eleição nos cistoadenocarcinomas do pâncreas é a ressecção, quando cirurgicamente possível, apresentado melhor prognóstico que os tumores ductais do pâncreas, por menos envolvimento ganglionar (8).
No nosso caso a abordagem cirúrgica não foi possível devido ao envolvimento vascular, condicionando um mau prognóstico que se confirmou pela morte precoce da doente.
Figura I

Líquido ascítico
Figura II

Tomografia computorizada abdominal sem contraste (seta indica a cabeça do pâncreas com aspecto globoso)
Figura III

Ressonância magnética abdominal com contraste em fase arterial (seta indica a cabeça do pâncreas com aspecto globoso)
Figura IV

Biópsia pancreática: Lupa. Coloração Giemsa Retalhos de células epiteliais em fundo mucoide espesso
Figura V

Biópsia pancreática: 40X coloração Giemsa. Arranjo desorganizado, morulado, alteração da polaridade das células e nucleos aumentados hipercromáticos
BIBLIOGRAFIA
1 – Bhardwaj, Richa, et al. ´Chylous Ascites: A Review of Pathogenesis, Diagnosis and Treatment.´ Journal of clinical and translational hepatology 6.1 (2018): 105.
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3 - Thompson, Lester DR, et al. ´Mucinous cystic neoplasm (mucinous cystadenocarcinoma of low-grade malignant potential) of the pancreas: a clinicopathologic study of 130 cases.´ The American Journal of Surgical Pathology 23.1 (1999): 1-16.
4 - Albores-Saavedra, Jorge, et al. ´Mucinous Cystadenocarcinoma of the Pancreas: Morphologic and Immunocytochemical Observations.´ The American Journal of Surgical Pathology 11.1 (1987): 11-20.
5 - Manita, I., et al. ´Ascite quilosa – Caso Clínico´ Revista Portuguesa de Medicina Interna 13.4 (2006): 261-266.
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7 - Lizaola, B., et al. ´The diagnostic approach and current management of chylous ascites.´ Alimentary pharmacology & therapeutics (2017).
8 - Le Borgne, Joël, et al. ´Cystadenomas and cystadenocarcinomas of the pancreas: a multiinstitutional retrospective study of 398 cases.´ Annals of Surgery 230.2 (1999): 152.
9 – Bramis, K., et al. ´Serous cystadenocarcinoma of the pancreas: report of a case and management reflections.´ World Journal of Surgical Oncology 10.1 (2012): 1.