INTRODUÇÃO
As lesões esplénicas com apresentação quística são entidades pouco frequentes. Podem ser classificados em quistos verdadeiros (primários), apresentando um revestimento epitelial, ou em pseudoquistos (quistos secundários).1
Raramente atingem grandes dimensões, sendo assintomáticos em 30-60% dos casos.2 A presença de sintomas depende das dimensões do quisto.3 Os quistos sintomáticos, com características suspeitas, dimensões superiores a 5 cm ou presentes em doentes com práticas desportivas traumáticas4 devem ser removidos cirurgicamente pelo risco de rotura, hemorragia intracapsular e infeção.5
Deve ser realizada uma cirurgia conservadora e, quando possível, por via laparoscópica, com esplenectomia parcial, preservando pelo menos 25% do parênquima esplénico,3,5 por forma a manter a função imunológica do baço. A drenagem do quisto guiada imagiologicamente apresenta elevada taxa de recorrência, motivo pelo qual a abordagem cirúrgica permanece o tratamento de escolha.6
CASO CLÍNICO
Mulher, 79 anos, caucasiana, residente em Sintra, com antecedentes de anemia hemolítica autoimune e episódio recente de agudização por infeção do trato respiratório, estando sob prednisolona 20mg/dia.
Foi observada em consulta, onde referiu dor abdominal no hipocôndrio esquerdo, tipo moinha, com 2 meses de evolução, associada a enfartamento pós-prandial, saciedade precoce e anorexia, sem história de traumatismo toracoabdominal. A par disso, apresentava também, queixas de disúria e urgência miccional. Na observação clínica, constatou-se uma massa palpável no hipocôndrio esquerdo, com cerca de 10cm de diâmetro, dolorosa e de consistência elástica, aderente aos planos profundos.
Os exames laboratoriais revelaram leucocitose com neutrofilia e PCR 8,67 mg/dL. O exame microbiológico da urina isolou Escherichia coli multissensível. Admitiu-se infeção do trato urinário e a doente foi medicada com antibioterapia dirigida. Realizou ecografia abdominal que demonstrou lesão ovalada peri-esplénica, com volume 730mL, limites bem definidos e regulares, heterogénea com conteúdo líquido não puro, sem sinal doppler, inexistente em exames prévios. Na tomografia computorizada (TC) abdominal, com administração de contraste endovenoso, observou-se uma lesão nodular bem delimitada, com parede captante e conteúdo hipodenso, com imagem sobrenadante em topografia não dependente, móvel com a mudança de posição da examinada, sem evidência de calcificações (Fig.1). A lesão não tinha plano de clivagem com o baço e moldava a parede gástrica. No parênquima esplénico foram identificadas áreas hipocaptantes, nomeadamente a nível periférico (Fig.2).
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Figura 1 – Lesão nodular de parede espessada, com conteúdo hipodenso (densidade hídrica) e pequena imagem sobrenadante em topografia não dependente e móvel com a mudança de posição da examinada, em provável relação com pequena quantidade de gordura (setas).
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Figura 2 – Após administração do produto de contraste endovenoso, verificam-se algumas áreas hipocaptantes em situação periférica, sugestivas de enfartes (setas).
No follow up aos 3 meses, a TC abdominal foi sobreponível. Para melhor esclarecimento, realizou-se ecoendoscopia que favoreceu uma etiologia gástrica, por apresentar parede com estratificação ultrassonográfica idêntica à do estômago.
Como os exames imagiológicos não permitiram estabelecer com grau de certeza absoluto o ponto de partida da lesão, foi proposta laparotomia exploradora. Colocando-se a possibilidade de realização de esplenectomia, foi realizado o protocolo de vacinação contra agentes capsulados duas semanas antes. A doente foi submetida a esplenectomia (por impossibilidade anatómica de cirurgia conservadora do baço) e gastrectomia parcial (por incapacidade de libertar com segurança a grande curvatura do estômago) de forma a assegurar uma resseção completa da lesão (Fig.3). Após o procedimento cirúrgico foi realizada abertura do quisto, com saída de conteúdo hematopurulento.
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Figura 3 – Peça cirúrgica resultante de esplenectomia e gastrectomia parcial.
O exame anatomopatológico (Fig.4) revelou um parênquima esplénico com área quística, sem revestimento reconhecível, compatível com pseudoquisto esplénico, sem particularidades a nível do baço ou da porção gástrica excisada. No conteúdo hematopurulento do quisto foi isolada Escherichia coli multissensível.
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Figura 4 – Corte histológico com coloração hematoxilina eosina (x100) da peça cirúrgica.
DISCUSSÃO
Os pseudoquistos representam cerca de 75% dos quistos esplénicos de origem não parasitária e, geralmente, estão associados a trauma abdominal. Neste contexto, forma-se um hematoma esplénico encapsulado que é posteriormente reabsorvido, persistindo uma parede quística falsa.6 Os pseudoquistos não traumáticos, como era o caso da nossa doente, sugerem outras etiologias, como o enfarte esplénico com posterior degeneração quística (muitas vezes associados a doenças hematológicas, como as hemoglobinopatias ou a anemia hemolítica autoimune7), ou causas inflamatórias8.
Os exames imagiológicos realizados apresentavam características de lesão quística, na dependência do baço. Ainda assim, colocou-se a hipótese de quisto ou abcesso piogénico, originado por disseminação hematogénea ou por enfarte esplénico, dada a unilocularidade da lesão e a parede hipercaptante com zona central hipodensa. Porém não se observava presença de gás, habitualmente presente nestes abcessos.
Com a realização da ecoendoscopia colocou-se novamente a dúvida quanto à verdadeira origem da lesão, propondo-se a hipótese de quisto de duplicação gástrica pelo aspeto ecográfico com “gut signature”. A inexistência dessa lesão em TC prévia levou, no entanto, à exclusão desse diagnóstico.
Apesar da cirurgia conservadora do parênquima esplénico ser o procedimento de eleição, esta não é adequada em todos os doentes9. A esplenectomia total deve ser reservada para lesões múltiplas, com localização central ou hilar e, à semelhança da doente, caso apresente envolvimento de outros órgãos intra-abdominais10,11. Esta realidade prende-se com a maior suscetibilidade às infeções, perda da ação antineoplásica esplénica, aumento do risco de trombose da veia porta e esplénica e, em última análise, aumento da mortalidade9,10,12–14.
Por outro lado, a cirurgia por via laparoscópica é a preferida, pelas menores complicações10. De facto, a doente não apresentava contraindicações formais à sua realização. No entanto, apesar de não estar descrito na literatura, considerámos que o envolvimento da lesão com outros órgãos intra-abdominais, a ausência de caracterização etiológica, os seus limites mal definidos e a previsibilidade de múltiplas aderências pelo marcado processo inflamatório, deveria ser encardo como uma indicação para laparotomia.
O exame anatomopatológico foi compatível com pseudoquisto esplénico, com conteúdo hematopurulento, onde se isolou Escherichia coli, a mesma estirpe bacteriana, com teste de sensibilidade aos antimicrobianos (TSA) idêntico ao detetado na urocultura, quando a doente iniciou os sintomas.
Assim, coloca-se a hipótese de ocorrência de pequenos enfartes esplénicos (apoiados pelas imagens observadas na TC - Fig.2), no contexto da anemia hemolítica autoimune, com posterior degeneração quística. No decorrer da imunossupressão da doente, terá havido bacteriémia durante a infeção do trato urinário e, consequentemente, disseminação hematogénea até ao baço, crescimento da lesão e início da sintomatologia.
Em suma, os pseudoquistos que infetam podem fazer diagnóstico diferencial com lesões neoplásicas pela possibilidade de invasão de órgãos adjacentes e, neste sentido, a excisão necessita ser completa. A abordagem cirúrgica é rara e deve ser individualizada a cada doente.
Nos portadores de doenças hematológicas, como a anemia hemolítica autoimune, deve-se considerar a hipótese de pequenos enfartes esplénicos, como base para a formação de um pseudoquisto infetado, após evidência de uma infeção com disseminação hematogénea.
Figura I

Lesão nodular de parede espessada, com conteúdo hipodenso (densidade hídrica) e pequena imagem sobrenadante em topografia não dependente e móvel com a mudança de posição da examinada, em provável relação com pequena quantidade de gordura (setas).
Figura II

Após administração do produto de contraste endovenoso, verificam-se algumas áreas hipocaptantes em situação periférica, sugestivas de enfartes (setas).
Figura III

Peça cirúrgica resultante de esplenectomia e gastrectomia parcial.
Figura IV

Corte histológico com coloração hematoxilina eosina (x100) da peça cirúrgica.
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