1. Introdução
As estatinas são fármacos inibidores daenzimaHMG-CoA redutase (3-hidroxi-3-metil-glutaril-coenzima A redutase), reduzindo a síntese hepática de colesterol e usados, por isso, para a redução do risco cardiovascular. Estes fármacos revolucionaram o tratamento da dislipidemia e contribuíram para a redução da morbilidade e da mortalidade associadas ao enfarte agudo do miocárdio e ao acidente vascular cerebral, nas últimas décadas e são hoje de uso generalizado na população. Geralmente são bem toleradas, mas a toxicidade muscular pode limitar o seu uso. Cerca de 5% dos indivíduos que tomam estatinas desenvolvem mialgias ou fraqueza muscular 1. As mialgias são os efeitos secundários mais comuns e, habitualmente, resolvem com a suspensão do fármaco. Além destas, tem vindo a ser descrito um processo auto-imune muscular desencadeado pelas estatinas, a MNIM, na qual se formam anticorpos contra o alvo terapêutico das estatinas, o anti-3-hidroxy-3-metilglutaril coenzima-A redutase (anti-HMGCR) muito específicos desta doença, favorecendo a hipótese das estatina terem potencial de desencadear um processo miopático raro imuno-mediado, mesmo após a sua suspensão 1,3,5.
A MNIM caracteriza-se predominantemente por necrose da fibra muscular, com ou sem inflamação. Pode ser secundária a neoplasias, infeção viral ativa, doenças do tecido conjuntivo, idiopática, ou devida a fármacos como as estatinas 2,5.
As manifestações clínicas podem ter uma apresentação subaguda ou crónica, caracterizando-se por diminuição da força muscular proximal e simétrica (por vezes com envolvimento distal) e pode estar associada a mialgias, artralgias, disfagia e fenómeno de Raynaud 3.
Musset et al. verificaram que estes anticorpos, quando em conjugação com o uso de estatinas, caracterizavam um grupo de doentes com miopatia inflamatória idiopática (MII) que eram mais velhos e com necrose na biópsia muscular. Consideraram o doseamento do anticorpo anti-HMGCR decisivo para o diagnóstico diferencial das MII e sugeriram a sua integração nos critérios de classificação destas doenças 1.
O resultado histopatológico da biópsia muscular é crucial para o diagnóstico de MNIM, sendo muito característica a presença de miofibras necróticas dispersas com miofagócitos e ausência ou escassez de exsudatos com linfócitos T inflamatórios 5.
A MNIM pode surgir em qualquer momento do tratamento com estatinas, mas habitualmente surge três anos após o início do tratamento (em média entre os 2 meses e os 10 anos). No entanto, num terço dos casos, pode ocorrer mesmo após a suspensão da estatina com elevação da creatino-quinase (CK) (média de 0,5 a 20 meses após o fim do tratamento) 3, 5.
Reportamos um caso de MNIM associada à toma de estatina, no qual foi crucial o doseamento dos anticorpos anti-HMGCR para o seu diagnóstico.
2. Caso clínico
Mulher de 74 anos de idade, raça branca, professora (reformada), que apresentava astenia, mialgias generalizadas (mais intensas nos membros inferiores) e perda de força muscular proximal e simétrica, atingindo, sobretudo, a cintura pélvica e os músculos de ambas as coxas, com 10 meses de evolução. Negava febre, perda de peso, artralgias, disfagia, fenómeno de Raynaud, alterações cutâneas, gastrointestinais e/ou geniturinárias. Tinha antecedentes de depressão, osteoporose e dislipidemia medicada com sinvastatina durante algum tempo que não soube precisar, suspensa dois meses após o início das queixas. Por agravamento clínico, o seu Médico Assistente, fez análises que revelaram elevação das aminotransferases, tendo sido também suspensos o escitalopram, a trimetazidina e o ácido alendrónico + colecalciferol, um mês e meio depois da suspensão da estatina. Negava hábitos alcoólicos, tabágicos e/ou toxicómanos, tinha a vacinação de acordo com plano nacional de vacinação, negava viagens recentes a países tropicais, não tinha história de transfusões sanguíneas nem contexto epidemiológico relevante. Estava medicada com ácido acetilsalicílico, 150mg, id e multivitamínico. Negava conhecimento de alergias e não tinha antecedentes familiares relevantes, nomeadamente história de miopatias. Uns meses depois, por persistência das alterações analíticas recorreu ao Serviço de Urgência. Ao exame objetivo, estava apirética, hemodinamicamente estável, com dor ligeira à palpação da região gemelar bilateralmente e diminuição ligeira da força muscular dos membros inferiores, sem alterações relevantes no restante exame físico. Analiticamente, tinha elevação da creatina-quinase (CK), 5167 U/L, 40x o limite superior do normal (LSN), da alanino aminotransferase (ALT) e da aspartato aminotransferase (AST) 5x LSN e lactato desidrogenase (LDH) 4x LSN. A velocidade de sedimentação e a proteína C reactiva eram normais. Foi internada para estudo no Serviço de Medicina Interna. Dos exames complementares iniciais destacaram-se anticorpos anti-nucleares positivos (1:160, padrão granular fino denso), anti-sintetase (anti-JO1, anti- PL7, anti-PL12, anti-Ej, anti-Jo1), anti-SRP, anti-Mi2, anti-PM-Scl 75 e 100, ANTI-Ku, anti-CCP e pesquisa de fator reumatoide, todos negativos; aldolase elevada (29,8 U/L - valores de referência de 1,0 a 7,6 U/L). O ecocardiograma, eletrocardiograma, radiografia torácica, ecografia abdominal, serologias para o vírus da hepatite B, da hepatite C, da hepatite A, citomegalovírus e Epstein-Barr, imunoglobulinas, ceruloplasmina, alfa-1-antitripsina, ferritina, saturação de transferrina, hormona estimulante da tiróide (TSH), eram todos normais. A eletromiografia revelou inflamação do músculo deltóide e iliopsoas. Fez então biópsia muscular do músculo deltóide cujo resultado foi compatível com o diagnóstico de MNIM. O estudo complementar (TC tóraco-abdómino-pélvica, endoscopia digestiva alta, colonoscopia, mamografia, ecografia endovaginal) não revelou alterações significativas, nomeadamente sugestivas de neoplasia. O doseamento dos anticorpos anti-HMG-CoA IgG, pela metodologia ELISA, foi fortemente positivo (>200 unidades), compatível com o diagnóstico de MNIM associada à toma de estatinas. Iniciou prednisolona 60mg id, com melhoria clínica e analítica. Apesar da diminuição dos níveis de CK, AST, ALT e LDH, não houve normalização dos mesmos e surgiram efeitos secundários da corticoterapia (hipertensão arterial, diabetes, edemas maleolares, hipertensão intraocular, aumento da gordura cervical -“buffalo neck”) e mesmo lesões de zona no tronco e dorso, foi reduzida a prednisolona para 20mg, id e introduzida azatioprina, que foi sendo ajustada até aos 100mg, id. Verificou-se regressão completa dos sintomas e melhoria das alterações analíticas.
3. Discussão/conclusão
As estatinas são fármacos de grande utilidade e de uso generalizado, habitualmente bem toleradas, no entanto podem-se associar a alguns efeitos secundários, sendo os sintomas musculares os mais comuns, reportados em 10 a 25% dos doentes medicados com estatinas5.
As mialgias são o sintoma mais comum, no entanto alguns doentes podem desenvolver condições mais graves como a rabdomiólise e a MNIM6.
O desenvolvimento de efeitos adversos pode levar ao abandono da medicação com impacto negativo na proteção cardiovascular.
A MNIM devida à toma de estatinas é uma situação rara e de difícil resolução, motivo pelo qual relatamos o caso presente. Além da raridade, destacamos este caso, pela dificuldade diagnóstica que apresentou. Além da exclusão de outras causas, foram determinantes, a histologia e a realização de anticorpos anti-HMGCoA redutase, que permitiu um diagnóstico mais seguro.
Embora alguns doentes vejam as suas queixas resolvidas após a suspensão da estatina, a maioria não, necessitando de tratamento, habitualmente com imunossupressores. A corticoterapia (prednisolona 1mg/Kg) é a terapêutica recomendada de primeira linha em doentes com sintomas ligeiros, muitas vezes associado a outro imunossupressor como o metotrexato, micofenolato de mofetil ou azatioprina. Contudo, a MNIM tem resposta pobre ao tratamento imunossupressor, comparativamente a outras miopatias inflamatórias, sendo muitas vezes necessário recorrer a imunoglobulina endovenosa para o controlo da doença4.
Tal como em outros casos clínicos7, o nosso caso mostra a complexidade e a dificuldade na abordagem terapêutica destes doentes, revelando a necessidade frequente de associar vários imunodepressores para o controlo da doença.
Em conclusão, chama-se a atenção para uma etiologia rara de MNIM, que nos levantou dificuldades diagnósticas e cujo tratamento requer terapêuticas longas e de sucesso incerto.
BIBLIOGRAFIA
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