INTRODUÇÃO
Esplenose é o termo inicialmente utilizado por Buchbinder e Lipkoff em 1939 para descrever o autotransplante de tecido esplénico na cavidade abdominal1.
Os implantes de tecido esplénico resultam do derrame de células da polpa esplénica que ocorre após traumatismo abdominal, lesões acidentais do baço durante cirurgias ou esplenectomias electivas. A frequência estimada de esplenose varia entre 26 a 65% após trauma e 16 a 20% após esplenectomias electivas2, 3. Os implantes esplénicos por norma são múltiplos e podem localizar-se em qualquer local na cavidade peritoneal, sendo a maioria encontrados no quadrante superior esquerdo do abdómen. Se o traumatismo for acompanhado de ruptura diafragmática os implantes esplénicos podem também ser encontrados na cavidade pleural ou pericárdica4, 5.
CASO CLINICO
Homem 44 anos, trabalhador na construção civil, encaminhado a consulta de Medicina Interna para esclarecimento de massas peritoneais. De antecedentes pessoais o doente referia história de tabagismo (40UMA), alcoolismo (cerca de 150gr por dia), acidente de viação com traumatismo abdominal com esplenectomia aos 18 anos de idade e brucelose aos 10 anos. Sem antecedentes familiares relevantes. Sem medicação habitual.
Doente referia quadro de náuseas, diarreia e vómitos em contexto de ingestão excessiva de álcool um mês antes. Foi observado no Serviço de Urgência nesse contexto, tendo sido orientado para ecografia abdominal para esclarecimento de padrão de citocolestase identificado no controlo analítico. A ecografia abdominal revelou: “fígado e vesícula biliar dentro dos parâmetros normais, sem ectasia das vias biliares; pâncreas sem alterações significativas; na região peri-umbilical direita, em relação com o bordo inferior do fígado, visualiza-se formação nodular ovalada sólida com 34mm”. Para melhor esclarecimento fez tomografia computadorizada (TC) abdominal que revelou “massas peritoneais captantes de contraste e espessamento parietal difuso do ângulo hepático do cólon até ao transverso” (ver Fig. 1).
Quando questionado o doente referia perda ponderal (de cerca de 4-5kg) e astenia nos últimos dois meses que o doente associava a menor ingestão alimentar por quadro depressivo e ingestão alcoólica aumentada; apresentava ainda queixas compatíveis com ciatalgia esquerda. Ao exame objectivo encontrava-se emagrecido (índice de massa corporal de 20kg/m2), pele e mucosas coradas e anictéricas, sem outras alterações de assinalar, nomeadamente sem adenopatias palpáveis.
Para esclarecimento realizou controlo analítico alargado que mantinha alterações hepáticas (ver Tab. 1), electroforese de proteínas sem pico monoclonal, citomegalovírus, toxoplasmose, Epstein-Barr, hepatite A, B e C e HIV sem sinais de infecção activa.
Fez endoscopia digestiva alta e colonoscopia sem alterações patológicas. Repetiu TC toraco-abdomino-pélvica que confirmou a “nível do mesentérico, à direita da linha média, várias formações nodulares sólidas de contorno lobulado, que sofreram marcado efeito de realce após contraste, a maior com 34x32mm´ tendo sido colocada a hipótese de tumores desmóides (ver Fig. 1).
Neste ponto, foi siscutido caso em conjunto com a Cirurgia Geral e perante a hipótese de neoplasia oculta com metastização, foi solicitada tomografia de positrões com FDG-F18 (fluorodesoxiglicose) para melhor esclarecimento. Esta não identificou “alterações funcionais claramente suspeitas de lesões neoplásicas malignas de alto grau metabólico”, confirmou a presença de “formações nodulares mesentéricas, a de maiores dimensões com cerca de 32x20mm, sem captação significativa de FDG-F18, apresentando portante comportamento funcional pouco sugestivo de lesões neoplásicas malignas de alto grau metabólico, não podendo contudo excluir tratarem-se de tumores de baixo grau metabólico, como tumores desmóides.” (ver Fig. 2)
Perante a ausência de diagnóstico o doente foi submetido a biópsia guiada por ecografia, sem complicações imediatas. O diagnóstico anátomo-patológico identificou “tecido linfóide com alterações de tipo reactivo; não se observava tumor desmóide ou neoplasia linfoproliferativa”. Nesse sentido, e mantendo-se a dúvida diagnóstica, o doente foi orientado para laparoscopia, convertida para laparotomia por não identificação das massas por laparoscopia. Feita biópsia excisional de massa sólida com cerca de 3cm de maior diâmetro no mesocólon transverso. A descrição anátomo-patológico identificava “baço com manutenção da arquitectura habitual com patência dos sinusóides da polpa vermelha e preservação da polpa branca” (Fig. 3).
Perante o resultado anátomo-patológico e os antecedentes de traumatismo esplénico do doente assume-se disseminação abdominal de tecido esplénico - esplenose.
DISCUSSÃO
Os casos de esplenose descritos são na maioria das vezes secundários a trauma, sendo que a principal hipótese sobre a sua etiologia é de que os fragmentos de parênquima se implementam sobre os tecidos, principalmente superfícies serosas, e conseguem restabelecer circulação, aumentar de tamanho, e tornar-se funcional e histologicamente semelhantes ao baço normal2, 3.
Uma vez que a maioria dos doentes são assintomáticos, os nódulos esplénicos são por vezes achados acidentais em exames imagiológicos ou durante actos cirúrgicos3. Neste doente a identificação das massas intra-abdominais foi feita após intercorrência aguda, não tendo o doente qualquer sintomatologia associada às mesmas. No seguimento do caso, e em relação às queixas de perda ponderal, observou-se um retorno ao peso habitual do doente quando o mesmo reduziu hábitos alcoólicos e iniciou alimentação com suporte nutricional adequado.
Os implantes esplénicos podem ser diagnosticados por biópsia ou preferencialmente por métodos não invasivos como cintigrafia hepato-esplénica com colóides marcados com tecnésio ou ecografia abdominal, sendo que a cintigrafia apresenta uma maior sensibilidade, permitindo um diagnóstico precoce e evitando a intervenção cirúrgica6, 7. Nestes doentes, por norma, a intervenção cirúrgica só é necessária no caso de doentes sintomáticos; nos casos assintomáticos, o tecido esplénico não deve ser removido uma vez que pode ser funcional, além disso existe um risco de sangramento ou de lesão de outros órgãos durante o acto cirúrgico3, 8. Infelizmente neste doente, as hipóteses colocadas pela TAC e PET (hipótese de se tratar de tumor desmóide), a referência a perda ponderal, a localização menos típica dos implantes de baço e a ausência de diagnóstico mesmo após biópsia guiada por ecografia, conduziu a uma abordagem mais agressiva do que seria necessário.
O diagnóstico desta patologia é cada vez mais frequente, talvez pela maior disponibilidade e pelo uso mais rotineiro de exames de imagem, mas também pela maior prevalência de traumatismo abdominal relacionado com acidentes rodoviários, como se verificou neste doente3.
Uma vez que na maioria dos casos os implantes são interpretados como adenopatias ou massas provavelmente neoplásicas, o diagnóstico não só acaba por ser tardio, como está associado a uma investigação alargada, com múltiplos exames (muitos deles invasivos) e com ónus emocional para os doentes (situação descrita neste caso clínico) .
Sendo a cintigrafia com tecnésio o exame de escolha para diagnóstico e acompanhamento destes doentes, e tratando-se de um método complementar de diagnóstico não invasivo, serve o presente artigo para alertar para a necessidade de inclusão de esplenose no diagnóstico diferencial de doentes com massas intra-abdominais a esclarecer, sobretudo quando existe história de traumatismo ou esplenectomia prévias, orientando-os para a realização de cintigrafia previamente aos exames invasivos.
Quadro I
Resultados analíticos
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Hemoglobina | 14.8g/dL |
Volume Corpuscular Médio | 108fL |
Plaquetas | 119 000/uL |
Protrombinémia | 108% |
Velocidade de Sedimentação | 5mm/H |
Creatinina | 0.66mg/dL |
Aspartato Aminotransferase | 110U/L |
Alanina Aminotransferase | 52U/L |
Gamaglutamiltransferase | 104U/L |
Lactato Desidrogenase | 525U/L |
Fosfatase Alcalina | 52U/L |
Bilirrubina Total | 0.89mg/dL |
Resultados analíticos
Figura I

Imagens de TC abdominal que revelam ao nível do mesentérico várias formações nodulares sólidas de contorno lobulado, que sofreram marcado efeito de realce após contraste.
Figura II

Imagens de PET que revelaram formações nodulares mesentéricas sem captação significativa de FDG-F18.
Figura III

Resultado anátomo-patológico das peças cirúrgicas, mostrando baço com preservação da polpa vermelha e branca.
BIBLIOGRAFIA
1. Buchbinder JH, Lipkoff CJ. Splenosis: multiple peritoneal splenic implants following abdominal injury. Surgery. 1939; 6 (6): 927-934.
2. Fremont RD, Rice TW. Splenosis: a review. Southern medical journal. 2007; 100 (6): 589-593.
3. Moreira RCL, Paula IS, Silva MMQ, et al. Relato de caso de esplenose: diagnóstico diferencial importante em pacientes esplenectomizados apresentando massas abdominais. Revista da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações. 2014; 12 (1): 748-754.
4. Buchino JJ, Buchino JJ. Thoracic splenosis. Southern medical journal. 1998; 9 (11): 1054-1056.
5. Di Constanzo GG, Picciotto FP, Marsilia GM, et al. Hepatic splenosis misinterpreted as hepatocellular carcinoma in cirrhotic patiens referred for liver transplantation: report two cases. Liver transplantation. 2004; 10 (5): 706-709.
6. Brandt CT, Brandão SCS, Domingues ALC, et al. Splenosis after splenectomy and spleen tissue autoimplantation: late followup study. Journal Indian Association Pediatric Surgery. 2012; 17 (3): 104-106.
7. Varma DG, Campeau RJ, Kartchner ZA, et al. Scintigraphic detection of splenosis causing ureteral compression and hydronephrosis. American journal of roentgenology. 1991; 156 (2): 406-406.
8. Ksiadzyna D, Pena AS. Abdominal splenosis. Revista Española de Enfermedades Digestivas. 2011; 103 (8): 421-426