Introdução
A Mucormicose consiste numa infeção fúngica invasiva, rapidamente progressiva e frequentemente fatal1. Trata-se de uma infeção oportunista, causada por fungos da ordem Mucorales e com distribuição ubíqua na natureza, podendo ser encontrados no solo, matéria em putrefação ou alimentos com bolor2. Afeta habitualmente indivíduos imunocomprometidos ou diabéticos mal controlados, em particular os que se apresentam em cetoacidose3,4.
A principal via de inoculação é inalatória dando origem, consoante o local de deposição dos esporos, à forma rinocerebral ou pulmonar da doença2,4. Também o sistema digestivo (por ingestão dos esporos), a pele e o tecido celular subcutâneo (por inoculação direta) ou qualquer outro órgão (por disseminação hematogénea) podem ser afetados2,4.
A mortalidade inerente a esta patologia varia, consoante os órgãos envolvidos e o momento do diagnóstico, entre os 50 e os 80%, podendo atingir os 100% quando há disseminação hematogénea com envolvimento cerebral5,6. Elevada suspeição clínica com início precoce da terapêutica, desbridamento cirúrgico atempado dos tecidos infetados e controlo dos fatores predisponentes são determinantes do prognóstico4.
Caso Clínico
Apresenta-se o caso de um homem de 69 anos, residente em moradia com condições de higiene precárias, fumador e consumidor regular de bebidas alcoólicas. História de epilepsia de longa data e, desde há 5 anos, de diabetes Mellitus tipo 2 medicada com antidiabéticos orais, com historial de incumprimento terapêutico e sem acompanhamento médico regular. Trazido ao serviço de urgência após ser encontrado caído no domicílio, prostrado. Havia sido visto dentro do seu habitual no dia anterior. À admissão no serviço de urgência encontrava-se sonolento, com discurso impercetível, sem défices neurológicos focais; emagrecido, desidratado, com hálito cetónico; respiração de Kussmaul, com saturação periférica de oxigénio em ar de 100%; hemodinamicamente estável (133/80 mmHg), apirético; sem alterações à auscultação cardiopulmonar ou ao exame objetivo do abdómen e membros; edema palpebral à direita, sem outras alterações cutâneas; fimose uretral com presença de exsudado purulento na glande. Gasimetria arterial compatível com cetoacidose grave (pH 6,81, HCO3 2,1 mmol/L, Anion Gap 33 mmol/L, Glicose 593 mg/dL), iniciando-se tratamento com soro fisiológico suplementado com potássio, insulina em perfusão e dose única de bicarbonato de sódio. Analítica com leucocitose de 23,27x103/uL, neutrofilia de 21,23x103/uL, proteína C reativa de 27,69 mg/dL e glicemia de 601 mg/dL, sem outras alterações; análise sumária da urina com glicosúria e cetonúria, sem nitritúria ou leucocitúria. Foi colhido rastreio sético (hemoculturas periféricas, urocultura e exsudado peri-uretral) e iniciada antibioterapia empírica com ceftriaxone, admitindo infeção urológica. Internado na Unidade de Cuidados Intermédios da Medicina. À admissão nesta Unidade encontrava-se mais reativo, referindo que apresentava, há 4 dias, o edema palpebral direito, desconhecendo fator precipitante ou traumatismo. Exame objetivo sobreponível ao da admissão hospitalar. Gasimetricamente com acidemia metabólica em correção. Admitindo celulite palpebral, com possível extensão à cavidade orbitária, associou-se clindamicina à antibioterapia empírica em curso. Às 12 horas de internamento encontrava-se novamente sonolento, cumprindo ordens de forma inconsistente, embora sem défices neurológicos focais. De novo apresentava equimose no epicanto interno do olho direito. Por apresentar alteração do estado de consciência desproporcional ao distúrbio metabólico, praticamente já corrigido, solicitou-se uma TC crânio-encefálica (CE) e das órbitas para exclusão de lesões cerebrovasculares agudas ou eventual extensão do processo infecioso palpebral ao sistema nervoso central. A TC demonstrou espessamento difuso dos tecidos moles periorbitários direitos, com extensão à região epicraniana frontal e aos tecidos moles intra-orbitários ipsilaterais, de natureza inespecífica; espessamento da mucosa das cavidades sinusais e opacificação das células etmoidais bilateralmente por conteúdo de provável natureza inflamatória crónica. Foi avaliado por Neurologia que considerou não haver evidência de focalização neurológica, admitindo etiologia metabólica para o quadro de prostração. Nas horas seguintes o doente mante-se sobreponível. Às 36 horas de internamento pontuava 7 na escala de coma de Glasgow (não verbalizava, não abria os olhos, localizava a dor à direita e à esquerda, reagia em extensão); apresentava reflexo cutâneo-plantar extensor à esquerda. A equimose observada no dia anterior encontrava-se mais extensa, com aspeto aparentemente necrótico (Fig. 1A). Apresentava também drenagem hemática no epicanto interno do olho e túnica conjuntival palpebral direitos, córnea ipsilateral opacificada e pupilas ligeiramente midriáticas, sem reação à confrontação e pouco reativas à luz. De novo, febril, temperatura axilar 38,3ºC. Repetiu-se TC CE e efetuou-se punção lombar [múltiplas tentativas, sem sucesso (obtida pequena amostra de líquor tipo água de rocha, em volume insuficiente para análise)]. Colheu-se novamente hemoculturas (prévias sem isolamento microbiológico) e escalou-se terapêutica empírica para piperacilina/tazobactan e vancomicina. Discussão com Neurorradiologia das imagens da TC dada aparente lesão isquémica bifrontobasal; realizada AngioTC para melhor caracterização e, face aos achados encontrados, Ressonância Magnética: identificado preenchimento por componente de partes moles das cavidades nasais e seios peri-nasais de predomínio direito, verificando-se ausência de realce da mucosa do septo nasal, conchas nasais direitas e, parcialmente, da concha nasal média esquerda, traduzindo necrose e desvitalização destas estruturas no contexto de provável infeção fúngica agressiva (Figs. 2 e 3); extensão deste processo infecioso à órbita e tecidos peri-orbitários pré-septais direitos; trombose séptica da veia oftálmica superior e do seio cavernoso à direita e redução do calibre do segmento cavernoso da artéria carótida direita por processo de arterite por contiguidade; múltiplas áreas de restrição à difusão no parênquima cerebral (em topografia bifrontobasal e bifrontopolar e temporomesial, parieto-occipital e núcleo-capsulo-talâmica anterior direitas), algumas consequência de encefalite fúngica/trombose de veias corticais e outras traduzindo enfartes isquémicos arteriais recentes secundários ao processo de arterite descrito (Fig.4). Admitindo infeção fúngica invasiva colheu-se amostra periorbitária e da cavidade nasal para exame histológico e cultural, associando-se anfotericina B à terapêutica. Discussão multidisciplinar com Otorrinolaringologia, Neurocirurgia, Oftalmologia e Anestesia – indicação para desbridamento cirúrgico agressivo, contudo dado o extenso envolvimento cerebral e episódio de periparagem durante entubação orotraqueal para proteção da via área, considerou-se não ter condições anestésicas nem vir a beneficiar de intervenção cirúrgica. O doente manteve febre sustentada e verificou-se progressão da área de necrose (Fig. 1B), acabando por falecer ao quinto dia de internamento. No tecido necrótico peri-orbitário e da cavidade nasal identificar-se-iam, no exame cultural, fungos filamentosos da ordem Mucorales, confirmando-se o diagnóstico de Mucormicose.
Discussão
A Mucormicose corresponde à terceira causa de infeções fúngicas invasivas, a seguir às infeções por Aspergillus e Candida6. A sua prevalência real é desconhecida embora estudos de base populacional apontem para uma incidência de 0,9 a 1,7 casos/milhão de habitantes/ano7,8, valor provavelmente subestimado dado o uso crescente de terapêuticas imunossupressoras e a maior sobrevida dos doentes que as utilizam2.
Nos imunocompetentes os neutrófilos e os macrófagos impedem a germinação dos esporos, pelo que condições que cursem com neutropenia [doenças (hemato)oncológicas, quimioterapia] ou compromisso da fagocitose ou da quimiotaxia dos neutrófilos (diabetes Mellitus, corticoterapia ou outros imunossupressores, urémia, malnutrição) constituem os principais fatores de risco para Mucormicose2,9,10. Um meio ácido e rico em ferro favorece o crescimento fúngico, apresentando também risco acrescido indivíduos com sobrecarga de ferro por transfusões sanguíneas múltiplas ou sob terapêutica com deferoxamina, utilizada pelos Mucorales como um sideróforo5,10,11. De ressalvar que a ausência de fatores de risco não permite excluir este diagnóstico, pois, apesar de raros, estão descritos na literatura casos de infeção na ausência de condições predisponentes9,12.
Estes fungos têm grande tropismo vascular: invadem o endotélio, causando trombose e isquemia dos tecidos envolvidos ou de outros órgãos à distância, por disseminação hematogénea e tromboembolismo sético2,5. A forma rinocerebral é a mais prevalente10, afetando habitualmente diabéticos mal controlados4,10. Nestes casos pensa-se que após inoculação na mucosa nasal, as hifas se propaguem até à fossa pterigopalatina, com invasão posterior dos tecidos adjacentes, podendo extender-se ao espaço retrobulbar ou ao sistema nervoso central por continuidade, com envolvimento preferencial dos lobos frontais, ou por disseminação hematogénea, podendo causar abcessos cerebrais e extensas áreas de enfarte.2,3,13
O envolvimento do sistema nervoso central pode manifestar-se de forma súbita, progredindo rapidamente para coma e morte2. O aparecimento de uma lesão necrótica (na cavidade nasal, palato ou epicanto do olho) é a principal pista diagnóstica mas nem sempre está presente3. Doentes que se apresentam com manifestações exclusivamente oculares, tais como edema palpebral, com ou sem eritema, podem, à semelhança do caso apresentado, não ter alterações significativas na TC inicial, com consequente atraso no diagnóstico3,4.
Um índice de suspeição elevado é fundamental, refletindo-se no prognóstico. Perante suspeita clínica deve iniciar-se de imediato terapêutica antifúngica sistémica, enquanto se aguarda pela confirmação diagnóstica, obtida por histologia e reforçada pelo exame cultural4,9. O tratamento de eleição é a anfotericina B, embora alguns estudos sugiram que a associação com equinocandinas ou com deferasirox seja benéfica14. Sempre que possível deve-se reverter condições predisponentes (como a cetoacidose ou a imunossupressão) e desbridar cirurgicamente os tecidos infetados, irrigando o campo cirúrgico com Anfotericina B, já que a vaso-oclusão característica desta infeção condiciona reduzida penetrância do antifúngico sistémico nos tecidos afetados4,15. Métodos de diagnóstico mais rápidos e novas estratégias terapêuticas e profiláticas continuam a ser necessários15. No entanto, a suspeição clínica será sempre o principal determinante do prognóstico.
Conclusão
Com este caso os autores pretendem alertar para esta entidade que, apesar de rara, tem estado a aumentar a par do número crescente de indivíduos imunodeprimidos. Só um diagnóstico precoce com início atempado do tratamento permitirá um prognóstico favorável.
Figura I

Figura 1- Progressão da área de necrose do epicanto interno do olho às 48 horas (A) e às 84 horas de internamento (B). À admissão hospitalar o doente apresentava edema palpebral, sem alterações da coloração da pele ou exsudado; evolução com aparecimento de lesão equimótica no epicanto interno do olho direito às 12 horas de internamento, com aumento dimensional progressivo e aspeto posteriormente necro-hemorrágico, com envolvimento da mucosa conjuntival palpebral.
Figura II

Figuras 2 e 3- Ressonância magnética crânio-encefálica demonstrando envolvimento por componente de partes moles das cavidades nasais e dos seios peri-nasais bilateralmente, de predomínio direito; após injeção de gadolínio verificou-se ausência de realce da mucosa do septo nasal, assim como das conchas nasais à direita e, parcialmente, da concha nasal média esquerda (“black turbinate sign”), traduzindo necrose e desvitalização destas estruturas no contexto de infeção fúngica agressiva (setas). Extensão por continuidade deste processo infecioso ao lobo frontal (cabeças de seta).
Figura III

Figuras 2 e 3- Ressonância magnética crânio-encefálica demonstrando envolvimento por componente de partes moles das cavidades nasais e dos seios peri-nasais bilateralmente, de predomínio direito; após injeção de gadolínio verificou-se ausência de realce da mucosa do septo nasal, assim como das conchas nasais à direita e, parcialmente, da concha nasal média esquerda (“black turbinate sign”), traduzindo necrose e desvitalização destas estruturas no contexto de infeção fúngica agressiva (setas). Extensão por continuidade deste processo infecioso ao lobo frontal (cabeças de seta).
Figura IV

Figura 4. Algumas das múltiplas áreas de restrição à difusão no parênquima cerebral observadas por ressonância magnética crânio-encefálica. Identificava-se restrição à difusão em topografia bi-fronto-basal e bi-fronto-polar, bem como nas regiões temporo-mesial, parieto-occipital e núcleo-capsulo-talâmica anterior direitas e ao longo do trajeto cisterna do nervo trigémio direito com extensão até à protuberância. Algumas destas áreas resultavam de encefalite fúngica/trombose de veias corticais, enquanto outras traduziam enfartes isquémicos arteriais recentes no contexto de arterite da carótida interna direita e embolização sética.
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