INTRODUÇÃO
A gastroenterite eosinofílica é uma doença inflamatória caracterizada pela infiltração eosinofílica do tubo digestivo;1 o seu pico de incidência verifica-se entre a terceira e a quinta décadas de vida.2 Todo o tubo digestivo, desde o esófago ao cólon, pode ser afectado.3Cerca de metade dos doentes têm história de uma doença alérgica, como asma, eczema, rinite ou alergias alimentares definidas.4
A apresentação clínica varia consoante o local, extensão e profundidade do envolvimento eosinofílico da parede do tubo digestivo. Os sintomas mais comuns são dor abdominal, náuseas, vómitos, diarreia, enfartamento, perda ponderal e ascite; a sua presença, em conjunto com achado de eosinofilia periférica (80% dos casos) deve fazer suspeitar desta entidade clínica.5
Para o diagnóstico é fundamental a exclusão do envolvimento de outros orgãos e a realização de endoscopia com biópsia. Os achados endoscópicos macroscópicos são pouco específicos, pode observar-se uma mucosa gástrica nodular ou polipóide, eritema ou erosões.6É essencial a obtenção de biópsias de mucosa de aspecto normal e alterado e o estudo histológico destas peças com a determinação de infiltração eosinofílica superior ao esperado para determinada área do tubo digestivo.7
Em doentes com infiltração da camada muscular ou subserosa as biópsias da mucosa podem ser normais, podendo ser necessário recorrer a biópsia por laparoscopia para o diagnóstico definitivo e exclusão de outras patologias.8
O tratamento é baseado inicialmente na evicção do alimento ou fármaco potencialmente responsável, quando identificado, ou pela adopção de uma dieta elementar.9Nos doentes em que a estratégia alimentar não funciona pode estar indicado um curso de corticoterapia de duas semanas com posterior redução progressiva de dose.9,10
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino de 69 anos, caucasiana, autónoma, com história de hipertensão arterial, dislipidémia e síndrome depressivo. Medicada com amissulprida e sertralina desde há dois anos.
Admitida por história de diarreia crónica, 3 a 4 dejecções por dia, semi-líquidas, sem sangue ou muco, com 4 meses de evolução; referindo ainda náuseas e vómitos aquosos, astenia, anorexia não selectiva e distensão e dor abdominal difusa.
Ao exame objectivo, apresentava-se vigil, orientada, colaborante, lentificada. Pressão arterial 126/68mmHg, FC 82bpm. Palidez cutânea, mucosas desidratadas; eupneica em ar ambiente, SpO2 97%. Sem adenopatias palpáveis. Sons cardíacos rítmicos, sem sopros; murmúrio vesicular mantido e simétrico, sem ruídos adventícios. Abdómen globoso, distendido, ruídos hidroaéreos de timbre e intensidade normal, com onda líquida ascítica presente, sem tensão. Edema dos membros inferiores até aos joelhos, depressível, bilateral e simétrico.
Na admissão era portadora de exames complementares de diagnóstico, realizados em ambulatório, nomeadamente, ecografia abdominal a evidenciar a presença de líquido ascítico e colonoscopia total com visualização de mucosa edemaciada e focos de hiperémia; o resultado do estudo anatomo-patológico das biópsias do cólon era compatível com colite colangenosa; realizou ainda, previamente ao internamento, coproculturas e pesquisa de ovos e parasitas nas fezes que foram negativas.
Na avaliação analítica realizada à admissão no internamento (Fig. 1), hemoglobina 13,1g/dL, hipoalbuminémia de 2.2g/dL, siderémia no limite inferior do normal (59mcg/dL) e discreta eosinofilia periférica 8 400 leucócitos/mcL com 1300 eosinófilos, VS 32mm/h, esfregaço de sangue periférico e ionograma sem alterações.
Realizou electrocardiograma de 12 derivações, em ritmo sinusal, frequência cardíaca de 68 batimentos por minuto; radiografia do tórax sem alterações do índice cardiotorácico, sem imagens sugestivas de condensação ou derrame;paracentese com saída de 4 litros de líquido cítrico com estudo cito-químico compatível com um exsudado (Fig. 2), 1 350 leucócitos/mcL, predomínio de células polimorfonucleares, 30% de eosinófilos, adenosina desaminase 31 UI/L, gradiente sero-ascítico de albumina inferior a 1,1 g/dL. Exame bacteriológico e anatomo-patológico sem alterações.
A serologia para o vírus da imunodeficiência humana e o estudo auto-imune (anticorpos anti-nucleares) foram negativos, níveis de vitamina B12 e ácido fólico normais, proteinograma electroforético com alteração na região gama, doseamento de imunoglobulinas com elevação de imunoglobulina E sérica, 500mg/dL.
Pedida Tomografia computorizada (TC) abdomino-pélvica: espessamento parietal concêntrico, mais evidente no intestino delgado proximal; vários gânglios retroperitoneais, com um curto eixo infra-centimétrico. Adenomegalias ilíacas primitivas direitas e ilíacas primitivas internas e externas bilateralmente. Líquido livre intraperitoneal em quantidade moderada. Derrame pleural à esquerda.
Perante suspeita de Gastroenterite eosinofílica, a doente negava introdução recente (no último ano) de fármacos novos ou alimentos que não fossem já habituais na sua dieta. Realizou endoscopia digestiva alta com evidência de mucosa hiperemiada, sem outras lesões, tendo sido realizadas biópsias do jejuno, bulbo, antro, corpo e esófago proximal cujo estudo histológico evidenciou marcada hiperplasia foveolar e edema da lâmina própria acompanhado de infiltrado linfoplasmocitário.
Para exclusão de quadro congestivo de origem cardíaca, realizou ecocardiograma transtorácico com evidência de ligeira hipertrofia do ventrículo esquerdo e boa função sistólica global.Teve alta para a consulta de Medicina Interna, estabilizada, com ajuste do plano alimentar, medicada com furosemida 40mg por dia; manteve vigilância clínica, analítica e imagiológica.
Neste contexto e tendo em conta o agravamento dos sintomas (astenia e anorexia e dejeções diarreicas aquosas), repetiu TC abdomino-pélvica um mês após a alta, com descrição de aumento do volume do derrame pleural e da ascite; persistência de espessamento parietal difuso envolvendo ansas de delgado proximal.
Foi novamente internada por agravamento do estado geral, realizada toracocentese com líquido pleural com estudo cito-químico compatível com um exsudado, sem células neoplásicas, zhiel-nielsen e exame bacteriológico negativos (Fig. 3).Perante alterações inespecíficas no proteinograma realizou mielograma que evidenciou aumento do número de elementos da linhagem eosinófila (22% da celularidade global), sem alterações morfológicas. Mantendo-se elevada suspeita de Gastroenterite eosinofílica, repetiu endoscopia digestiva alta com mucosa bulbar e duodenal edemaciada e de aparência polipoide em D2; biópsias compatíveis com gastroenterite eosinofílica (Fig. 4).
A doente iniciou tratamento com corticóide, prednisolona 20mg, duas vezes por dia, durante duas semanas, com redução posterior da dose de forma progressiva até à sua suspensão. Evoluiu com franca melhoria do seu estado geral, resolução da sintomatologia gastrointestinal e regressão do edema e de eosinofilia periférica.
Mantém seguimento em consulta de Medicina Interna, persistindo um ano após o diagnóstico e tratamento a ausência de sintomas e de alterações analíticas.
DISCUSSÃO
Os critérios para o diagnóstico de gastroenterite eosinofílica incluem: infiltração eosinofílica em número superior a 20 eosinófilos por campo de grande ampliação numa ou em múltiplas áreas do tubo digestivo, sintomas gastrointestinais inespecíficos na ausência de sintomatologia extra-intestinal ou de infecção por parasitas.11 A sua patogénese não está totalmente esclarecida sendo que muitas características epidemiológicas e clinicas sugerem um componente alérgico. É comum estes doentes terem valores de imunoglobulina E elevados.6
As características clínicas da doença variam com a localização, extensão e camada tecidular afectada. Assim, o envolvimento da mucosa cursa mais frequentemente com dor abdominal, náuseas, vómitos, enfartamento e diarreia.5Doentes com doença difusa do intestino delgado podem desenvolver má absorção e enteropatia perdedora de proteínas. O envolvimento da muscular manifesta-se sobretudo pela diminuição da motilidade intestinal, podendo evoluir para obstrução.5 Nos doentes com envolvimento esofágico, podem surgir sintomas de pseudo-acalásia ou estenose esofágica, como disfagia e regurgitação. Já os doentes com envolvimento da subserosa, podem apresentar-se apenas com ascite.
No caso apresentado, tendo em conta as queixas predominantes de náuseas e vómitos aquosos, diarreia e apresentação em anasarca, admite-se o envolvimento da mucosa e subserosa. Embora todas as áreas do trato gastrointestinal possam estar afectadas, na nossa doente as biópsias foram apenas diagnósticas a nível do duodeno. A presença de eosinofilia periférica, da elevação da imunoglobulina E e de hipoalbuminémia (sugestiva de malabsorção) tornavam a hipótese inicial muito provável motivando assim a insistência na repetição de exames invasivos.
A grande dificuldade, sobretudo numa doente de 70 anos, é excluir outras patologias que pudessem justificar um quadro consumptivo e de anasarca. A doente realizou TC toraco-abdomino-pélvica com exclusão de neoplasia sólida; mielograma sem evidência de neoplasia hematológica e exame anatomo-patológico quer do líquido ascítico, quer do líquido pleural também sem evidência de células neoplásicas. De destacar ainda a exclusão de etiologia infecciosa, nomeadamente por parasitas, quer pela história epidemiológica, quer pelo exame de pesquisa de ovos e parasitas nas fezes e coproculturas.
Após o início de corticoterapia a doente evoluíu de forma favorável, com regressão dos sintomas gastrointestinais, resolução do quadro de malabsorção e de anasarca. Esta melhoria, com um curso curto de prednisolona, 2 semanas com posterior redução da dose até à sua suspensão em um mês, revelou-se sustentada, sem evidência clínica ou analítica de recorrência da doença num seguimento em consulta mais de um ano após o tratamento.
Apesar desta evolução favorável, é sabido que há doentes que podem não responder à corticoterapia ou necessitar de um curso mais prolongado ou inclusivamente de terapêutica endovenosa.12 Torna-se fulcral, nestes doentes refratários, uma revisão do diagnóstico e exclusão de patologias alternativas.13
CONCLUSÃO
Este caso ilustra a dificuldade no diagnóstico de uma doença rara e com uma apresentação inespecífica em que é fundamental a exclusão de diagnósticos alternativos.14 Neste caso foi essencial o seguimento e a elevada suspeição clínica.
A gastroenterite eosinofílica é uma entidade rara, mais ainda na faixa etária aqui apresentada, pelo que se considerou pertinente expor este caso e chamar a atenção para as mútiplas pistas diagnósticas que nele configuram (eosinofilia periférica, síndrome de malabsorção, ausência de acometimento de outros órgãos).
Figura I

Análises séricas do dia de admissão
Figura II

Análises do líquido ascítico | *GASA (Gradiente de Albumina Soro-Ascite)
Figura III

Análises do líquido pleural
Figura IV

Mucosa duodenal com morfologia conservada com infiltrado rico em eosinófilos.
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