Introdução:
Os episódios de urgência associados à utilização de substâncias de abuso têm aumentado não só pela mudança no padrão de consumo e aparecimento de novas drogas, mas também pela facilidade na adquisição.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE)1, os resultados epidemiológicos nacionais de 2012, evidenciaram aumento do consumo de novas substâncias psicopativas (NSP), mas não existem dados relativos aos poppers.
Qualquer consumo de drogas, mesmo que recreativo, condiciona um aumento da morbi-mortalidade, que apesar de reconhecido para os opioídes e cocaína, é desvalorizado no que diz respeito às “novas drogas” como o GHB (ecstasy líquido) ou os nitritos (Poppers)2,3.
Caso clinico:
Mulher, caucasiana, 35 anos de idade, sem antecedentes médicos de relevo, recorre ao Serviço de Urgência por dispneia progressiva e cefaleia com 3 horas de evolução.
Apresentava-se consciente, colaborante e orientada, sem défices neurológicos. Destacava-se cianose central e ligeira polipneia: Frequência respiratória de 27 ciclos por minuto, e com saturação periférica (SatO2) de 88% em ar (aa) medida por oximetria de pulso. Era notável a cianose a nível ungueal e das extremidades. Apirética, hemodinamicamente estável e frequência cardíaca de 90 batimentos por minuto. A auscultação cardio-pulmonar e o restante exame objetivo, não revelavam alterações.
Após o inicio de oxigenoterapia com máscara de alto concentração, a doente mantinha SatO2 de 88%. Realizada gasometria arterial (GSA): pH 7,42; pCO2 34mmHg; pO2 64,4mmHg; SatO2 91,4%; Lactatos 0,9; e ratio pO2/FiO2 307. A co-oximetria: fração de metemoglobina (FMethHb) de 37,3% e oxihemoglobina (FO2Hb) de 56,7%. Analiticamente apresentava: hemoglobina 13,3 g/dL, leucócitos 11,49/mm^3 e plaquetas 224x10^3/uL. Os valores séricos de bilirrubina, ureia e creatinina, encontravam-se dentro da normalidade. A radiografia torácica e eletrocardiograma também.
Perante a discordância clinico-analítica, e após inquirir diretamente a doente sobre o uso de drogas, esta admitiu o uso de Poppers inalados, 4 horas antes, sem consumo concomitante de álcool ou outras drogas ilícitas.
Após contacto com o Centro de Informação Antivenenos, e com o diagnostico clinico-analítico de Metahemoglobinemia (MethHb), foi iniciado azul de metileno endovenoso.
Com o início do antidoto, rapidamente, se seguiu um aumento progressivo da SatO2 para 100%, e a GSA aos 60 minutos revelava: pO2 80,5mmHg; SatO2 95,7%; A co-oximetria uma FMethHb de 1,1%.
A Tabela 1 mostra a evolução dos parâmetros gasimétricos e de co-oximetria.
A doente evoluiu favoravelmente durante o período de vigilância de 12 horas, com resolução completa da cianose central e alterações gasimétricas, assim como dos sintomas, tendo tido alta.
Discussão:
A MethHb é causada pelo aumento da concentração de MHb no sangue4, que ocorre por alterações congénitas na síntese ou no metabolismo da Hb, e situações agudas de desequilíbrio nas reações de redução/oxidação, induzidas pela exposição a agentes químicos5. A principal característica é a cianose central, que não responde à oxigenoterapia6,7.
OsPopperssão compostos de nitritos inorgânicos, em particular, o nitrilo de amilo, butilo e isobutilo8, e têm-se popularizado pelas suas propriedades afrodisíacas, vasodilatadoras e relaxamento do músculo liso.
São substancias voláteis, que se absorvem de forma rápida por via inalatória, mas também podem ser consumidos por via oral, dada a sua boa absorção por via digestiva. São metabolizados pelo fígado, e excretados pela urina9. Atuam aumentando a síntese do GMP-cíclico intracelular, que ativa a miosina-fosfatase, promovendo a desfosforilação da miosina da fibra muscular lisa e provoca o seu relaxamento. Este fenómeno é acompanhado por manifestações de vasodilatação, como cefaleias, hipotensão arterial e/ou síncope, e também vómitos ou diarreias. Mas também são agentes oxidantes, capazes de converter o ferro ferroso do grupo heme, em ferro férrico (Fe+++), transformando a Hb em MHb, conferindo assim ao paciente, um tom acinzentado/cianótico, característico3.
O Fe+++provoca ainda a mudança alostérica na porção heme da Hb parcialmente oxidada, aumentando a sua afinidade pelo O2. Assim, além de a MHb não se ligar ao O2, ela desvia a curva de dissociação da Hb para a esquerda, prejudicando a libertação de O2 nos tecidos.
Qualquer agente oxidante pode provocar MHb (Tabela 2). É essencial não descurar a sépsis, crise de anemia falciforme e doenças congénitas10, 11.
Segundo aFood and Drug Administration, grande parte das intoxicações tem como agentes causadores os nitritos ou nitratos, substâncias que são usadas de forma frequente na indústria alimentar (corantes), mas mais recentemente nas NSP11.
Diariamente a Hb sofre oxidação a MHb, mas, graças ao sistema redox, os níveis mantem-se <2%. Outros sistemas que auxiliam são o ácido ascórbico, o glutation e a NADPH desidrogenase, mas de forma menos significativa10,12.
As manifestações clínicas refletem a diminuição da capacidade de transporte de O2, e dependem da concentração de MHb no sangue (Tabela 3). A cianose é aparente quando o nível de MHb excede 1,5g/dL10.
A SatO2 pode ser medida por oximetria de pulso, gasometria arterial e co-oximetria. Em indivíduos sem dishemoglobinas os valores são sobreponíveis. A co-oximetria é o método mais mais fiável, e permite determinar as diferentes formas de Hb10,12.
Em relação ao tratamento, este depende da gravidade. Nos casos ligeiros, a suspensão do agente oxidante e a utilização de oxigénio suplementar, habitualmente é suficiente. Perante sintomas moderados/graves, para além das medidas de suporte, preconiza-se a utilização do antídoto, o azul de metileno.
É utilizado nas formas sintomáticas e MHb> 20%. A dose é de 1mg/kg, por via endovenosa, em perfusão de cinco a dez minutos. Pode-se repetir se os níveis forem >60% ou na ausência de melhoria. A dose total não deve exceder os 7mg/kg devido ao aumento da ocorrência de efeitos adversos.
O ácido ascórbico pode também ser considerado, conquanto, a resposta é lenta. Em casos extremamente graves, a exsanguino-transfusão e a administração de O2 hiperbárico, podem ser opções, mas não há demonstração de eficácia10,12.
O diagnóstico depende de um elevado índice de suspeição.
A suspeita deve ser colocada na presença de cianose com pressão parcial de oxigénio normal na gasometria, e quando a SatO2 periférica não aumenta com o aporte de oxigénio suplementar. Outro indício é o“saturation gap”, a disparidade entre as diferentes técnicas usadas para medir a SatO2: oximetria de pulso e gasometria arterial.
É fundamental o seu reconhecimento precoce, dada a importante morbilidade, e ser potencialmente fatal.
Fontes de financiamento: os autores declaram não ter havido fontes de financiamento.
Conflitos de interesse: Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Apresentações: XXIV CNMI de Medicina Interna, a 1 de junho de 2018 no Centro de Congressos do Algarve, em Albufeira.
Quadro I
Tabela 1
| pH | pCO2 | pO2 | SatO2 | FO2Hb | FMethHb | FHHb | FCOHb |
| | | | | | | | |
0min - FiO2 21% | 7,43 | 34 | 64,4 | 91,4% | 56,7% | 37,3% | 5,3% | 0,7% |
60min após antidoto – FiO2 35% | 7,39 | 37,7 | 80,5 | 95,7% | 93,3% | 1,1% | 4,2% | 1,4% |
4h após antidoto – FiO2 21% | 7,41 | 35 | 75,4 | 94,2% | 92,8% | 0,7% | 5,7% | 0,8% |
12h após antidoto – FiO2 21% | 7,41 | 36 | 76,6 | 94,9% | 93,6% | 0,3% | 5% | 1,1% |
Evolução dos parâmetros gasimétricos e de co-oximetria.
Quadro II
Tabela 2
Fármacos | | Agentes Químicos | |
| | | |
Acetaminofeno Ácido p-amino salicilico | Nitratos: Nitrato de amilo Nitrato de prata Nitrato de sódio Nitroglicerina Nitroprussiato | Anilinas Aminofenol | Paraquato |
Anestésicos locais: Benzocaína Bupivacáina Lidocaína Prilocaína | Nitritos: Nitrito de amilo Nitrito de isobutil | Benzeno Cobre bivalente | Nitratos |
Antimaláricos | Óxido Nítrico Óxido nitroso | Cloratos | Toluidina |
Anticonvulsivantes: Áidco valpróico Fenitoína | Rifampicina Sulfassalazina | Dinitrofenol | Trinitrotolueno (TNT) |
Antibióticos: Nitrofurantoína Sulfametoxazol | Sulfapiridina Sulfanilamida Sulfonas | Fenol | |
Hipoglicemiantes orais Dapsona | | Fumo de escapes, queimadas de madeira e plástico | |
Metoclopramida | | Isobuil nitrito Butil nitrito | |
Fármacos e agentes químicos capazes de induzir Metahemoglobinemia.
Quadro III
Tabela 3
MHb | Sinais e sintomas |
(%) | |
<3% | - |
3-15% | Assintomáticos a aparecimento da cianose (tom acinzentado) |
30-50% | Dispneia Cefaleia Fadiga Tonturas, síncope SpO2< 90% |
50-70% | Acidose metabólica Arritmias cardíacas Convulsões Depressão do SNC Coma |
>70% | Potencialmente fatal |
Manifestações clínicas da Metahemoglobinemia
BIBLIOGRAFIA
1. Relatório anual 2015 do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências: Matéria de Drogas e Toxicodependências; [consultado 2017 Nov 20]. Disponível em: em http://www.sicad.pt.
2. 2011 National Report (2010 data) to the European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, by the Reitox National Focal Point. “Portugal”. New Development, Trends and in-depth information on selected issues; [consultado 2017 Nov 05]. Disponível em http://www.emcdda.europa.eu/.
3. Pajarón M, Claver G, Nogué S, Munné P. Metahemoglobinemia secundaria al consumo de poppers con ánimo recreativo. Med Clin (Barc). 2003;121:358;
4. Yang JJ, Lin N, Lv R et al. Methemoglobinemia misdiagnosed as ruptured ectopic pregnancy. Acta Anaesthesiol Scand, 2005; 49:586-588;
5. Greer FR, Shannon M. Infant methemoglobinemia: the role of dietary nitrate in food and water. Pediatrics, 2005;116:784-786;
6. Chui JSW, Poon WT, Chan KC et al. Nitrite-induced methaemoglobinaemia — aetiology, diagnosis and treatment. Anaesthesia,2005;60:496-500. Johnson D — Perioperative methemoglobinemia. Can J Anaesth, 2005;52:665-668;
7. Aepfelbacher FC, Breen P, Manning WJ. Methemoglobinemia and topical pharyngeal anesthesia. N Engl J Med, 2003;348:85-86;
8. Staïkowski F, Perret A, Péviriéri F, Zanker C, Zerkak D, Pelloux P, et al. L’intoxication au «poppers», cause rare de méthémoglobinémie observée aux urgences. Press Med 1997;26:1381;
9. Nascimento TS, Pereira ROL, Mello HLD, Costa J. Metahemoglobinemia: del Diagnóstico al Tratamiento. Revista Brasileira de Anestesiologia. Vol. 58, No 6, Novembro-Dezembro, 2008;
10. Clinical features, diagnosis, and treatment of methemoglobinemia. [consultado 2017 Dez 04]. Disponível em http://uptodate.com;
11. Food and Drug Administration. [consultado 2017 Nov 10].Disponível em https://www.fda.gov/Food/IngredientsPackagingLabeling/FoodAdditivesIngredients/ucm091048.htm.
12. Carvalho Claúdia, Ribeiro Natália, Alves Carlos Lima, Gomes Helena, Sarmento António. Metemoglobinemia: Revisão a Propósito de um Caso. Arq Med [Internet]. 2011 Jun; 25( 3 ): 100-106.