Introdução
A Brucelose é uma zoonose causada por cocobacilos gram negativos do género Bucella. Transmite-se por contacto direto com animais (60% dos casos) ou indireto através de secreções, aerossóis contaminados, inoculação no saco conjuntival ou ingestão de produtos não pasteurizados (25% dos casos), ingestão de sangue e medula óssea. A transmissão entre humanos é rara, no entanto estão identificados casos de transmissão sexual, intrauterina e por aleitamento materno.1
Embora presente em todo o mundo, as áreas endémicas são: América Central e do Sul, Índia e Bacia do Mediterrâneo.2 Em Portugal, entre 2012 e 2015, registaram-se 155 casos.3
Segundo a duração dos sintomas, esta patologia classifica-se em aguda (até dois meses) ou crónica (superior a dois meses).4
É uma doença sistémica que pode atingir os sistemas osteo-articular, nervoso central, cardiovascular, respiratório e génitourinário, por via hematogénica.2,5,6
Com o tratamento apropriado o prognóstico é favorável, com uma taxa de mortalidade inferior a 1%.2
Caso Clínico
Homem de 28 anos, leucodermico, Artista de circo, sem antecedentes patológicos e familiares relevantes. Em Agosto iniciou quando de febre, sudorese noturna, mialgias e anorexia, intercalado por períodos em que encontrava assintomático; por esse motivo foi observado em consulta externa em Dezembro. Da colheita da anamnese salientava-se consumo de produtos não pasteurizados. Colocada a hipótese de processo infecioso realizou estudo do qual se destaca hepatomegalia, aumento discreto de transaminases e da velocidade de sedimentação e teste Rosa Bengala negativo.
Em fevereiro, recorreu ao serviço de urgência por dor e edema do testículo direito associado a agravamento da perda ponderal ficando internado no serviço de Medicina. Ao exame físico encontrava-se emagrecido, com palidez cutânea, sem adenopatias palpáveis, normotenso, febril, curva de saturação periférica de oxigénio adequada, auscultação cardiopulmonar e exame abdominal sem alterações, várias peças dentárias em mau estado de conservação, edema e rubor testicular com cordão doloroso à direita, condicionando impotência funcional do membro inferior direito. (Figura 1)
Analiticamente: Leucograma sem alterações, trombocitopenia (147000/uL), velocidade de sedimentação 24mm/h, alanina aminotransferase 68 U/L, aspartato aminotransferase 69 U/L, gamaglutamiltransferase 71 U/L, lactato desidrogenase 481 U/L, proteína C reactiva 171 mg/L, ferritina elevada, serologia Reação Rosa Bengala positivo e Reação de wright negativo. Ensaio imunoenzimático positivo para Brucella abortus com IgG 26UA, IgM 13UA, IgA 37U/mL. Hemocultura positiva para Brucella spp.
Efetuou estudo complementar por ecografia abdominal superior que identificou hepatomegalia homogénea, sem outras alterações; ecografia escrotal: testículo direito de maiores dimensões e mais hipoecogénico que o contralateral, maiores dimensões na porção cefálica do epididimo e hidrocele septado ao nível da bolsa escrotal direita e ecocardiograma transtorácico e transesofágico que não revelaram sinais patológicos.
Estabelecendo-se o diagnóstico de Orquiepididimite brucélica, iniciou antibioterapia com Rifampicina 600 mg/dia oral e Doxiciclina 100mg 12/12h oral que cumpriu durante 6 meses.
O doente teve alta ao fim de oito dias de internamento com franca melhoria clínica com indicação para manter seguimento em consulta externa numa periodocidade de 3 em 3 meses na fase inicial e posteriormente de 6 em 6 meses até completar 2 anos de remissão da doença.
Discussão
A Brucelose é uma doença endémica em Portugal, com casos humanos notificados em todas as regiões do país pelo que, perante um doente com síndrome febril sem foco evidente, deve ser equacionada. A história clínica detalhada é crucial para colocar esta hipótese diagnostica e fundamentar o estudo exaustivo desta patologia por meios complementares de diagnóstico.
É uma patologia sistémica, que pode apresentar formas localizadas, sendo a orquiepididimite a forma localizada genitourinária mais comum.7 A orquididimite brucélica está descrita em 2 a 20 % dos doentes com Brucelose. O diagnóstico é estabelecido conjugando sinais e sintomas gerais (febre, sudorese nocturna, artralgias, hepatomegalia, anorexia, perda ponderal, astenia, cefaleias, náuseas e vómitos com sinais), sintomas específicos (dor e inflamação escrotal) e dados laboratoriais.
O diagnóstico definitivo estabelece-se pelo isolamento do agente causal ou pela identificação de anticorpos específicos por testes serológicos. Esses testes incluem teste Rosa Bengala (que necessita de outro teste serológico ou cultural confirmatório), teste de Wright, teste de 3-mercapto-etanol, fixação do complemento, imunofluorescência indirecta e teste imunoenzimático.8 A escolha do melhor teste de screening e confirmatório deve ter em conta a sensibilidade e especificidade do mesmo, e o estadio evolutivo da doença. (Tabela I)
O caso clínico descrito revelou-se um desafio pelo mismatch entre a clínica e os resultados dos meios complementares de diagnóstico, que não confirmaram numa primeira fase a hipótese de Brucelose. O diagnóstico de orquiepididimite, seis meses depois do início da restante clínica, assim como a história pessoal do doente (hábitos de vida nómada, contacto com animais e consumo de queijo não pasteurizado) levou a reequacionar essa possível etiologia.
O teste rosa bengala é um método de rastreio rápido com especificidade de 100%, contudo com sensibilidade analítica de cerca de 25%.12Esta baixa sensibilidade, condicionou um primeiro resultado negativo.
Os testes confirmatórios realizados foram: a hemocultura (cuja sensibilidade varia de 15 a 70% em grande parte devido ao crescimento lento da bactéria, o que leva a que a positividade seja adiada 2 a 3 semanas)1,8 o teste ELISA (teste serológico com maior sensibilidade e especificidade comprovada) e ainda o teste de Wright que no caso descrito se revelou negativo (de acordo com o esperado num caso de Brucelose com 6 meses de evolução).
Existem sete espécies do género Brucella, mas apenas quatro atingem o ser humano: Brucella mellitensis (o mais comum na população em geral, presente em cabras, ovelhas e camelos), Brucella abortus (gado bovino), Brucella suis e Brucella canis (suínos e cães, respectivamente).
No caso clínico apresentado, foi identificado como agente causal a Brucella abortus, que ainda que sendo a mais largamente disseminada, representa um menor número de casos em humanos, comparativamente à Brucella Melitensis. 12
A Ecografia escrotal permitiu a confirmação de orquiepididimite, assim como a exclusão de outras patologias, como abcesso e lesão tumoral. O estudo por métodos de imagem descreve habitualmente um aumento do volume e hipoecogenecidade testicular e do epidídimo, presença de hidrocele, espessamento escrotal, hipervascularização, podendo existir lesões granulomatosas e/ou necrotizantes. 13,14
O tratamento tem por objetivo o controlo da doença e a prevenção de complicações, recidivas (descritas até 10% no primeiro ano) e sequelas.9,10
Após a primeira semana no organismo, a Brucella aloja-se preferencialmente no sistema reticulo endotelial da célula pelo que, é fundamental o uso de terapêutica combinada com antibióticos com atividade em ambiente intracelular ácido, por um período de tempo prolongado. As combinações antimicrobianas mais frequentemente utilizadas são a doxiciclina com estreptomicina, gentamicina, ou rifampicina. O regime triplo está indicado em casos graves como neurobrucelose e endocardite.
A escolha da antibioterapia e a duração da mesma é controversa. As referências bibliográficas recomendam na maioria dos casos de orquiepididimite brucélica seis semanas de tratamento, podendo ser prolongadas até às 12 semanas. No entanto, recomendam 3 a 6 meses de tratamento em situações de doença crónica, a conjugar com adequada resposta serológica (descida do titulo de anticorpos e desaparecimento das IgM).1,15
No caso clínico relatado optou-se por prolongar a antibioterapia durante seis meses, pelo facto do doente apresentar sintomatologia arrastada, compatível com Brucelose crónica, tendo a forma localizada surgido posteriormente, assim como pela persistência de título positivo de IgM, apesar de se registar uma descida acentuada. A escolha da rifampicina em detrimento da estreptomicina ou gentamicina foi condicionada pela possibilidade do doente cumprir a terapêutica no domicilio, por via oral. Dada a elevada toxicidade dos fármacos, foram efetuados estudos analíticos seriados para monitorização do perfil hematológico e hepático do doente e atendendo à elevada taxa de recidiva descrita na literatura estabeleceu-se um follow-up alvo de dois anos.
Em conclusão, a Brucelose é uma doença sistémica que pode ter diversos fenótipos, sendo a orquiepididimite, a forma genitourinária localizada mais comum. É fundamental uma história clínica detalhada para a suspeição diagnóstica e confirmação pelos meios complementares apropriados.
Quadro I
Testes serológicos
| | | |
| Brucelose aguda | Brucelose crónica | Brucelose localizada |
Hemoculturas/ mielocultura | +++ | ± | ± |
Teste de Wright/ Huddlesen | +++ (1ª-2ª semanas) | - | ± |
Teste Rosa Bengala | + (2ª semana) | ± | + |
Teste de 3 mercapto-etanol | + (2ª semana) | ± | ++ |
Fixação do complemento | ++ (3ª-4ª semana) | ± | ++ |
Imunofluorescência indireta | ++ (2ª-3ª semana) | + | ++ |
LISA | + ++ (1ª-2ª semana) | + | + |
Resultados serológicos em função do estadio evolutivo e dos testes aplicados. Adaptado de: Brucelose – uma revisão sistematizada;Revista Portuguesa de Medicina Interna 2003; 101.
Figura I

Testículo direito ruborizado e com edema.
Figura II

Ecografia escrotal: testículo dereito e porção cefálica do epididimo aumentados de tamanho, e circulação arterial e venosa más exuberantes, aspectos que traduzem orquiepididimite.
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