Introdução
A infeção aguda por Citomegalovirus (CMV) pode associar-se a alterações da coagulação, com trombose venosa ou arterial, com espectro de gravidade variável desde assintomática a quadros mais graves de tromboembolismo pulmonar (TEP) ou enfarte agudo do miocárdio (EAM). A infeção é mais frequente nos imunodeprimidos, estando o TEP descrito como complicação de infeção aguda por CMV, principalmente nos doentes com infeção por VIH e transplantados1. Contudo, a infeção aguda por CMV pode ocorrer também nos imunocompetentes, sendo geralmente assintomática; nestes casos, estima-se que a seropositividade para o CMV varie entre 40-100% dependendo da população1,2. Quando sintomática apresenta-se frequentemente como um síndrome mononucleósico; raramente, pode apresentar-se com quadros complicados de pneumonia, colite, miopericardite, ou anemia hemolítica3. O diagnóstico de TEP idiopático é frequente na Medicina, e nestas situações é raro considerar-se uma infeção, como a citomegalovirose, como causa possível4.
Apesar da trombose associada a infeção por CMV ser rara, nos últimos anos têm sido reportados vários casos de trombose da veia porta em contexto de infeção aguda, nomeadamente em indivíduos imunocompetentes5. A incidência de trombose nos doentes internados com infeção aguda por CMV situa-se nos 6,4%, mas acredita-se que este valor possa ser subestimado uma vez que não se exclui por rotina trombose nos doentes com citamegalovirose6. A citólise hepática ou quadros de hepatite aguda, em contexto de infeção vírica, tal como a citomegalovirose, parecem predispor à ocorrência de trombose da veia porta7. Quanto aos locais de trombose, um estudo de 2011 conclui que a trombose venosa profunda (TVP) e/ou TEP eram os mais frequentes (53,6%), seguido do território esplâncnico (veia porta, mesentérica superior e inferior) em 25,8% e por fim a trombose esplénica (12,4%), podendo também ocorrer trombose da jugular interna, seios venosos cerebrais, braquial e ázigos8. A trombose arterial é mais rara, mas estão descritos casos de enfarte renal, EAM e isquemia periférica 8.
Caso Clínico
Doente do sexo feminino, 32 anos, caucasiana, enfermeira, com história pessoal de tiroidite autoimune medicada com levotiroxina, e sob contraceptivo oral à base de progestativo (desogestrel). Salientava-se ainda um parto eutócico há 18 meses. Admitida por um quadro com de 10 dias evolução, caracterizado por febre (38.5ºC-39ºC) com picos de 4 em 4h que cediam mal aos antipiréticos, e toraco-lombalgia direita com características pleuríticas. Tinha já cumprido um ciclo de antibioterapia empírica com amoxicilina/ácido clavulânico e azitromicina durante 8 dias, sem melhoria clínica. Ao exame objetivo encontrava-se febril (39ºC), corada, anictérica, acianótica, sem hiperemia ou exsudados amigdalinos, sem alterações na auscultação cardiopulmonar, com desconforto à palpação profunda do hipocôndrio direito, sem adenomegalias nas principais cadeias ganglionares.
Laboratorialmente apresentava ligeira elevação de parâmetros inflamatórios, com linfocitose e citólise hepática ligeira, sem elevação de bilirrubina total (tabela 1).
Pelo padrão de citólise hepática, realizou ecografia abdominal e posteriormente TC abdomino-pélvica que revelaram um trombo no ramo anterior direito da veia porta e uma ligeira hepatoesplenomegália homogénea sem outras alterações suspeitas (figura 1 a) e b)).
Perante este quadro foram colocadas as hipóteses diagnósticas de infeção vírica e/ou doença inflamatória sistémica e foram pedidas diversas serologias víricas incluindo CMV, imunologia dirigida às doenças autoimunes como vasculite, síndrome anticorpo antifosfolípido, lúpus eritematoso sistémico e estudo de trombofilias.
A doente iniciou hipocoagulação com heparina de baixo peso molecular (HBPM) e terapêutica sintomática dirigida à dor e febre com paracetamol e metamizol magnésio.
Os resultados serológicos revelaram positividade para CMV com títulos elevados IgM e IgG, assim como para EBV IgM e IgG. Contudo, estes resultados foram confirmados pela quantificação da carga viral de CMV no plasma que foi positiva, com quantificação de carga viral de EBV no sangue negativa e serologia para CMV negativa (IgM e IgG) aquando da gravidez 18 meses antes. As restantes serologias para HIV, VHC, VHB, Parvovirus B19 e HSV 1 e 2 foram negativas, assim como o estudo autoimune e de trombofilias (mutação do gene da protrombina 20210G e fator V de Leiden - negativas) (tabela 2). Foram colhidas hemoculturas e urocultura que também foram negativas.
Admitida trombose do ramo da veia porta provocada por infeção aguda a CMV.
Iniciou hipocoagulação com HBPM com switch para rivaroxabano 20mg/dia à data de alta. Foi suspenso o contraceptivo oral. Em consulta de follow-up verificou-se resolução completa do quadro incluindo a trombose da veia porta, tendo sido suspensa hipocoagulação após 6 meses, dado ter-se apurado a infeção por CMV como fator provocatório.
Discussão
Apresenta-se assim um caso de um adulto imunocompetente com um síndrome mononucleósico e citólise hepática associada a infeção aguda por CMV, complicada de trombose esplâncnica (veia porta). A trombose esplâncnica, em particular da veia porta ocorre mais tipicamente em doentes com cirrose hepática, neoplasia do fígado, inflamação abdominal (colecistite, apendicite, pancreatite), e/ou trombofilias hereditárias ou adquiridas (por exemplo síndromes mieloproliferativas)1,2.
Neste caso, excluída a doença hepática crónica e outros fatores protrombóticos, admitiu-se que a trombose da veia porta decorreu da infeção aguda por CMV. Apesar da nossa doente se encontrar a fazer um contraceptivo oral à base de progestativo (desogestrel), estudos recentes apontam que os contracetivos orais (“pilula”) e não-orais (com a exceção da formulação Depot) apenas à base de progestativo não estão associados a risco de trombose arterial ou venosa9. O mesmo não se poderá dizer dos contracetivos orais e não orais (transdérmicos, vaginais) combinados9.
O síndrome mononucleósico e a citólise hepática associada a infeção aguda por CMV são os quadros clínicos mais frequentemente relacionados com trombose (67,3% dos casos), mas outros quadros também estão associados nomeadamente retinite (4,4%), pneumonite (0,9%), e a encefalite (0,9%)10.
A infeção aguda por CMV parece ser um fator de risco por si só para a ocorrência de trombose10. O risco parece aumentar na presença de outros fatores protrombóticos como a gravidez, a presença de neoplasia maligna metastizada, a presença transitória ou persistente de anticorpos antifosfolípidos, cirurgia recente (≤ 4 semanas) e a heterozigotia para mutação do fator V de Leiden6,10.A maioria dos estudos sugere que a infeção aguda por CMV aumenta o risco de trombose, mas não refere se estes efeitos se estendem para além do quadro agudo. Um estudo de 2013 sugere que a persistência de IgM para CMV confere risco de trombose venosa nos 6 meses decorrentes ao evento agudo11.
Vários mecanismos fisiopatológicos têm sido propostos para explicar este fenómeno de infeção e trombose. Um dos mecanismos é a entrada dos vírus nas células endoteliais causando dano no endotélio dos vasos o que, por sua vez, ativa a agregação plaquetária pela ativação de fatores de coagulação e adesão dos leucócitos; outro mecanismo refere-se à produção transitória pela infeção, através de mimetismo molecular, de anticorpos antifosfolipidos, embora esta hipótese ainda não tenha sido consistentemente demonstrada12. Um terceiro mecanismo proposto está relacionado com a resposta imunológica contra fosfolípidos do envelope do CMV que terão um efeito pro-coagulante13.
Por outro lado, tratando-se de uma doente imunocompetente, existirão fatores facilitadores da infeção por CMV neste caso? O trabalho por turnos é frequente nos profissionais de saúde e estudos recentes sobre o ritmo circadiano têm mostrado a sua importância na regulação hormonal, metabólica e imune, estando a sua disrupção associada a risco de obesidade, diabetes, depressão e predisposição para infeção14. Este facto poderá ter contruído para a infeção neste caso.
Em relação ao tratamento da infeção aguda por CMV em doentes imunocompetentes bem como da trombose os estudos não são uniformes. A hipocoagulação é transversal, estando descritos casos com heparina de baixo peso molecular (HBPM), heparina não fracionada, varfarina e ainda o rivaroxabano15. Na ausência de fatores trombofílicos, e admitindo-se uma situação de trombose provocada, a hipocoagulação durante 3 a 6 meses é o mais consensual, podendo a negativação de anticorpos antifosfolipidos e a resolução imagiológica da trombose serem dados que apoiem a interrupção desta terapêutica16. A decisão de iniciar terapêutica antivírica no doente imunocompetente com ganciclovir intravenoso 2 a 4 semanas ou valganciclovir oral 3-5 dias é off-label e baseada na gravidade do quadro clínico; até à data os estudos são controversos17.
No nosso caso clínico, a melhoria do estado geral e a apirexia ao quinto dia de internamento, com a boa evolução dos parâmetros analíticos levaram à decisão de não iniciar tratamento antivírico. O facto de apenas uma minoria de doentes imunocompetentes receber tratamento antivírico não nos permite concluir sobre a duração e sua utilidade na prática clínica. Este caso levanta a questão sob a pertinência de se excluir trombose em doentes com infeção aguda por CMV e pesquisar esta infeção nos doentes com trombose idiopática.
Quadro I
Análises laboratoriais da doente na admissão no internamento
Análises | Resultados | Valores de referência |
Hemoglobina ; VGM | 12,7 g/dL ; 85 fL | 12,0-16,0 g/dL ; 80-100 fL |
Plaquetas | 199 000/mm3 | 150-400 000/mm3 |
Leucócitos ; Linfócitos ; Neutrófilos | 6470/mm3 ; 3820 mm3 (59.1%) ; 2030/mm3 (35.5%) | 4000-10000/mm3 ; 1000-3000/mm3; 2000-7000/mm3 |
Esfregaço de sangue periférico | Alguns linfócitos ativados | - |
Ureia ; Creatinina | 16 mg/dL ; 0,67 mg/dL | 13-43 mg/dL ; 0,50-0,90 mg/dL |
PCR ; VS | 7mg/dL ; VS 24mm/h | < 0,5mg/dL ; < 25mm/h |
AST/ALT ; GGT/FA ; Bilirubina total. | 90/216 UI/L; FA/GGT-275/193 UI/L; 0.30 mg/dL | <32/<33 ; 35-105/6-42; < 1,20 mg/dL |
aPTT ; TP ; INR | 26,6s ; 13,0s ; INR 1-09 | 21,4-31.2s ; 10,6-13,5s |
Albumina | 3,8 g/dL | 3,5 – 5,2 g/dL |
aPTT: Tempo de Trombina Parcial ativada e TP: Tempo de Trombina; PCR: Proteina C reativa; VS: Velocidade de Sedimentação; VGM: Volume Globular Médio
Quadro II
Resultados das serologias, estudo autoimune e protrombótico
Serologias e Imunologia | Resultados | Valores de referência |
IgM CMV ; IgG CMV | Positivo (índice:16.08) ; 11.53 UA/mL | 1.0 |
IgM EBV VCA ; IgG EBV VCA | Positivo (índice: 55.40) ; Positivo (índice 541.00) | 1.0 |
IgM Parvovirus B19; IgG Parvovirus B19 | Negativo ; Positivo (índice 31.00) | 1.0 |
IgM e IgG HSV 1 ; IgG e IgM HSV 2 | Negativos; Positivo (120.0 U/mL) e Positivo (índice 3.4) | 1.0 |
HIV (Ag p24 + Ac HIV1/2); anti-VHC, AgHBs, Ac anti-HBs; IgM Ac anti-VHA; VDRL | Negativo ; Negativo; Negativo; Positivo (110 UI/L) ; Negativo ; Negativo | 10 UI/L |
Quantificação da carga viral CMV; Quantificação da carga viral EBV | Positiva (18176 copias/mL) ; Negativa | < 10 cópias/mL ; < 500 cópias/mL |
ANA ; Ac anti-dsDNA ; SS-A, SSB, Sm e Sm/RNP | Positivo (1/320 fino granular) ; Negativo ; Negativo ; Negativo ; Negativo ; Negativo. | < 1/160 |
C3; C4 ; CH50 | 156 mg/dL ; 36 mg/dL ; 61 KU/L | 90-180 mg/dL ; 10-40 mg/dL ; 30-75 KU/L |
Anticoagulante lúpico, Ac anti-cardiolipina IgM e IgG, Ac anti-β2glicoproteina I IgM e IgG | Negativo ; 4,9 MPL/mL e 1,2 GPL U/mL ; 1,1 U/mL e IgG 0,9 U/mL | < 10 MPL/mL ; < 10 GPL U/mL ; <7,0 U/mL. |
CMV: Citomegalovirus, EBV: Epstein –Barr vírus, HSV: Herpes Simplex virus; HIV: vírus da Imunodeficiência Humana, VHC: vírus Hepatite C, VHB: vírus da Hepatite B, VHA: vírus Hepatite A
Figura I

1 a) corte coronal e b) corte sagital: TAC abdomino-pélvica com evidência de trombose no ramo anterior direito da veia porta e ligeira hepatoesplenomegalia
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