Introdução
A doença celíaca (DC) é uma doença autoimune de atingimento sistémico desencadeada pela ingestão de glúten1. Esta doença pode manifestar- se de uma forma típica, com sintomas gastrointestinais, ou de forma atípica, com sintomas sistémicos, anemia ferripriva ou osteoporose, entre outros2,3. O seu carácter sistémico e autoimune associam-na à maior frequência de outras doenças imunomediadas e risco de malignidade e infecção1,4,5. Apresentamos o caso de um doente com diagnóstico de doença celíaca e cirrose hepática por álcool e vírus C.
Caso Clínico
Homem de 46 anos recorreu ao serviço de urgência por diarreia líquida sem sangue e sem muco com 1 ano de evolução, associada a náuseas e vómitos alimentares pós prandiais. O doente referia evolução indolente e flutuante, com episódios de até 10 dejeções/dia. Negava febre. Havia noção de relação com determinados alimentos (tais como alimentos adocicados) estress, e de ligeira melhora com loperamida. Desde o início do quadro teria perdido aproximadamente 10 quilos. Três dias antes de recorrer ao serviço de urgência a esposa notara-o mais lentificado e com discurso incoerente. O doente referia amnésia para os dias prévios e fraqueza generalizada. Referia consumos de álcool (> 40g/dia até há 8 anos, e consumo atual esporádico num máximo de 10-20g/dia), fumador de 7 UMAs e comportamento sexual promíscuo. Da sua história pregressa havia a referir um diagnóstico de vitiligo aos 15 anos, e não havia história familiar de relevo. Ao exame objetivo apresentava: encefalopatia grau II, baixo peso (51.7 kg, IMC 17.6kg/m2), palidez mucocutânea e desidratação, lesões dispersas de vitiligo, normotensão e normocardia, circulação colateral abdominal, sem outros sinais de cirrose hepática, e ausência de edemas periféricos (fig. 1).
Foi admitido no serviço de Medicina Interna para estudo de diarreia crónica. Realizou endoscopia digestiva alta e baixa que evidenciaram varizes esofágicas e do cárdia (grau II), congestão da mucosa e ausência de lesões intestinais. O estudo analítico mostrou anemia microcitica hipocromica (Hgb 10.10g/dl, VCM 77 fl, MHC 78 fl), hipoalbuminemia ( 3.0g/dl) e elevação das enzimas hepáticas (aminotransferase de aspartato (AST) 76U/l, N:<35), aminotransferase de alanine (ALT) 68 u/l (N:<33), ligeiro aumento do tempo de protrombina-TP ( 28 seg (N<13), razão normalizada internacional-INR: 2.0 (N<1.12)); défice de ferro (ferro: 34 ug/dl (N: 59-158), ferritina 10 ng/ml (N:30-400), ácido fólico e vitamina B12 e infecção crónica pelo vírus da hepatite C (VHC), bilirrubinémia inalterada (bilirrubina total-BT 0.3 mg/dl (N< 1.2), bilirrubina directa: 0.1mg/dl (N< 0.3). Apresentava positividade para os anticorpos anti-gliadina IgG ( 81U/ml, N:<7), anti-gliadina IgA (> 142 U/ml, N:<7), IgA anti- endomisio (1/160, N:<1/5) com IgG anti- endomisio negativo,IgG anti- transglutaminase positivo (132 U/ml,N:<7). A carga vírica do VHC era de 472000UI/ml (5.7 Log) e o genótipo 1C. A biópsia duodenal apresentava atrofia vilosa com hiperplasia discreta das criptas e do córion e infiltrado mononuclear sugestivo de doença celíaca tipo 3B de Marsh. A ecografia abdominal e a tomografia axial computorizada abdominal mostravam alterações hepáticas sugestivas de hepatopatia crónica (fígado de contornos lobulados, parênquima heterogéneo e alargamento do ligamento falciforme) e dilatação da veia porta sem obstrução (fluxo hepatoportal, calibre de 14 mm, velocidade média de fluxo de 10cm/s). Realizou elastografia hepática (Fibroscan®) que revelou um valor de 20.9 KPa (IQR: 2.7), compatível com F4 (classificação METAVIR). Assim, com os diagnósticos de doença celíaca e cirrose hepática de causa alcoólica e vírica (Child-Pugh B7, MELD 6 descompensada: encefalopatia grau II West- Haven), iniciou dieta personalizada sem glúten com resolução da diarreia e melhoria do estado geral. Três meses após a alta apresentava-se sem queixas gastrointestinais, com aumento ponderal de 15 quilos e ligeira redução das transaminases (AST 72 u/l, ALT 69 u/l, BT 0.3) (fig.2). Realizou terapêutica com sofosbuvir/ledipasvir (12 semanas), sem intercorrências, atingindo resposta virulógica sustentada às 12 semanas e com elastografia de controlo em F4 com 17 KPa (IQR: 2.0) (Fibroscan®, classificação METAVIR). Atualmente mantem-se sob dieta sem glúten, em abstinência alcoólica, com peso corporal estável, bioquímica hepática inalterada, com estratificação de cirrose hepática em Child-Pugh A6 e MELD 8.
Discussão
Apresentamos o caso clínico de um doente, sem antecedentes médicos relevantes conhecidos, admitido por diarreia crónica secundária a doença celíaca e encefalopatia hepática por cirrose hepática de etiologia alcoólica e vírica.
A doença celíaca é uma patologia imunomediada que afeta primariamente o intestino delgado, provocando alterações das vilosidades e criptas intestinais aquando do contacto com glúten1,3. Esta patologia apresenta-se mais frequentemente com manifestações gastrointestinais, tais como diarreia crónica, anorexia, desconforto gastrointestinal e vómitos, a chamada forma típica3. No adulto a doença celíaca tende a apresentar-se de forma atípica, muitas vezes diagnosticada no curso de investigação de anemia por défices de ferro e vitamínicos, ou até de forma silenciosa com alterações da bioquímica hepática, osteoporose, rastreio de familiares de primeiro grau ou de outras patologias gastrointestinais1-3,6-7.
É um diagnóstico mais frequente e precoce no sexo feminino, em parte por as mulheres serem mais sintomáticas e submetidas a avaliação médica rotineira mais precocemente (ex.: rastreio ginecológico, estudo de anemia associada a perdas ginecológicas)6.
O diagnóstico de doença celíaca faz-se essencialmente pela presença dos auto anticorpos antitransglutaminase, antiendomísio e antigliadina, sendo os primeiros os que apresentam maior sensibilidade e especificidade, e por isso recomendados como primeira linha no rastreio e diagnóstico1-3. Em complemento às serologias recomenda-se a realização de biópsia do intestino delgado, que permite documentar as alterações intestinais típicas. No entanto, alguns indivíduos podem apresentar clínica sugestiva e positividade serológica, com biópsias sem alterações diagnósticas (potencial doença celíaca)1.
No caso apresentado verificamos clínica típica de doença celíaca com diarreia crónica e sintomas/sinais de má absorção, com serologias e biopsias positivas, o que permitiu confirmar o diagnóstico de doença celíaca do adulto. Apesar da clareza do quadro, verificamos um moroso diagnóstico, que nos alerta para a insciência da doença no adulto.Peter H. R. Green et al.realizaram um estudo retrospetivo no qual verificam um atraso significativo no diagnóstico, com tempo médio de onze anos entre os sintomas e o diagnóstico, com a maioria dos doentes a consultarem mais que um médico até ao diagnóstico final7. Neste mesmo estudo, os autores verificam que a maioria dos doentes relata uma substancial melhoria da qualidade de vida e aumento do índex de massa corporal após o diagnóstico7. No nosso caso verificamos uma perda ponderal significativa, com o doente a atingir um estado de doença que o confinou ao leito.
Alguns estudo demonstram que a doença celíaca possa ser duas vezes mais frequente nos doentes com cirrose hepática e que o tratamento com dieta sem glúten pode melhorar o prognóstico10. Sainsbury. et al, verificaram que numa população de indivíduos com doença celíaca, 11.9% tinham alterações da bioquímica não explicáveis por doença hepática conhecida11. Por sua vez,Nijhawan S. et al, documentaram uma prevalência de alterações das transaminases de 24.5% numa coorte de doentes com doença celíaca, e de 9% de casos de hipertensão portal, dos quais 4.5% de causa cirrótica12. Este autor defende a hipótese de que o aumento da permeabilidade intestinal possa aumentar a passagem de antigénios para o fígado, promovendo a inflamação periportal e consequente aumento das transaminases12. No caso apresentado verificamos ligeira melhora das transaminases e compensação da cirrose hepática com a dieta sem glúten, antes de iniciar tratamento dirigido ao vírus da hepatite C.
A relação conhecida entre o VHC e várias doenças autoimunes, tal como síndrome de Sjogren e crioglobulinémia mista, levou a que autores postulassem uma relação entre VHC e a DC13. Diversos estudos e revisões literárias mostram não existir causalidade entre as patologias4,13,14. Não obstante,Casella G. et al, recomenda que a presença de VHC deve ser despistada quando um doente com DC não normaliza marcadores hepáticos apesar de dieta adequada13. No doente supracitado, o diagnóstico de VHC acontece durante o estudo da elevação das transaminases e concluiu-se ser uma das causas de cirrose hepática; no entanto, tal como verificaram outros autores, não se consegue encontrar uma inter-relação entre a infecção e o desencadear da DC.
O vitiligo é apontado como uma das manifestações cutâneas possíveis da doença celíaca, com alguns autores a documentarem bases imunopatogénicas na relação entre as patologias, cuja afinidade não está comprovada15. Neste caso, tal como verificamos no VHC, não se encontra causalidade entre as patologias, pois o diagnóstico de vitiligo é muito anterior à de DC, e o doente não refere melhoria das lesões após o início da dieta sem glúten.
Em suma, apresentamos o caso raro e indolente de associação de cirrose hepática descompensada e doença celíaca. Este caso ajuda-nos a refletir sobre a importância do diagnóstico precoce de uma doença não tão rara entre os adultos.
Figura I

Constituição física do doente ao internamento.
Figura II

Constituição física do doente 3 meses após a alta.
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