Introdução
A Tuberculose (TB) é um problema grave de saúde pública a nível mundial, nomeadamente em países desenvolvidos, devido a um aumento de doentes infetados com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e ao fenómeno da emigração. Atualmente é a segunda causa de morte de etiologia infeciosa em adultos em todo o mundo. Em Portugal a taxa de incidência em 2017 foi de 15,6/100.000 habitantes. É uma doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis complex com apresentação mais frequente a nível pulmonar, podendo atingir qualquer órgão. O hospedeiro humano serve como reservatório natural e a capacidade de o organismo estabelecer infeção latente tem permitido a sua propagação em um terço da população mundial.1,2,3
Em indivíduos com infeção latente e sem patologias subjacentes, a reativação ocorre em 5 a 10% dos casos. Sabe-se que algumas condições de imunodepressão estão associadas à sua reativação, nomeadamente, infeção VIH e síndrome de imunodeficiência adquirida; doença renal crónica; diabetes; linfoma maligno; corticoterapia; uso de inibidores TNF alfa; diminuição da imunidade celular associada à idade; tabagismo. 4,5,6
A TB é classificada de acordo com o local da doença em pulmonar ou extrapulmonar, sendo que o termo TB miliar se refere à doença clínica que resulta de disseminação hematogénica do M. tuberculosis.7,8,9 Em 2016 a TB extrapulmonar foi responsável por 15% dos 6,3 milhões de casos incidentes, tendo surgido como resultado de infeção primária progressiva ou via reativação de um foco latente com subsequente disseminação.2 A TB do sistema nervoso central (SNC) é a apresentação extrapulmonar mais grave, podendo manifestar-se sob a forma de meningite, tuberculoma ou aracnoidite espinhal.8,9
Os tuberculomas intracranianos são mais comuns em países em desenvolvimento, correspondendo a 20-30% de todas as massas cerebrais, sendo relativamente raros em países ocidentais (0,15-0,18%), onde são encontrados maioritariamente em adultos com reativação de TB latente. Resultam da disseminação hematogénica do bacilo no cérebro, podem apresentar-se como massa única grande, ou múltiplas massas dispersas no cérebro, frequentemente na fossa posterior. Os doentes apresentam sintomatologia compatível com efeito de massa a nível cerebral, clinicamente indistinguível de outras patologias. A tomografia computorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) cerebral podem revelar características que permitem estabelecer um diagnóstico provável, mas na maioria dos casos um diagnóstico histológico é desejável.10,11
Ao contrário de outras massas do SNC, o tratamento médico é preferível, estando a cirurgia reservada para situações específicas, nomeadamente doentes em que persiste dúvida diagnóstica, quando há necessidade de redução da pressão intracraniana ou do efeito de massa local, ou quando é necessário obter amostras para cultura. A terapêutica tuberculostática deve ser iniciada com base em suspeita clínica e não deve ser atrasada até obtenção de prova bacteriológica. O resultado clínico depende largamente do estádio da doença aquando do início da terapêutica. 11,12 O tratamento empírico, se não houver suspeita de resistências, consiste na associação de isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol, diariamente, durante 2 meses (caso o isolado seja sensível a isoniazida e rifampicina, o etambutol, que tem fraca penetração no SNC, é descontinuado, sendo usada em alternativa etionamida ou fluoroquinolona), seguido da associação de isoniazida e rifampicina mandatoriamente durante 18 meses.12,13,14
Caso Clínico
Doente do género feminino, 78 anos, trazida ao Serviço de Urgência por síndrome confusional aguda, disartria e alterações da marcha, com um dia de evolução e agravamento progressivo. Filho referiu queda com traumatismo crânio-encefálico uns dias antes e perda ponderal recente de cerca de 3Kg, não sabendo especificar o período temporal. Sem outras queixas, nomeadamente respiratórias, gastrointestinais ou genitourinárias. Como antecedentes patológicos relevantes tinha hipertensão arterial, dislipidemia e rim único funcionante. Encontrava-se medicada com valsartan/amlodipina 80/5 mg id; sinvastatina 20 mg id; amitriptilina 10 mg id e estazolam 2 mg id. Residia em meio rural, numa moradia com boas condições higieno-sanitárias, sem contacto direto com animais.
Ao exame objetivo encontrava-se consciente, desorientada no tempo e no espaço, mas colaborante, subfebril (37,5ºC), normotensa, eupneica, com boa saturação periférica de oxigénio, sem alterações à auscultação cardiopulmonar e sem défices neurológicos focais. Analiticamente apresentava hiponatremia (126 mmol/L), sem elevação dos parâmetros inflamatórios (proteína C-reativa de 0,36 mg/dl; leucócitos 5.8 x10^9/L). A TC crânio-encefálica (TC-CE) revelou uma formação expansiva a nível do hemisfério cerebeloso direito, com 1,28x2x1,4 cm, espontaneamente hipodensa, com melhor definição após contraste, morfologia grosseiramente nodular, com realce periférico relativamente irregular e “em anel”, e hidrocefalia ligeira (Figura 1). Após parecer da Neurologia e Neurocirurgia, foi colocada como principal hipótese diagnóstica metastização cerebral de neoplasia primária desconhecida, ficando internada no Serviço de Medicina Interna para estudo.
No decurso do internamento, realizou TC toraco-abdomino-pélvica e Tomografia de Emissão de Positrões (PET), que não revelaram alterações. Foi efectuado estudo microbiológico com colheita de hemoculturas que se revelaram negativas. Do estudo serológico sérico (VIH 1/2, Listeria monocitogenes, Coxiella burnetii, Toxoplasma, Treponema pallidum, Shistosoma sp e Borrelia burgdoferi), destaca-se eventual infeção recente por Borrelia burgdoferi (IgM 24.53 UA/ml; IgG <5.0 UA/ml), tendo-se iniciado antibioterapia empírica com ceftriaxone (2 g de 24/24h) por suspeita de neuroborreliose.
Para melhor caracterização da lesão foi realizada RM cerebral que evidenciou lesão expansiva no hemisfério cerebeloso direito, de morfologia quística/necrótica, limites irregulares e bem definidos, de 17x15x16 mm, com captação “em anel” irregular (Figura 2). Apesar da terapêutica instituída a doente manteve deterioração clínica progressiva, com agravamento do estado de consciência, pelo que foi solicitada nova TC-CE que relevou aumento da hidrocefalia. Foi solicitada colaboração da Neurocirurgia, tendo sido feita derivação ventricular externa. Foram colhidas amostras de líquido cefalorraquidiano (LCR), cuja bioquímica era normal, e o citológico relevou pleocitose (12 leucócitos/mm3) sem predomínio de células, a serologia para Borrelia burgdoferi foi positiva, com cultura para bactérias aeróbias e fungos leveduriformes e exame directo com coloração de Ziehl- Neelsen negativos.
A doente manteve deterioração neurológica e faleceu ao 17º dia de internamento. Após o óbito, obtivemos o teste confirmatório da serologia de Borrelia burgdoferi, que foi negativo, e a cultura do LCR mostrou positividade para Mycobacterium tuberculosis, compatível com as alterações imagiológicas descritas, e confirmando o diagnóstico de tuberculoma cerebral.
Discussão
O diagnóstico de TB do SNC pode ser de difícil reconhecimento pela sua inespecificidade clínica, requerendo um elevado grau de suspeita. Apesar da diminuição da incidência desde o aparecimento da terapêutica tuberculostática, ocorre em cerca de 10-15% dos doentes com TB.15
A meningite é a manifestação mais frequente de TB do SNC, seguida dos tuberculomas cerebrais. Estes são uma apresentação incomum em doentes imunocompetentes, normalmente têm apresentação solitária e, em 30-70% dos casos há evidência de TB noutra localização. No caso descrito a doente apresentava uma massa cerebral única, não havia antecedentes de doença prévia, nem outro foco de doença, não apresentando sintomatologia como febre, arrepios, sudorese noturna ou tosse produtiva.1,15
O diagnóstico de TB do SNC torna-se desafiante pelo facto de simular várias condições clínicas infeciosas e não infeciosas, especialmente em doentes assintomáticos. Geralmente os sintomas só surgem quando o tuberculoma exerce efeito de massa, podendo provocar convulsões, cefaleias, distúrbios da marcha e défices visuais. Assim, inicialmente os doentes apresentam-se sem alterações ao exame neurológico, podendo apenas ser evidente papiledema quando a pressão intracraniana é suficientemente alta. A paralisia do 6º par é o défice neurológico mais comummente encontrado. 10,11
As características imagiológicas presentes na TC ou RM assemelham-se a outras lesões intracranianas, mas algumas são muito sugestivas do diagnóstico. Na TC com contraste intravenoso o tuberculoma apresenta-se como uma massa avascular de baixa densidade, frequentemente rodeada por edema cerebral e em estádios avançados apresenta realce periférico em anel. A RM cerebral pode ser útil na distinção entre diferentes entidades em casos mais duvidosos. A TC-CE realizada pela nossa doente evidenciou estas características sugestivas de tuberculoma, corroboradas posteriormente na RM cerebral.10,11
A obtenção de uma amostra de LCR para análise citoquímica e microbiológica é útil no diagnóstico, sendo o exame direto positivo em aproximadamente 70% dos casos, enquanto as culturas são positivas em cerca de metade dos doentes. A Polimerase Chain Reaction é uma técnica com maior sensibilidade (86%) e especificidade (91%) na deteção de micobactérias em fluidos corporais. No entanto, a biópsia pode ser necessária em casos de diagnóstico incerto.1 Na nossa doente o exame direto do LCR foi negativo, mas a presença de infeção foi confirmada pela positividade do exame cultural para Mycobacterium tuberculosis.12,15
Segundo a literatura, na presença de elevada suspeita clínica o tratamento empírico deve ser iniciado, pois está associado a um melhor prognóstico. Por vezes, a inespecificidade clínica, com ausência de sintomatologia ou antecedentes de TB primária, associada a alterações imagiológicas e analíticas duvidosas, leva a um atraso no diagnóstico e a evolução clínica desfavorável. Daí resulta a elevada taxa de mortalidade observada. 7,8,9 Na nossa doente, apesar de imagem sugestiva de tuberculoma, a ausência de fatores de risco ou de história prévia de infeção, a inespecificidade clínica, a positividade da serologia para Borrelia burgdoferi sugestiva de neuroborreliose, bem como exame direto negativo para Mycobacterium tuberculosis, levaram a um atraso no diagnóstico e evolução clínica desfavorável.
Os autores destacam a raridade do caso e a importância de uma elevada suspeita clínica quer para um diagnóstico atempado, conseguido apenas com o isolamento da micobactéria, quer para início de tratamento empírico, visando melhores resultados clínicos.
Figura I

Formação expansiva na porção póstero-inferior do hemisfério cerebeloso direito, com cerca de 1,28 x2x1,4 cm, espontaneamente hipodensa, com realce periférico irregular e “em anel” após contraste.
Figura II

Formação expansiva envolvendo o hemisfério cerebeloso esquerdo, de morfologia quística/necrótica e limites irregulares mas bem definidos de 17x15x16 mm com captação “em anel” irregular.
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