Introdução
A primeira descrição de uma síndroma neurológica atribuível à sarcoidose data de 1937, quando Waldenstrom associou os casos descritos por Heerfordt em 1909, de homens com uveíte, tumefacção parotídea, paralisia do nervo facial e febre, à sarcoidose1. As formas de manifestação da neurosarcoidose podem ser variadas desde neuropatia craniana, meningite asséptica, síndroma de cauda equina, encefalopatia, miopatia, epilepsia, entre outras. A neuropatia craniana é a forma de apresentação mais comum com atingimento preferencial dos nervos óptico e facial, podendo ser o substrato fisiopatológico para este atingimento, uma meningite da base do crânio2. A paralisia do nervo facial pode manifestar-se bilateralmente, remitindo espontaneamente na maioria dos casos e cursando com bom prognóstico ao contrário do atingimento do nervo óptico. Os nervos vago e glossofaríngeo poderão também ser atingidos provocando expressão clínica ao nível do palato mole, faringe e cordas vocais2. O atingimento do nervo facial associado a uveíte, febre e tumefacção parotídea constitui a síndroma de Heerfort-Waldenstrom, uma manifestação rara de neurosarcoidose, apresentando-se na maioria dos casos, sob a forma incompleta, devendo o grau de suspeição ser elevado para o seu diagnóstico. A elevação sérica da enzima de conversão da angiotensina e, principalmente, a confirmação histológica de granulomas não caseosos, no contexto clínico adequado, são essenciais para a detecção desta forma rara de apresentação da sarcoidose. O tratamento assenta inicialmente na corticoterapia, e em casos de recorrência da doença após suspensão de tratamento, poderá ser necessária a imunossupressão com azatioprina, metotrexato, entre outros2.
Caso clínico
Apresentamos o caso clínico de uma mulher de 50 anos, sem antecedentes patológicos de relevo que se apresenta com parésia facial e hipostesia da hemiface esquerda e disfagia para sólidos, com 1 dia de evolução, tendo sido diagnosticada uma parésia facial periférica (PFP) esquerda, sem mais alterações ao exame neurológico e com exclusão imagiológica de evento neurológico vascular agudo por TC e angioTC. Foi medicada com deflazacorte e brivudina com melhoria da sintomatologia. Após término da corticoterapia, ao final de 7 dias, retoma o quadro de disfagia, agora para sólidos e líquidos, e parésia e hipostesia da hemiface direita com documentação ao exame objectivo de parésia facial periférica direita e hipertrofia parotídea bilateral. Analiticamente apresentava elevação sérica da enzima de conversão da angiotensina (ECA) de 72.5U/L. O restante estudo imunológico (ANAs, ENAs, anti-dsDNA, ANCAs, factor reumatóide) e serológico (Borrelia, HIV, HSV 1 e 2, HBV e HCV) foi negativo, bem como não se observaram alterações ao nível das proteínas do complemento nem das imunoglobulinas. A ressonância magnética cerebral demonstrava pequenas áreas de hipersinal em T2 na substância branca subcortical frontal, parietal direita, temporal esquerda e transição caloso septal à esquerda. O líquor não apresentava alterações citoquímicas de relevo, e não apresentou crescimento de agentes microbiológicos, nomeadamente de micobactérias. A pesquisa por PCR do bacilo de Koch foi igualmente negativa. Além disso, a pesquisa de bandas oligoclonais foi negativa e o doseamento da ECA no líquor foi de 6U/L (normal). A TC toracoabdominopélvica mostrava múltiplas adenomegalias mediastínicas e hilares, sem mais alterações de relevo. Foi efectuada biópsia de gânglio retro-auricular com retalhos de glândula salivar (parótida) envolvidos que mostou um processo inflamatório granulomatoso sem necrose caseosa, com imunofenotipagem negativa. A avaliação funcional por cintigrafia de glândulas salivares revelou hipofunção. O lavado broncoalveolar evidenciava linfocitose intensa e relação CD4/CD8 elevada (9.4). A citologia do lavado broncoalveolar não mostrava evidência de malignidade e o exame microbiológico não apresentou crescimento de agentes, nomeadamente de micobactérias, sendo a pesquisa de BK por PCR também negativa. Reiniciou corticoterapia (1mg/kg) e fisioterapia com melhoria da parésia facial e da clínica orofaríngea, sem recorrência, permitindo o desmame progressivo da corticoterapia.
Discussão
A paralisia facial unilateral pode ser secundária a uma infecção vírica; trauma; cirurgia; diabetes; tumores; doença imunológica ou fármacos. Na doente em questão, no primeiro episódio, não haviam estigmas cutâneos ou ao nível das mucosas orais que pudessem indicar actividade de vírus da família Herpes em curso e não havia história de trauma, ou de manipulação cirúrgica, de diabetes mellitus, de introdução de fármacos ou outros sinais ou sintomas que sugerissem doença imunológica. No entanto, mesmo na ausência de mais sintomatologia negativa ao exame neurológico, deverá ser excluído evento agudo isquémico ou hemorrágico a nível do sistema nervoso central, nomeadamente tronco cerebral. Desta forma foi igualmente possível a exclusão de lesões ocupando espaço que pudessem ocasionar o quadro descrito. Após a exclusão das causas referidas, o diagnóstico da forma primária ou idiopática, denominada paralisia de Bell, a forma de apresentação mais comum3 poderá ser realizado.
No que respeita ao tratamento, na ausência de mais semiologia que oriente para uma causa secundária, este mesmo é controverso, pela ausência de casuística suficiente para a condução de estudos orientados ao tratamento da paralisia de Bell. Os objectivos principais do tratamento passam por uma recuperação neurológica rápida e sem sequelas, evitar atingimento corneano e limitar a replicação viral3. Dessa forma a corticoterapia poderá ter um papel importante, embora não hajam indicações definidas para o seu uso, até pela ambiguidade face à sua eficácica, com artigos a refutar a sua utilidade e outros a demonstrar o seu benefício4,5. No que respeita ao tratamento antivírico e face à forte associação da paralisia de Bell com vírus Herpes, a sua utilidade parece ser mais consensual embora o benefício da sua associação à corticoterapia também não seja claro4,5. No entanto, face aos objectivos principais do tratamento descritos, a terapêutica conjunta acabou por ser instituída, o que acabou por se tornar crucial para o diagnóstico do quadro clínico.
No momento em que ocorre replicação da clínica inicial, no lado contralateral da face após suspensão da corticoterapia, iniciada para o tratamento da possível paralisia de Bell, associada a hipertrofia parotídea bilateral, o diagnóstico de síndroma de Heerfort-Waldenstrom, uma forma rara de manifestação de neurosarcoidose, terá que ser colocado em questão. Neste caso, pela ausência de febre ou episódios de uveíte, na sua forma incompleta. O diagnóstico, de qualquer forma de sarcoidose, passa pelo estudo histológico, com a identificação de granulomas não caseosos, exclusão de doença linfoproliferativa e um conjunto de outros dados que apoiam o diagnóstico, nomeadamente a presença de adenopatias mediastínicas e hilares, a elevação sérica da enzima de conversão da angiotensina e a relação CD4/CD8 elevada (>3.5) no lavado broncoalveolar, muito sugestivo de sarcoidose. Em 4% dos doentes há atingimento dos nervos glossofaríngeo e vago6 pelo que a disfagia apresentada pela doente poderia também ser explicada por atingimento da sarcoidose nos respectivos nervos, embora não tenha sido realizada eletromiografia dos nervos cranianos e dessa forma sem confirmação.
Tratando-se a sarcoidose de uma patologia rara e um diagnóstico de exclusão, múltiplas outras patologias terão que ser descartadas perante uma paralisia do nervo facial, ou seja uma causa secundária. Para além da já referida exclusão de eventos neurológicos agudos isquémicos ou hemorrágicos, a exclusão de infecções víricas sistémicas, nomeadamente VIH; a doença de Lyme; tuberculose; lesões ocupando espaço cerebral; linfoma; e doenças autoimunes como a doença de Sjogren ou o lúpus eritematoso sistémico7. Causas todas elas excluídas no caso apresentado.
No que respeita ainda ao processo de diagnóstico, foi realizada punção lombar, no segundo episódio de paralisia, com o intuito de excluir um processo meníngeo viral, pesquisa de BK e de bandas oligoclonais, descartando, esta última, esclerose múltipla. Em relação ao doseamento da enzima de conversão da angiotensina no líquor, esta é igualmente controversa, havendo estudos nos quais não está demonstrada qualquer utilidade no seu doseamento8 e outros em que parece ser uma ferramenta relevante no diagnóstico de neurosarcoidose9.
Em relação às alterações cerebrais identificadas na ressonância magnética, não há um padrão de atingimento cerebral específico da neurosarcoidose, devendo todas as alterações serem interpretadas no contexto clínico adequado. São comuns na neurossarcoidose, mas inespecíficas, as lesões intraparenquimatosas múltiplas, nomeadamente na substância branca periventricular com hiperintensidade de sinal em T2 e que estavam presentes na doente em questão10. De notar que quando a doente realizou a ressonância magnética já tinha estado sob terapêutica corticóide e com melhoria da paralisia facial e da disfagia.
A sarcoidose é um diagnóstico raro e que requer elevado grau de suspeição. Múltiplas poderão ser as suas formas de manifestação pelo que devemos estar atentos não apenas às manifestações iniciais, mas igualmente à forma como estas evoluem.
BIBLIOGRAFIA
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