Introdução
A Trombocitopenia imune (TI) é uma doença autoimune que se caracteriza pela diminuição isolada da contagem de plaquetas, resultante do aumento da destruição e supressão da sua produção.1 Pode ocorrer isoladamente (TI primária) ou em associação com outros distúrbios (TI secundária). Causas secundárias incluem doenças autoimunes (particularmente Lúpus eritematoso sistémico e Síndrome antifosfolípidico), infeções víricas (Citomegalovírus, Hepatite C, Vírus da imunodeficiência humana, Varicela zoster), Doenças linfoproliferativas, efeito secundário de vacinas e fármacos.1,2
Vários estudos sugerem que a vacinação pode estar envolvida no desenvolvimento de doenças autoimunes (Artrite reumatoide, Lúpus eritematoso sistémico, Diabetes mellitus, Trombocitopenia, Vasculite, Dermatomiosite, Síndrome Guillain-Barré, Doenças desmielinizantes).3-5 O mimetismo molecular é um dos mecanismos explicativos do desenvolvimento de trombocitopenia após imunização, em que os antigénios do hospedeiro são reconhecidos como sendo similares aos antigénios da imunização, provocando o desenvolvimento de autoanticorpos.6,7 Mais recentemente, foi sugerido que os adjuvantes utilizados na composição das vacinas, para aumentar a resposta imune, também podem provocar doença autoimune (Síndrome autoimune/inflamatório induzido por adjuvantes - ASIA).8 A TI após vacinação pode constituir um desses fenómenos.9,10
Embora vários estudos descrevam uma associação entre TI e a vacina anti sarampo e rubéola em crianças,4,11 evidência publicada relativamente ao risco associado a outras vacinas ou à vacinação em adultos são mais escassas.
A maioria dos casos de TI pós vacinação é autolimitada e de gravidade moderada, embora já tenham sido descritos quadros de doença grave com consequências fatais.4,12
Caso Clínico
Apresenta-se o caso clínico de uma doente de 59 anos, sexo feminino, raça caucasoide. Sem seguimento médico habitual, sem problemas médicos previamente conhecidos. Sob esquema de primovacinação anti-tétano/difteria (anti-Td) com 3 doses (segundo a norma da Direção Geral de Saúde - segunda dose administrada 4 a 6 semanas após início do esquema; terceira dose administrada 6 a 12 meses após a segunda dose.13)
Internada por trombocitopenia grave (2000 plaquetas/µL), múltiplas equimoses dispersas pelo tronco e membros e bolhas hemorrágicas no palato e mucosa jugal. Estes sintomas surgiram 6 meses após a segunda dose da vacina anti-Td.
Analiticamente, além da trombocitopenia, salientava-se elevação da velocidade de sedimentação (59 mm/1h) e aumento de desidrogenase lática (231U/L). Esfregaço de sangue periféricoa confirmar trombocitopenia, sem agregados plaquetares.
Negava artralgias, boca seca, úlceras orais e genitais, olhos seco e olho vermelho ou consumo de bebidas alcoólicas. Nos exames complementares, apresentava anticorpos anti-nucleares e anti-ds DNA negativos, discreto consumo de C4, sem consumo de C3; anticoagulante lúpico, β2 glicoproteína e anti-cardiolipina negativos; infeção passada por Vírus Epstein Barr, Citomegalovírus, Parvovírus B19; serologias do Vírus da imunodeficiência humana, Hepatite B e C, Sífilis e Herpes virús 6 negativas; não tinha défice de
vitamina B12 e ácido fólico ou alterações da função tiroideia; eletroforese de proteínas sem picos sugestivos de monoclonalidade; mielograma e biópsia óssea com representação de todas as séries nos vários estádios de maturação, sem alterações morfológicas relevantes, megacariócitos em número abundante e aumentado em relação à celularidade, sem displasia; imunofenotipagem de medula óssea sem alterações; tomografia computorizada tóraco-abdomino-pélvica sem alterações, nomeadamente com fígado normal, sem esplenomegalia e sem adenomegalias.
Estes dados permitiram excluir doença autoimune, como Lúpus eritematoso sistémico (LES) e Síndrome antifosfolipídico; excluir infeção vírica e outras causas de trombocitopenia (metabólicas, doença hepática, doença hematológica medular e doença linfoproliferativa). Nesta fase não foi excluída infeção por Helicobater pylori.
Perante a gravidade da trombocitopenia, iniciou terapêutica imunossupressora com pulsos de metilprednisolona (1g/dia durante 3 dias) seguidos de prednisolona na dose de 1mg/kg/dia, sem alterações significativas na contagem plaquetar (gráfico1). Dada a ausência de resposta ao corticoide, iniciou imunoglobulina endovenosa na dose de 0,4 g/Kg, que cumpriu durante 5 dias. Paralelamente foi aumentada dose de corticoide para 1,5 mg/Kg por dia, Nesta altura verificada subida da contagem de plaquetas até 13 000/µL, mas, rapidamente se verificou nova descida para valores inferiores a 10 000/µL. Efetuou novo ciclo de imunoglobulina endovenosa na dose de 1g/kg durante 2 dias e, posteriormente, rituximab na dose de 375 mg/m2 (duas administrações com intervalo de uma semana), sem resposta sustentada.
Considerando a relação temporal com o esquema de vacinação anti-Td, foi colocada a hipótese de trombocitopenia imune relacionada com a vacinação.
Dada a ausência de resposta à terapêutica instituída e persistência de trombocitopenia grave (3000 plaquetas/µL), foi proposta para esplenectomia laparoscópica. Submetida a esplenectomia 5 semanas após início do quadro clínico, verificando-se, posteriormente, subida sustentada do valor de plaquetas (gráfico 1), com possibilidade de redução progressiva da corticoterapia. Como intercorrência durante o internamento apresentou artrite sética do joelho, com necessidade de limpeza cirúrgica. Nesta fase verificou-se ligeira descida na contagem de plaquetas, que resolveu após controlo do foco infecioso. Suspendeu corticoide ao fim de 6 semanas, não se verificando qualquer recidiva da trombocitopenia. Em ambulatório, após recuperação de trombocitopenia realizou endoscopia digestiva alta que permitiu a exclusão de infeção por Helicobacter pylori. Atualmente, mais de 4 anos após este episódio, mantem contagem de plaquetas dentro dos valores normais.
Discussão
As vacinas são uma das descobertas mais marcantes da história, com papel inquestionável na erradicação de doenças endémicas a nível mundial e com uma influência importante na esperança média de vida.
A ocorrência de efeitos adversos e fenómenos autoimunes após a vacinação tem sido cada vez mais reconhecida. Relatos de reações autoimunes após a vacinação constituem provavelmente menos de 0,01% de todas as vacinações realizadas em todo o mundo, mas importa ressalvar que esta taxa pode estar enviesada pela subnotificação.11 Uma vacina específica pode causar mais do que um fenómeno autoimune e, da mesma forma, um processo imune específico pode ser desencadeado por mais do que um tipo de vacina.12 Vários mecanismos têm sido propostos para justificar estes fenómenos, mas não existe,atualmente, um mecanismo uniformemente aceite.
Nesta doente, o facto da trombocitopenia se manifestar durante o esquema de vacinação anti-Td, a ausência de outras manifestações de autoimunidade e a melhoria clínica e analítica após esplenectomia podem tornar esta associação provável. Sabendo que o alumínio é utilizado como adjuvante na vacina anti-Td e considerando os casos descritos de Síndrome ASIA associado a este adjuvante, poderíamos pensar na possibilidade deste síndrome. Por outro lado, o mimetismo molecular e o facto de os antigénios inoculados por via endovenosa se acumularem essencialmente no baço (induzindo uma resposta humoral preferencial e escassa resposta celular),7 poderão, em certa medida, justificar a melhoria imediata a pós esplenectomia, sem qualquer recidiva ou manifestação de doença autoimune ao longo dos 4 anos de follow up.
Atendendo a que a vacina anti-Td faz parte do plano nacional de vacinação (administrada durante a infância, aos 25, 45 e 65 anos e posteriormente a cada década13), seria importante perceber se a trombocitopenia associada a esta vacina é efetivamente uma situação rara ou apenas pouco diagnosticada.
Pretende-se com este caso alertar os clínicos para esta associação, contribuindo para esclarecer a sua verdadeira epidemiologia e, assim, eventualmente sensibilizar para o estudo destes e outros fenómenos imunes relacionados com a vacinação.
Figura I

Gráfico 1- Evolução da Contagem de Plaquetas
BIBLIOGRAFIA
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13. Direção geral da Saúde. Programa Nacional de Vacinação 2017. Norma n.º 016/2016, atualizada em 31/07/2017.