Introdução
A doença de Lyme é uma zoonose provocada por espiroquetas do complexo Borrelia burgdorferi sensu lato, frequente na América do Norte, mas também em Portugal há espécies causadoras de doença, pelo que este diagnóstico não deve ser descorado. A suspeição diagnóstica deve basear-se no reconhecimento dos seus múltiplos sinais e sintomas, sendo confirmada por estudos laboratoriais.
Caso Clínico
Homem, 48 anos, autónomo, com antecedentes pessoais de doença bipolar, esotropia à esquerda e tremor essencial, encontrando-se medicado com valproato de sódio 500mg, quetiapina 700mg, lítio 400mg e propanolol 40mg.
Negava hábitos tabágicos, etanólicos ou toxicofílicos, não se apurando qualquer viagem recente para fora do país, referindo contacto ocasional com áreas rurais, nomeadamente matas e florestas, mas negando contacto com animais nessas deslocações.
Cerca de cinco meses antes do internamento notou diplopia horizontal sendo avaliado no Serviço de Urgência (SU) onde após documentação de parésia do recto externo do olho direito realizou ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE) que não mostrou alterações, sendo referenciado para consulta de Neurologia. À avaliação nessa consulta, um mês após início do quadro, mantinha diplopia horizontal e estrabismo convergente, apurando-se ainda discreta paresia facial periférica que o doente não valorizava. Manteve-se em seguimento em consulta de Neurologia, aguardando resultados de exames complementares de diagnóstico solicitados. Um mês antes do internamento iniciou episódios de mialgias nas pernas e coxas, colúria e acolia, tendo realizado avaliação complementar em consulta de Psiquiatria programada que revelou elevação dos parâmetros de citocolestase hepática (AST 1747 U/L, ALT 495 U/L, GGT 105 U/L, fosfatase alcalina 134 U/L e bilirrubina total 1.9mg/dL) pelo que foi referenciado ao SU.
Ao exame objectivo encontrava-se vígil e orientado, com perfil hemodinâmico estável, apirético, eupneico, sem alterações à auscultação cardiopulmonar, sem massas ou organomegálias palpáveis, sem lesões cutâneas, com dor à palpação das massas musculares e com evidência de estrabismo convergente do olho esquerdo com parésia da levoversão homolateral (por esotropia prévia), parésia do VI par craniano à direita e parésia facial periférica homolateral.
Da avaliação analítica destacava-se elevação dos marcadores musculares (CK 8608U/L e aldolase 40.2 U/L) e de citólise (AST 306 U/L, ALT 468 U/L e LDH 874 U/L), sem outras alterações nomeadamente citopénias, colestase, distúrbios da coagulação, elevação dos parâmetros de retenção azotada ou de fase aguda. O doseamento dos fármacos que cumpria em ambulatório mostrou valproatémia e litémia em intervalo terapêutico.
Realizou ecografia abdominal que excluiu alterações, nomeadamente organomegálias ou alterações da ecoestrutura, sendo internado por quadro a esclarecer com envolvimento do VI e VII par, rabdomiólise e hepatite.
Perante envolvimento de dois pares cranianos com concomitantes manifestações extra-sistema nervoso (hepatite e rabdomiólise) e ausência de alterações no exame de imagem do sistema nervoso considerou-se como pouco provável tratar-se de uma lesão puramente intra-axial. Assim, foi efectuado estudo etiológico considerando as causas de meningite crónica (por quadro com mais de um mês de evolução) envolvendo a base do crânio, condicionando neuropatia craniana múltipla, com envolvimento hepático e muscular.
A ausência de lesões cutâneas, artrite, doença ocular com uveíte, envolvimento pulmonar ou dos seios perinasais tornou as causas imunológicas de meningite crónica bastante menos prováveis, nomeadamente lúpus eritematoso sistémico (LES), doença de Behçet, granulomatose com poliangeíte ou sarcoidose. Do estudo imunológico refere-se a presença de ANA positivo (1/160), sem hipocomplementémia, ausência de elevação de enzima de conversão da angiotensina ou hipercalciúria.
Após exclusão de compromisso imunológico (serologias negativas para VIH 1 e 2, ausência de leucopénia e de défices nas subpopulações linfocitárias) foram colocadas hipóteses de etiologias infeciosas em doentes imunocompetentes, excluindo-se a maioria pela ausência de história epidemiológica, nomeadamente coccidioidomicose, schistosomiase e tripanossomíase e permanecendo a hipótese de doença de Lyme, tuberculose, sífilis, brucelose e infecção a vírus varicela zoster (VVZ) ou HTLV. O estudo complementar revelou cicatriz imunológica para VVZ, IGRA negativo e serologias negativas para HTLV, sífilis e brucelose.
Foi solicitada serologia para doença de Lyme por ELISA que foi equívoca optando-se pela pesquisa por Western blot por alta suspeição diagnóstica, que foi positiva (IgG e IgM). De referir que não foi realizada punção lombar por recusa do doente.
Deste modo assumiu-se o diagnóstico de doença de Lyme disseminada com neuroborreliose, hepatite sem critérios de gravidade e rabdomiólise. Cumpriu antibioterapia endovenosa com ceftriaxone 2g/dia durante 21 dias, sendo posteriormente realizado o switch para terapêutica com doxiciclina oral e cumprindo um total de 28 dias de antibioterapia dirigida.
Durante o follow up ocorreu reversão completa da sintomatologia neurológica e muscular, assim como resolução das alterações analíticas.
Discussão
A doença de Lyme é provocada por uma espiroqueta do género Borrelia, uma bactéria intracelular facultativa, com catorze sub-espécies identificadas até à data1. Na América do Norte a maioria dos casos de doença de Lyme são causados pela genoespécie B. burgdorferi sensu stricto, enquanto que na Europa se destacam a B. afzelli e a B. garinii1.
Trata-se de uma patologia endémica nos Estados Unidos da América, com 262481 casos reportados de 2007 a 20162, sendo mais rara na Europa, nomeadamente em Portugal com 87 casos confirmados entre 1999 e 2014, embora tenham sido identificadas em território nacional genoespécies de B. burgdorferi sensu lato com potencial patogénico, nomeadamente a B. afzelii, B. garinii, B. burgdorferi sensu stricto, B. valisiana e B. lusitaniae3-4
Apesar de ser uma doença de notificação obrigatória desde 1999, a sub-notificação e o sub-diagnóstico em Portugal é provável3-5, frequentemente associado à crença de que se trata de uma patologia inexistente no nosso país, por ausência de vector ou de reservatório para a espiroqueta patogénica.
As manifestações clínicas dividem-se normalmente em três fases: localizada, disseminada e tardia. No entanto algumas manifestações dos vários estádios podem sobrepor-se e nem sempre existe história pregressa sugestiva das manifestações típicas de doença localizada.
A doença localizada surge normalmente 3 a 30 dias após a mordedura da carraça, acompanhando-se de um exantema, concêntrico com uma zona clara central designado de eritema migrans e de sintomas constitucionais inespecíficos como fadiga, anorexia, cefaleias ou mialgias6. Embora a história de contacto prévio com o vector seja útil para suportar este diagnóstico apenas 30%-40% dos indivíduos com eritema migrans reportam a mordedura por carraça7.
A doença disseminada ocorre habitualmente semanas a meses após a infecção, podendo, no entanto, ser a primeira manifestação de doença. Nesta fase em 10-15% dos doentes há envolvimento do sistema nervoso como por exemplo: meningite linfocítica, neuropatia de pares cranianos, radiculopatia e meningoencefalite8.
A parésia do VI e VII par, sugerindo meningite da base do crânio, foi o principal sintoma orientador neste doente, sendo excluídas outras causas de polineuropatia craniana nomeadamente tuberculose, sífilis, infecção a VIH, brucelose, sarcoidose ou LES9.
Em 80% dos casos de neuropatia craniana associada ao Lyme ocorre envolvimento do nervo facial, no entanto está descrito o possível envolvimento de qualquer par10.
A rabdomiólise por miosite e a hepatite estão também descritas na fase disseminada, embora sejam menos frequentes do que o envolvimento neurológico11.
Na fase tardia da doença, que pode surgir alguns meses ou anos após a mordedura, a mono ou oligoartrite é característica1, acompanhando-se por vezes de alterações neurológicas diferentes das observadas na doença disseminada precoce, nomeadamente polineuropatia axonal crónica12.
O diagnóstico de doença de Lyme na fase localizada da doença é clínico uma vez que as manifestações precedem a presença de resposta imune adaptativa e por isso as serologias são negativas13. Pelo contrário na doença disseminada precoce ou tardia os exames serológicos são uma ferramenta importante13. O algoritmo de diagnóstico tem por base a aplicação de um teste inicial por método enzimático (nomeadamente ELISA) que se for equívoco ou positivo deve ser confirmado com teste por immunoblot (tipicamente Western Blot)13.
O diagnóstico de neuroborreliose por vezes é difícil, podendo estar indicada a realização de punção lombar nos doentes com sintomas sugestivos de meningite para exclusão de outras causas, e sendo possível a identificação de DNA de B. burgdorferi no líquor por polymerase chain reaction, no entanto este teste apresenta baixa sensibilidade (0-20%) e por isso não deve ser realizado por rotina10,14.
No envolvimento do sistema nervoso com presença de doença parenquimatosa, está preconizada a necessidade de utilização de antibioterapia endovenosa, nomeadamente ceftriaxone (2g/dia)15. Habitualmente o envolvimento simples do nervo facial pode ser abordado com antibioterapia oral (doxiciclina 200mg por dia, dividido em duas doses), no entanto as guidelines para abordagem à paralisia de outros nervos cranianos recomendam a utilização de terapêutica parentérica10.
De referir ainda que a doxiciclina é o antibiótico per os com melhor penetração no sistema nervoso central, podendo a maioria dos doentes com neuroborreliose ser abordados com este fármaco por um período de 21 a 28 dias10,15.
A escolha de antibioterapia endovenosa neste caso prendeu-se com o envolvimento de múltiplos pares cranianos e com o desconhecimento dos achados do líquor uma vez que não foi realizada punção lombar.
Conclusão
A doença de Lyme continua a ser sub-diagnosticada em Portugal, apesar do reconhecimento cada vez maior dos seus múltiplos agentes causais e vectores. Este caso demonstra a necessidade de suspeição precoce desta entidade nosológica, para que assim se possa instituir a terapêutica preconizada, evitando as complicações a longo prazo da doença.
BIBLIOGRAFIA
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15 Wormser G et al. The clinical assessment, treatment, and prevention of lyme disease, human granulocytic anaplasmosis, and babesiosis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2006 1;43(9):1089-134.