Introdução
O mesotelioma peritoneal papilar bem diferenciado é um tumor raro, considerado um subtipo de mesotelioma, frequentemente com um curso mais indolente11 e que, dada a diferença de prognóstico, deve ser diagnosticado cuidadosamente e diferenciado do mesotelioma maligno difuso. 4
Atinge, na maioria dos casos, o peritoneu de mulheres em idade fértil. Habitualmente, cursa sem sintomas, sendo, muitas vezes, um achado ocasional. O diagnóstico é feito através de biópsia e da sua interpretação anatomo-patológica.
Exige um seguimento preciso e rigoroso pelo risco de recidiva e malignização.
Caso Clínico
Doente do sexo feminino, de 21 anos de idade, que recorre ao serviço de urgência por hérnia umbilical tumefacta e sensação de aumento do perímetro umbilical, com cerca de 3 dias de evolução, sem outras queixas associadas. Como antecedentes pessoais de relevo destaca-se história de internamento cerca de um ano antes, por ascite com gradiente sero-ascítico da albumina <1,1 g/dL (albumina sérica 3,5 g/dL; albumina líquido ascítico 2,6 g/dL) e anemia hemolítica (Hemoglobina de 8,1g/dL), assumidas como secundárias a infeção por vírus Epstein-Barr (EBV). Neste internamento, apresentou serologias compatíveis com infeção aguda por EBV - EBV VCA IgM > 160 U/mL (valor de referência <20 negativo, 20 – 40 duvidoso, >40 positivo) e Imunofenotipagem de sangue periférico: compatível com processo infecioso viral – Mononucleose Infeciosa. Esteve internada durante 8 dias. Foi seguida em consulta externa sem qualquer intercorrência. Sem hábitos tabágicos, etílicos e toxicómanos.
Ao exame objetivo apresentava abdómen globoso, com ascite, hérnia umbilical de dimensões aumentadas, redutível e apenas com conteúdo líquido à palpação abdominal, sem outras alterações.
Analiticamente apresentava Proteína C Reativa de 99,3 mg/L (valor de referência < 10,0 mg/L) e Velocidade de Sedimentação de 94 mm/1ªh (valor de referência <15 mm/1ªh). Não apresentava outras alterações analíticas, nomeadamente hemograma, função renal, ionograma e enzimas hepáticas. Na ecografia abdominal apresentava: moderada ascite preenchendo os vários recessos peritoneais, sem outras alterações.
A Radiografia e a Tomografia Computorizada (TC) do tórax não apresentavam alterações relevantes. A TC abdomino-pélvica mostrava: ascite volumosa, preenchendo os vários recessos peritoneais, com as estruturas localizadas ao centro, pela pressão hidrostática; sem nodulações parietais ou alterações ao nível do peritoneu; fígado ligeiramente aumentado à custa do lobo esquerdo, sem evidência de lesões de caráter focal; sem outras alterações de relevo, nomeadamente a nível do útero e áreas anexiais e sem adenomegálias valorizáveis (Fig. 1).
Realizou-se paracentese diagnóstica e evacuadora com drenagem de cerca de 6L de líquido citrino esverdeado. O exame citoquímico do líquido ascítico revelou um gradiente sero-ascítico da albumina <1,1 g/dL (albumina sérica 3,8 g/dL; albumina líquido ascítico 2,9 g/dL) com elevada celularidade e sem predomínio de células; a pesquisa de células neoplásicas e os exames directo e cultural para micobactérias foram negativos (Fig. 2).
Endoscopia Digestiva Alta e Colonoscopia sem alterações. Observação pela Ginecologia: sem alterações, assim como na ecografia endovaginal.
Feita laparoscopia exploradora, que revelou aspeto microgranular do peritoneu parietal e visceral. Feita biópsia da parede abdominal direita (peritoneu parietal), ligamento falciforme e grande omento.
Os resultados citológicos mostraram granulócitos, pequenos linfócitos e inúmeras células mesoteliais, isoladas ou em agrupamentos, de características reativas. Ausência de elementos com características suspeitas de neoplasia.
O resultado histológico mostrou: aspetos de células mesoteliais, sem evidência de atipia ou pleomorfismo nucleares; presença de microcalcificações, sem necrose; sem evidência de sinais invasivos do tecido subjacente, onde se observam aspetos de hiperplasia linfoide associados (Fig 3).
Perante a dúvida diagnóstica, com obrigatoriedade de diagnóstico diferencial entre hiperplasia mesotelial florida, com hiperplasia linfoide associada e mesotelioma, as amostras foram enviadas para o centro diferenciado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Foi confirmado mesotelioma papilar bem diferenciado do peritoneu com hiperplasia linfoide.
Após o diagnóstico, a doente teve alta com indicação de fazer corticoterapia e inibidor da bomba de protões e com consulta marcada no Instituto Português de Oncologia (IPO) Francisco Gentil de Lisboa para orientação. Após esta consulta, foi orientada para uma cirurgia abdominal citorredutora e quimioterapia hipertérmica intraperitoneal.
Um ano após esta cirurgia, foi detetada metastização ganglionar na cadeia da mamária interna bilateral, confirmada por biópsia guiada por TC. A doente foi submetida a linfadenectomia mamária interna bilateral por esternotomia mediana, sem evidência de doença extra-abdominal desde então.
Passados 3anos, por episódios recorrentes de suboclusão intestinal, foi reoperada por brida, tendo-se constatado, intraoperatoriamente, recidiva tumoral. Foi, então, submetida a nova cirurgia de citorredução e quimioterapia intraperitoneal hipertérmica com cisplatino e doxorrubicina, a mesma terapêutica utilizada no primeiro procedimento.
Sem novas complicações até ao momento.
Discussão
O mesotelioma papilar bem diferenciado (MPBD) é um tumor raro, encontrado geralmente no peritoneu de mulheres em idade fértil. 1,3,9 Embora seja considerado potencialmente maligno, ainda pouco se sabe sobre o seu comportamento, inicialmente indolente.5 Pode encontrar-se também na pleura, no pericárdio ou na túnica vaginallis, ainda que mais raramente. 1,2,3,4,7 A maioria dos casos descritos na literatura desenvolveu-se no peritoneu de mulheres jovens, sem história de exposição a asbestos, contrariamente ao mesotelioma maligno. 1,3,4,7,11 De acordo com a classificação dos tumores mesoteliais, o MPBD deixou de ser considerado uma variante benigna de um mesotelioma epitelial, para passar a ser uma entidade diferenciada do mesotelioma maligno difuso.9
Clinicamente, o MPBD é maioritariamente assintomático e, frequentemente, um achado ocasional durante cirurgias ou outros procedimentos invasivos5,6,10, mas pode estar associado a sintomas como ascite, dor abdominal, cólicas ou obstipação. 2,7,8,11 O caso descrito cursou com volumosa ascite, que motivou a investigação diagnóstica.
O diagnóstico diferencial constitui um desafio clínico e histológico. Faz-se com hiperplasia mesotelial, mesotelioma maligno e outros tumores de serosas de baixo potencial maligno.1,6 A hiperplasia mesotelial pode ter uma arquitetura papilar que mimetiza MPBD, contudo as papilas são exclusivamente compostas por células mesoteliais ou contêm um pequeno amontoado de tecido conjuntivo nos seus núcleos e têm alterações inflamatórias na serosa adjacente. A distinção do mesotelioma maligno constitui um desafio maior, uma vez que pode até conter áreas de MPBD. Para minimizar este dilema diagnóstico, é necessária a certeza de que o tecido avaliado em anatomia patológica é verdadeiramente representativo das lesões, especialmente para exclusão de invasão de tecidos adjacentes. A presença de atipia celular e invasão permitem fazer o diagnóstico de mesotelioma maligno. As células que revestem as papilas em tumores serosos de baixo potencial maligno tendem a ser em forma de coluna com ocasionais células cuboides.
Desta forma, o diagnóstico passa sempre por uma biópsia e a sua correta interpretação anatomo-patológica, 4 patente nas recomendações, que sugerem mesmo que as amostras sejam revistas por um anatomo-patologista experiente. 8 O caso apresentado é de uma jovem com um diagnóstico difícil de estabelecer, só sendo possível um diagnóstico definitivo após biópsia laparoscópica de lesão nodular no peritoneu. Dada a sua raridade, a análise anatomo-patológica diagnóstica requer uma atenção redobrada e cuidada, relacionando com o contexto clínico e radiológico.5,6,10
Dada a indefinição no comportamento desta entidade, os doentes com esta patologia devem ser acompanhados de forma regular, pelo risco de recidiva e de transformação da agressividade da doença que, embora pouco frequente, pode ocorrer. 4,8
As recomendações para o tratamento da doença passam por cirurgia citorredutora, acompanhada ou não por quimioterapia hipertérmica intraperitoneal, ou mesmo quimioterapia sistémica dependendo da extensão da lesão e da existência ou não de sintomas.8,11 Por regra, os MPBD localizados comportam-se de forma benigna, pelo que a cirurgia é curativa. Quando se trata de múltiplos nódulos pequenos, o curso é indolente, com um prognóstico vital prolongado e, por vezes, sem redução da esperança média de vida. O desenvolvimento de focos invasivos acarreta maior agressividade. Assim, uma doença rapidamente progressiva sugere um mesotelioma maligno difuso com áreas focais de MPBD que não foi corretamente diagnosticado, por ausência de biópsia de toda a área afetada.2
O caso clínico apresentado mostra a necessidade de uma abordagem cirúrgica agressiva inicial e de um seguimento posterior muito cuidadoso, uma vez que a doença pode ter uma evolução lenta mas com capacidade de metastização à distância.
Figura I

Imagem de Tomografia Computorizada do abdómen onde é visível uma volumosa ascite em 2 planos distintos, bastante distantes entre si, o que demonstra a abundante quantidade de líquido ascítco.
Figura II

Resumo analítico do liquído ascítico
Figura III

Figura 3: No estudo histológico observam-se aspetos de proliferação celular, com características citomorfológicas compatíveis com células mesoteliais, sem sinais invasivos do tecido subjacente, onde se observam aspetos de hiperplasia linfoide associada. (Coloração Hematoxilina/Eosina)
BIBLIOGRAFIA
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