INTRODUÇÃO
A fibrose retroperitoneal (FRP) é uma doença rara e na maioria das vezes idiopática.1 Um terço dos casos pode ser secundária a traumatismos, infecções, neoplasias e fármacos.1 Os produtos utilizados nas medicinas alternativas, em particular os comercializados com o propósito de perder peso, são um negócio em clara expansão.2 Apesar da sua popularidade, não são desprovidos de efeitos adversos e a sua eficácia não está comprovada.2
CASO CLÍNICO
Mulher de 47 anos, fumadora de 34 unidades-maço-ano e sem medicação crónica. Com o propósito de perder peso iniciou o consumo das seguintes substâncias na forma de três comprimidos diários: o primeiro contendo butilamina-clorofenil-propanona 110mg e clorodiazepóxido 3mg; o segundo Garcinia cambogia 440mg e picolinato de crómio 0,1mg, e outro vitamina A (500.000 UI/g) 2mg, extracto de boldo (Peumus boldus), Equisetum arvense 100mg, Cascara sagrada 50mg e Fucus vesiculosus 100mg.
Um mês depois recorreu ao serviço de urgência por dor dorsolombar esquerda com irradiação ao flanco, fossa ilíaca e região inguinal homolateral, acompanhada de anorexia, náuseas e vómitos. O exame objectivo era normal excepto pela presença de Murphy renal esquerdo. Analiticamente destacava-se ligeira leucocitose (12 700/µL) e elevação da proteína C-reactiva (PCR): 23,9mg/L. A função renal era normal e o sedimento urinário apresentava alguns eritrócitos, hemoglobina de 0,06mg/dL e proteínas de 10mg/dL. A ecografia renal mostrou dilatação uretero-pielo-calicial esquerda com bacinete de 9 mm. Após analgesia eficaz teve alta, porém, por recorrência da dor foi referenciada à consulta de urologia.
Realizou tomografia computorizada (TC) mantendo uretero-hidronefrose à esquerda por encarceramento do ureter por processo de fibrose retroperitoneal, com extensão crânio-caudal de 8 cm e com envolvimento da aorta e das artérias ilíacas primitivas, mas sem compromisso do seu calibre (Fig. 1 e 2). Não foi documentada litíase renal, nem alterações do aparelho excretor direito. Perante estas alterações, e temendo-se o posterior envolvimento do aparelho excretor direito, colocou cateteres ureterais bilaterais e iniciou também seguimento em consulta de medicina interna.
Realizou radiografia de tórax, avaliação analítica e imunológica que foram normais, excepto por ligeira elevação da PCR. (Tabela 1)
Pelo processo fibrótico iniciou prednisolona 40mg/dia (0,5mg/Kg/dia) durante 6 semanas, após as quais se prosseguiu com redução lenta e gradual da corticoterapia ao longo de 16 meses.
De referir que imediatamente após os primeiros sintomas, a doente suspendeu por sua iniciativa as substâncias referidas acima.
Repetiu TC após 3 semanas de corticoterapia verificando-se redução de 50% da fibrose e resolução da uretero-hidronefrose. A avaliação imagiológica seriada mostrou evolução favorável que permitiu a remoção do cateter ureteral direito aos 3 meses de corticoterapia. Aos 5 meses de tratamento a fibrose estava praticamente resolvida, permanecendo apenas discreto espessamento dos tecidos peri-aórticos acima da bifurcação ilíaca (Fig. 3 e 4). Deste modo, 3 semanas após esta última TC, removeu-se o cateter ureteral esquerdo. Durante os 48 meses de seguimento os exames de imagem subsequentes confirmaram fibrose retroperitoneal em remissão (última TC 33 meses após suspensão da terapêutica). Não houve novas manifestações clínicas e a função renal permaneceu sempre normal.
DISCUSSÃO
A fibrose retroperitoneal é uma doença rara caracterizada pela presença de tecido fibro-inflamatório no retroperitoneu que frequentemente encarcera os ureteres e outros órgãos intrabdominais.3 O diagnóstico ocorre geralmente entre os 50 e os 60 anos e os homens são afectados 2 a 3 vezes mais frequentemente que as mulheres, estimando-se uma prevalência de 1.4/100.000 habitantes e incidência anual de 0.1 a 1.3/100.000 habitantes.4 São reconhecidas duas formas da doença: a idiopática, responsável por cerca de 60% dos casos, associada ou não com a doença relacionada à IgG4 (DR-IgG4), e a secundária.1,5 A patogénese da forma idiopática é desconhecida e provavelmente multifactorial, resultando da complexa interacção de determinantes genéticos e factores ambientais, sobretudo o tabagismo e a exposição a asbestos.3,4 No geral, a compreensão da doença tem evoluído no sentido desta ser provavelmente a manifestação de uma doença sistémica auto-imune.3,5 A FRP pode também ser secundária a infecções, neoplasias, procedimentos médicos como cirurgias ou radioterapia, trauma, hemorragia e fármacos.1
Os doentes podem apresentar sintomas sistémicos como fadiga, anorexia e perda ponderal, e sintomas localizados resultantes do encarceramento dos órgãos abdominais, sendo o mais frequente a dorsalgia e a cólica renal.3 Não existe nenhum exame laboratorial específico para o diagnóstico de FRP.3,4 Há geralmente elevação da PCR e da VS, embora nem sempre relacionadas com a actividade da doença, e pode ocorrer insuficiência renal, consoante a gravidade da obstrução renal, anemia e mais raramente leucocitose, eosinofilia, hipergamaglobulinémia, proteinúria e hematúria microscópica.3,4 Dos testes de auto-imunidade os ANA são positivos em 60% dos doentes que apresentam a forma primária.3 Outros anticorpos como o factor reumatóide, anticorpos anti-músculo liso, anti-double stranded DNA e ANCA podem ser positivos, embora sejam inespecíficos.3 Quando presentes, os Ac-TG e Ac-TPO geralmente indicam tiroidite auto-imune, que representa provavelmente a doença auto-imune mais vezes associada à FRP.3 O diagnóstico definitivo é feito por biópsia, contudo nem sempre esta é realizada, cabendo actualmente aos exames de imagem, sobretudo à TC e à ressonância magnética, mas também à tomografia emissora de positrões (TEP) e à TEP/TC, o papel principal no diagnóstico e seguimento da doença.4,5
Neste caso particular pensamos que as substâncias ingeridas pela doente com o propósito de emagrecer tiveram um papel fulcral na génese da doença.
O recurso às medicinas alternativas, em particular a utilização de preparações baseadas em extractos de plantas, com intuito de emagrecer e para outras patologias é uma tendência crescente nos países ocidentais.6,7 Um dos principais problemas destas substâncias é que são facilmente adquiridas em lojas ou na internet e não são considerados verdadeiros fármacos pelos consumidores.8 Não são sujeitos a ensaios clínicos para averiguar a sua eficácia e segurança antes da comercialização, nem a sua supervisão e regulação se encontra a cargo das autoridades de farmacovigilância habituais.8 Por serem considerados “naturais” estes produtos transmitem uma falsa sensação de segurança, conduzindo os seus consumidores a omitir a sua utilização aos médicos, ainda que as doses recomendadas e seguras sejam de modo geral desconhecidas.2,6,8
Algumas das substâncias consumidas pela doente são utilizadas pelos seus alegados atributos na perda de peso, supressão do apetite, propriedades diuréticas e laxantes e no alívio da dispepsia.8-13 Apesar da popularidade, nos poucos estudos que existem sobre algumas das substâncias utilizadas, estas falharam cabalmente em mostrar eficácia clínica, existindo inclusive vários relatos de toxicidade, inclinando a balança do risco/benefício contra o seu uso.2, 6-13
Nesta doente cremos que a FRP foi precipitada pelo uso destes produtos, sendo, tanto quanto sabemos, o primeiro caso descrito de FRP associada a este tipo de substâncias químicas. A relação causa-efeito é sempre difícil de provar, contudo as circunstâncias descritas são fortemente sugestivas de um papel directo na génese da doença. Além da forte relação temporal entre o consumo destas substâncias e o aparecimento dos sintomas, a exclusão de outras etiologias e a excelente resposta à suspensão dos suplementos e à corticoterapia reforçam esta hipótese. Além do consumo de várias substâncias (nove neste caso) estar associado a maior risco de toxicidade, não é raro estes produtos estarem adulterados com outros componentes não declarados.6,8
O principal diagnóstico diferencial da FRP é com a DR-IgG4, uma doença heterogénea reconhecida somente em 2003, que pode afectar apenas um órgão ou ter expressão sistémica.14 Esta doença pode acompanhar-se de níveis elevados de IgG4, mas o gold standard diagnóstico é a biopsia.14 Na FRP a biópsia é geralmente reservada para doentes com localização atípica, achados clínicos, laboratoriais ou imagiológicos sugestivos de doença infecciosa ou neoplásica, ou quando não existe uma boa resposta à terapêutica, circunstâncias que não se verificaram.3,4 Houve interesse em realizar a biopsia do tecido retroperitoneal pelo valor no diagnóstico diferencial, mas a rápida redução volumétrica da fibrose com apenas 3 semanas de corticoterapia tornou o procedimento inviável e com risco superior ao potencial benefício. A quantificação das subclasses de IgG não foi realizada logo no início do seguimento e perante a boa evolução clínica com o tratamento não se realizou posteriormente por dois motivos. Por um lado os níveis de IgG4 parecem diminuir significativamente com o início dos corticóides, e a sua determinação ainda não mostrou valor diagnóstico.14 Por outro lado, o seu doseamento não iria mudar a atitude terapêutica, que em ambas as entidades se baseia na corticoterapia.3,14
O facto de não haver recidiva da FRP nem novas manifestações clínicas vários anos após a interrupção dos corticóides reforça a convicção do envolvimento directo dos produtos consumidos.
Não existem guidelines definidas no tratamento da fibrose retroperitoneal. É consensual que os corticóides são a primeira linha do tratamento, podendo ser necessários imunossupressores mais potentes, como a ciclofosfamida e a azatioprina.3,4 As formas secundárias requerem a remoção do fármaco suspeito, e os corticóides são muitas vezes igualmente necessários.3
Este relato de uma doença grave, provavelmente secundária a estas substâncias de medicina alternativa, alerta-nos para os seus riscos e da importância de as procurarmos activamente na anamnese.
Artigo redigido segundo o antigo acordo ortográfico
Quadro I
Resumo da avaliação analítica e imunológica realizada
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Resultado | Valor de Referência do laboratório |
Hemoglobina: 12,6 g/L | 11.5 – 15.5 g/L |
Leucócitos 9600/ µL | 4,5 – 11 000/µL |
Ureia: 36 mg/dL | 17 – 43 mg/dL |
Creatinina: 0,77 mg/dL | 0,51 – 0,95 mg/dL |
Bilirrubina Total: 0,63 mg/dL | 0,3 – 1,2 mg/dL |
AST: 12 U/L | < 35 U/L |
ALT : 9 U/L | < 35 U/L |
Fosfatase Alcalina: 55 U/L | 30 – 120 U/L |
Velocidade de Sedimentação: 2 mm/h | < 20 mm/h |
ECA: 42 U/L | 16 – 85 U/L |
TSH: 1,409 uUI/mL | 0,34 – 5,6 uUI/mL |
T4 livre: 0,91 ng/dL | 0,54 – 1,24 ng/dL |
Ac anti-peroxidade (TPO): < 0,25 UI/mL | < 9 UI/mL |
Ac anti-tiroglobulina (ATG): < 0,9 UI/mL | < 4 UI/mL |
Ac Anti-nucleares (ANA): negativos | - |
Ac. Anti-citoplasma dos neutrófilos (ANCA): negativos | - |
Complemento Fracção C3: 0,99 g/L | 0,9 – 1,8 g/L |
Complemento Fracção C4: 0,24 g/L | 0,1 – 0,4 g/L |
Proteínas totais: 70,9 g/L | 66 – 83 g/L |
Gamaglobulinas: 11,0 g/L | 7,1 – 15,6 g/L |
Doseamentos IgG, IgA e IgM: normais | - |
Figura I

Imagem de TC no momento do diagnóstico revelando fibrose retroperitoneal envolvendo a aorta
Figura II

TC revelando fibrose retroperitoneal com atingimento da aorta e artérias ilíacas primitivas no momento do diagnóstico.
Figura III

TC aos 5 meses de corticoterapia, mostrando fibrose retroperitoneal praticamente resolvida.
Figura IV

TC a mostrar evolução favorável da fibrose retroperitoneal aos 5 meses de corticoterapia e cateter ureteral esquerdo in situ.
BIBLIOGRAFIA
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