INTRODUÇÃO: Descrita em 1971 por Bywaters, 44 anos após o primeiro relato na infância por George Still, a Doença de Still no Adulto (DSA) é uma patologia sistémica, de baixa incidência e clínica inespecífica, cuja etiologia ainda permanece desconhecida.1,2
A tríade “clássica” de febre, artralgias e eritema cutâneo evanescente, com predomínio no adulto jovem, é aceite de forma consensual como a principal manifestação desta entidade.2,3,4Tipicamente, o quadro caracteriza-se por febre elevada, superior a 39ºC, com pico diário ou bi-diário de predomínio vespertino, sendo durante o período febril que se exacerba a restante sintomatologia, a destacar: exantema maculopapular de coloração rosada ou cor de salmão, por vezes pruriginoso, com acometimento do tronco e região proximal dos membros; artralgias de carácter migratório e simétrico, atingindo predominantemente as articulações dos joelhos, tornozelos, punhos, cotovelos e tardiamente as articulações carpometacárpicas, podendo coexistir artrite; e mialgias a nível cervical, dorso ou região proximal dos membros inferiores.2,3,4 Dos casos descritos na literatura destaca-se também como comum odinofagia associada a faringite não supurativa, hepatomegalia, esplenomegalia, adenomegalias e anemia.3,4
Laboratorialmente, a DSA carece de marcadores específicos, cursando com parâmetros de fase aguda elevados, dentro dos quais frequentemente se destaca a ferritina sérica com níveis anormalmente elevados, cinco vezes superiores ao valor normal, não constituindo, contudo, um marcador patognomónico.5
Pela inespecificidade clínica e laboratorial é um diagnóstico de exclusão, sendo importante despistar quatro grandes grupos nosológicos: doenças infeciosas, neoplásicas, tecido conjuntivo e granulomatosas. Após a exclusão de patologias que podem mimetizar o quadro clínico, existem um conjunto de critérios que permitem suportar o diagnóstico de DSA, sendo mais frequentemente citados os critérios de Yamaguchi e Fautrel (tabela1).
O tratamento assenta em três principais grupos farmacológicos: anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), corticosteroides e outros imunossupressores, nomeadamente metrotrexato, ciclosporina ou ciclofosfamida, efetuando-se o escalonamento terapêutico em função da resposta clínica. Recentemente, nos casos refratários, têm sido testados inibidores do fator de necrose tumoral alfa ou inibidores dos recetores das interleucinas 1 e 6.6
CASO CLÍNICO: Descreve-se caso de homem de 32 anos que recorreu ao serviço de urgência por febre diária, temperatura axilar máxima de 39,5ºC, com fraca resposta aos antipiréticos, com um mês de evolução. Cerca de uma semana após o aparecimento da febre iniciou queixas de oligoartralgia simétrica de características inflamatórias ao nível dos joelhos e articulações coxo-femurais, bem como, concomitante exantema cutâneo e mialgias, de caracter intermitente, com acometimento dos membros inferiores. Por esta sintomatologia já tinha recorrido ao seu médico assistente, onde inicialmente foi equacionada a hipótese de febre escaro-nodular, sendo medicado com doxiciclina e numa segunda avaliação prescrita amoxicilina + ácido clavulânico por suspeita de celulite do membro inferior esquerdo, mas sem melhoria. Negou queixas respiratórias, gastrointestinais ou génito-urinárias, perda ponderal, prurido, sudorese noturna, odinofagia, dor precordial ou outra sintomatologia. Não apresentava antecedentes pessoais ou familiares de relevo, sem comportamento de risco para doenças sexualmente transmissíveis, história de transfusões sanguíneas, toma crónica de fármacos ou hábitos toxifílicos. A nível de contexto epidemiológico residia em meio urbano, convivendo com dois gatos, negando consumo de água não canalizada ou alimentos não pasteurizados
À admissão apresentava-se febril (temperatura timpânica:39.3ºC), normotenso (tensão arterial:104/82mmHg) e frequência cardíaca de 82bpm. Pele e mucosas coradas e hidratadas, observando-se exantema maculopapular de cor rosada em ambas as coxas, sem lesões de continuidade cutânea. Adenomegalia axilar palpável com cerca de 1cm, indolor, consistência mole e não aderente aos planos subjacentes. Sem sinais de artrite ao exame osteoarticular. Auscultação cardíaca com S1 e S2 rítmicos, sem sopros ou extrassons e auscultação pulmonar com múrmuro vesicular mantido e simétrico, sem ruídos adventícios. A nível abdominal sem dor espontânea ou à palpação e sem organomegalias. Exame neurológico sumário sem alterações, não apresentando sinais de irritação meníngea.
Na avaliação analítica inicial salientava-se leucocitose:17.400/uL com neutrofilia de 87%, velocidade de sedimentação de 80mm/h, proteína C reativa de 8,4mg/dL, creatinina, ureia, transaminases e exame de urina com sedimento urinário sem alterações. A radiografia de tórax e eletrocardiograma não evidenciaram alterações.
Pelo quadro de febre elevada e arrastada sem foco evidente, foi admitido para internamento tendo, por presunção de etiologia infeciosa, iniciado antibioterapia empírica de largo espectro com piperacilina+tazobactam e vancomicina, após colheita de exames culturais.
No internamento manteve períodos de febre, com picos bi-diários, oscilando entre 39º e 40ºC, e queixas de oligoaltralgia simétrica, apesar de manter antibioterapia e terapêutica antipirética. Do estudo complementar inicial efetuado para despiste de causa infeciosa destacavam-se hemoculturas com incubação prolongada e urocultura negativas. Reações de Weil-Félix, Huddleson, Widal, Paul-Bunnell e Rosa Bengala negativas. Serologias para vírus Epstein-Barr, Citomegalovírus, Toxoplasmose, Rubéola,Chlamydia spp,Mycoplasma spp, vírus da imunodeficiência humana, Sífilis e Hepatites víricas negativas e teste de Mantoux não sugestivo de tuberculose.
Para estudo imagiológico foi pedido ecocardiograma transtorácico que não apresentava alterações estruturais ou sugestão de vegetações valvulares e realizou tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica que revelou presença de gânglios linfáticos axilares o maior à direita com 3cm, de aparente natureza reativa, que foi excisado com colaboração da Cirurgia Geral.
Enquanto se aguardava o resultado anátomo-patológico do gânglio, efetuou-se broncofibroscopia com lavado bronco-alveolar cujo exame citoquímico não evidencou alterações, sendo a pesquisa de bacilos álcool ácido resistentes e os exames culturais negativos. Do restante estudo realizado realça-se eletroforese de proteínas com padrão de inflamação crónica inespecífica, ferritina sérica de 3.094µg/L (normal:12-306ug/L), Enzima Conversora da Angiotensinogénio (ECA) sérica normal, fator reumatoide, anticorpo anti-péptido citrulinado, anticorpos antinucleares e anti-dsDNA negativos e frações C3 e C4 do complemento normais.
Ao 22º dia de internamento o exame anátomo-patológico do gânglio excisado revelou gânglio linfático de estrutura conservada sem evidência de aspeto patológico sugestivo de doença granulomatosa ou neoplásica.
Perante a negatividade dos exames realizados, clínica arrastada de febre elevada, artralgias, exantema cutâneo evanescente, ausência de resposta à terapêutica antibiótica e evidência de hiperferritinémia, os autores, baseando-se nos critérios de Yamaguchi, assumiram o diagnóstico de DSA.
Dado o doente estar previamente medicado com AINEs sem melhoria, iniciou-se prednisolona 60mg/dia (1mg/kg/dia), verificando-se resposta favorável, com remissão do quadro clínico ao fim de 4 dias, tendo alta ao 26º dia de internamento.
Na reavaliação ao 1º mês pós internamento, sob desmame de prednisolona, o doente mantinha-se assintomático, sem parâmetros inflamatórios elevados e normalização da ferritina (286mg/dL). Ao 3º mês foi novamente avaliado, já sem corticoterapia, não apresentando recidiva.
DISCUSSÃO: A febre é um dos sinais mais frequentes na prática clínica. Uma síndrome febril obriga a um pensamento abrangente e marcha diagnóstica minuciosa que permita conduzir ao diagnóstico final. De um modo geral, existem quatro principais grupos nosológicos a investigar num quadro febril sem foco evidente: doenças infeciosas, neoplásicas, do tecido conjuntivo e granulomatosas.
No caso descrito, a exclusão de etiologia infeciosa baseou-se na negatividade dos exames microbiológicos e das serologias pedidas, relembrando-se o essencial despiste de tuberculose em todos os casos de febre de origem não esclarecida. A TC toraco-abomino-pélvica permitiu excluir presença de eventuais focos de infeção ou abcessos. O ecocardiograma normal, ausência de sopro cardíaco e hemoculturas com incubação prolongada negativas, para despiste concomitante de bactérias gram-negativas de crescimento lento do grupo HACEK, permitiram eliminar endocardite infeciosa.
Excluídas as principais doenças granulomatosas infeciosas era necessário avaliar as não-infeciosas. A sarcoidose foi eliminada pela ausência de alterações na radiografia e TC torácicas, bem como o doseamento sérico da ECA, lavado bronco-alveoloar e histopatologia do gânglio normais.
O despiste de doença neoplásica, principalmente de origem hematológica, é importante perante jovem com febre arrastada e adenomegalias. A ausência de sintomas B, além da febre, ausência de hepato ou esplenomegalia e hemograma, esfregaço de sangue periférico e exame anátomo-patológico de gânglio linfático normais, associadas à não identificação de neoformações na TC toraco-abomino-pélvico permitiram descartar esta hipótese.
Num doente jovem com quadro de febre, artralgias e parâmetros de inflamação elevados é fundamental a exclusão de patologia autoimune. Neste contexto foram doseados os anticorpos anti-dsDNA, anticorpos antinucleares, fator reumatóide e anticorpo anti-péptido citrulinado que foram negativos. As vasculites podem igualmente cursar com quadros sistémicos, neste caso o exame de urina e sedimento normais, aliadas à função renal normal, ausência de alterações pulmonares ou púrpura cutânea, não corroboraram esta hipótese.
Por fim, um quadro inflamatório importante com hiperferritinémia obriga a equacionar a presença ou associação da síndrome hemofagocítica secundária, caracterizada pela ativação macrofágica com fagocitose dos diferentes componentes celulares sanguíneos e precursores. A ausência de citopenias, alterações hepáticas ou hemofagositose no gânglio excisado, a par da estabilidade clínica, não suportaram associação desta entidade.
Assim sendo, após o resultado desta marcha diagnóstica, apresentando o doente 4 critérios major e 2 minor segundo Yamaguchi, assumiu-se o diagnóstico de DAS, corroborado pela cinética descendente da ferritina após resolução do quadro.
A duração prolongada do internamento relacionou-se com a necessidade da colaboração de outras especialidades nos exames complementares, contudo, pela estabilidade clínica e analítica apresentada, os resultados dos exames mais morosos poderiam ter sido aguardados e avaliados em ambulatório. A opção de manter o internamento fundamentou-se na celeridade diagnóstica.
A abordagem da febre é sem dúvida uma das artes da Medicina. Este relato de caso tem como objetivo relembrar a DSA como causa de síndrome febril arrastada, cujo diagnóstico, atendendo à ausência de marcadores patognomónicos e clínica inespecífica, pode passar despercebido.
Quadro I
Critérios de diagnóstico de Doença de Still no Adulto.
Critérios de Yamaguchi (5 ou mais critérios, dos quais 2 ou mais major) | Critérios de Fautrel (4 ou mais critérios major ou 3 major e 2 minor) |
Major: - Febre >39,0ºC mais de uma semana - Artralgias ou artrite, 2 ou mais semanas - Exantema típico - Leucocitose > 10.000/mm3 com Polimorfonucleares >80% | Major: - Picos Febris ≥ 39,0ºC - Artralgia - Eritema evanescente - Faringite - Polimorfonucleares ≥ 80% - Ferritina Glicosilada ≤ 20% |
Minor: - Odonifagia - Linfadenopatias - Hepatomegalia ou esplenomegalia - Alteração das provas de função hepática - Anticorpos antinucleares e fator reumatóide negativos | Minor: - Exantema maculopapular - Leucocitose > 10.000/mm3 |
Adaptado de: - Yamaguchi M, Ohta A, Tsunematsu T, Kasukawa R, Mizushima Y, Kashiwagi H et al. Preliminary criteria for classification of adult Still´s disease. J Rheumatol. 1992;19(3):424-430 - Fautrel B, Zing E, Golmard JL, Le Moël G, Bissery A, Rioux C et al. Proposal for a new set of classification criteria for adult-onset still disease. Medicine (Baltimore). 2002;81(3):194-200.
BIBLIOGRAFIA
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2.Giacomelli R, Ruscitti P, Shoenfeld Y. A comprehensive review on adult onset Still’s disease. J Autoimmun. 2018;93:24–36.
3.Kadavath S, Efthimiou P. Adult-onset Still´s disease-pathogenesis, clinical manifestations, and new treatment options. Ann Med. 2015;47:6–14.
4.Cabanelas N, Ferreira P, Esteves MC, Roxo F. Avanços no conhecimento da doença de Still do adulto, Acta Med Port. 2011;24(1):183-192
5.Fautel B, Le Moël G, Saint-Marcoux B, Taupin P, Vignes S, Rozenberg S et al. Diagnostic value of ferritin and glycosylated ferritin in adult onset Still’s disease. J Rheumatol. 2001;28(2):322-329
6.Castañeda S, Blanco R, González-Gay MA. Adult-onset Still´s disease: Advances in the treatment. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2016;30(2):222-238.