INTRODUÇÃO:
O Saccharomyces cerevisiae é uma levedura ubiquitária que pode ser encontrada em diversas plantas, frutas e até no solo.1,2 Há ainda alguns autores que questionam a possível colonização natural de algumas áreas do organismo humano, tais como o trato respiratório, digestivo e génito-urinário, em oposição há sua presença apenas transitoriamente após a ingestão de comida, questão que ainda carece de confirmação.1,3,4
Esta levedura tem uma ampla utilização na indústria alimentar, nomeadamente para a produção de cerveja, vinho e pão, mas também na indústria farmacêutica integrando probióticos, no entanto para esta última função é utilizado o um subtipo do Saccharomyces cerevisiae, designado Saccharomyces boulardii, sendo a distinção entre estas duas leveduras difícil de realizar.1,5 Os probióticos, designadamente os que têm na sua composição o Saccharomyces boulardii, possuem diversas indicações clínicas para doenças do trato gastrointestinal, como são exemplo a prevenção ou encurtamento da duração da diarreia secundária aos antibióticos, a prevenção da recorrência do Clostridium difficile, entre outras, sabe-se que a sua aplicação é controversa e que a sua segurança e eficácia carecem de mais estudos.4-8
Apesar de antigamente o Saccharomyces cerevisiae ter sido considerado um microorganismo não patogénico, essa crença foi contrariada por relatos na literatura de variados casos de infeções fúngicas invasivas por ele originadas e cuja incidência, apesar de rara, tem vindo a aumentar desde 1990.1,2,9-12 A manifestação clínica mais importante do Saccharomyces cerevisiae é a fungemia, uma vez que é geralmente a mais grave e o sangue é o local onde é mais frequentemente isolado. Outras manifestações possíveis são pneumonia, empiema, peritonite, vaginite, esofagite, infeção génito-urinária e celulite.1,13 Contrariamente, para o Saccharomyces boulardii a fungemia foi a única apresentação clínica registada.9
CASO CLÍNICO:
Homem de 68 anos, caucasiano, com antecedentes de hipertensão arterial, insuficiência cardíaca e submetido hemicolectomia direita por carcinoma do cólon há 1 ano. Internado através do serviço de urgência por quadro insidioso de astenia, dor lombar direita de intensidade ligeira, com agravamento progressivo, constante, sem fatores precipitantes ou de agravamento, que nos últimos 3 dias vinha se associando a episódios de fezes escuras. Ao exame objetivo destacava-se apenas a palidez cutânea e a presença de Murphy renal à direita. Analiticamente apresentava hemoglobina de 6,6 g/dL com microcitose e hipocromia, 246000/uL plaquetas, Proteína C reativa de 6,52 mg/dL, mas sem alterações da série branca, bioquímica sérica e do sumário de urina. Foi transfundido com duas unidades de concentrado de eritrócitos. Fez estudo endoscópico que revelou presença de “fezes esverdeadas no lúmen, sem sangue, com progressão condicionada na transição reto-sigmóide por angulação”. A tomografia axial computadorizada mostrou imagem sugestiva de neoplasia do intestino delgado com invasão retroperitoneal direita.
O doente foi submetido a nefrectomia direita com ressecção segmentar múltipla do intestino delgado. Complicou no pós-operatório imediato por deiscência da sutura do cólon, sendo novamente intervencionado e transferido para unidade de cuidados intensivos (UCI) por quadro de choque distributivo com PaO2/FiO2: 130 mmHg sob ventilação mecânica, perfusão de noradrenalina a 0,1 mg/Kg/min, bilirrubina total de 1,2 mg/dL, 107000/uL plaquetas, creatinina de 1,35 mg/dL e 10 pontos na escala de coma de Glasgow (SOFA score: 12), devido a uma peritonite a Enterococus faecium sensível a estreptomicina em alta concentração, vancomicina e tigeciclina, medicado com vancomicina.
No 15º dia de internamento apresentou nova deterioração do estado geral por nova septicemia decorrente a bacteriemia e pneumonia por Klebisiella pneumoniae multi-sensível e Acinetobacter baumanii sensível apenas a colistina, identificados nas culturas de secreções brônquicas e hemoculturas, medicado com colistina. Inicialmente teve boa resposta a antibioticoterapia, mas ao 25º dia apresentou novo agravamento do estado geral com febre, sem foco infecioso claro com uma PaO2/FiO2: 187 mmHg, necessidade de perfusão de noradrenalina a 0,15 mg/Kg/min associada a dobutamina a 6 mg/Kg/min, bilirrubina total 7,21 mg/dL, 73000/uL plaquetas, creatinina: 2,01 mg/dL e 8 pontos na escala de coma de Glasgow (SOFA score: 17). Realizou-se a substituição do cateter venoso central e colheita de culturas. As hemoculturas e a cultura da ponta do cateter foram positivas para Saccharomyces cerevisiae. Não foi tecnicamente possível, junto ao laboratório, distinguir os tipos S. cerevisiae e S. boulardii.
Apesar do doente não ter sido medicado com compostos a base de Saccharomyces, sua medicação era manipulada numa bancada conjunta, onde estava sendo preparado um liofilizado a base de Saccharomyces boulardii, o que provavelmente promoveu contaminação cruzada das medicações. Foi então instituída terapêutica com anfotericina B lipossomal. Evoluiu inicialmente com melhoria da febre, descida dos parâmetros inflamatórios e necessidade decrescente de drogas vasoativas. Ao décimo dia, dada a progressiva deterioração renal e hepática, foi submetido técnica dialítica. Falecendo após 18 dias de tratamento em decorrência a disfunção multissistémica.
DISCUSSÃO:
Atualmente o Saccharomyces cerevisiae é um microorganismo patogénico emergente e oportunista, não sendo apenas exclusivo de pacientes primariamente imunocomprometidos. A antibioterapia de largo espectro, a existência de dispositivos intravasculares, hospitalização prolongada em unidade de cuidados intensivos, ventilação mecânica, nutrição parentérica e a utilização de probióticos com Saccharomyces boulardii na sua composição, quer pelo próprio paciente, quer por outros pacientes admitidos na mesma unidade e localizados proximamente, são fatores de risco para infeção. Sendo a utilização de probióticos, responsável por cerca de 40% das infeções invasivas causadas por esta levedura.1,4,6,8,13,14
As hipóteses propostas para a explicação da génese da infeção por Saccharomyces cerevisiae são a translocação intestinal do microorganismo, a inoculação venosa através dos dispositivos intravasculares ou a colonização massiva de pacientes críticos.3,4,8,14,15
A sintomatologia frequentemente presente na infeção invasiva por Saccharomyces cerevisiae é a febre, que muitas vezes aparece em pacientes sob cobertura antibiótica de largo espectro e sem foco identificável. A sintomatologia inespecífica aliada à raridade do microorganismo envolvido dificulta o diagnóstico que é muitas vezes inesperado e revelado pelo resultado da hemocultura e ou da cultura do dispositivo intravascular.1,13 Para o diagnóstico laboratorial é necessário fazer referência à candidíase invasiva uma vez que esta é clinicamente indistinguível da infeção invasiva por Saccharomyces cerevisiae e partilha os mesmos fatores de risco com exceção da utilização de probióticos.1
O tratamento da infeção invasiva por Saccharomyces cerevisiae preconizado pela maioria dos autores passa pela utilização de fluconazol e anfociterina b, isoladamente ou em associação, apesar dos esquemas terapêuticos não serem consensuais e até existir referência a uma baixa suscetibilidade do microorganismo para derivados dos azóis. Contudo, o outcome favorável dos pacientes tratados com fluconazol pode reflectir uma correlação pobre entre os testes in vitro e a eficácia clínica ou uma variabilidade das resistências que podem diferir geograficamente.1,4,9,14 Para além da intervenção terapêutica há um conjunto de outras atitudes igualmente importantes como a remoção dos cateteres venosos centrais, suspensão de tratamentos probióticos e a adoção de medidas específicas aquando do manuseio de tratamentos contendo Saccharomyces boulardii.1,3,4,9 Isto porque segundo Hennequin et al., a abertura de uma embalagem de probiótico contendo Saccharomyces boulardii, com o objetivo de ser preparado para posterior administração, resulta numa libertação de células viáveis que permanecem nas superfícies circundantes no perímetro de 1 metro de distância durante cerca de 2 horas, e ainda nas mãos do profissional de saúde que manuseia o produto em questão mesmo após higienização vigorosa das mesmas. 9 Desta forma é fortemente recomendado que tratamentos contendo Saccharomyces boulardii sejam preparados utilizando luvas, em local adequado e fora do quarto do doente e com posterior higienização.8,9,15
Tanto o Saccharomyces cerevisiae como o Saccharomyces boulardii são considerados microorganismos de baixa virulência, facto que é suportado pela ausência de diferenças significativas de outcome em pacientes imunocompetentes e imunocomprometidos. Esta circunstância também pode ser explicativa do outcome maioritariamente favorável com resolução do quadro após instituição da terapêutica, no entanto há que ressalvar que habitualmente há um quadro clínico de base que é grave e que muitas vezes é o maior responsável pelo outcome.1,9
Apesar dos benefícios comprovados da utilização de probióticos em situações clínicas específicas é recomendada uma utilização ponderada e consciente destes, que só deve ser feita após uma avaliação cuidadosa do paciente em questão, do risco de infeção sanguínea envolvido e do benefício potencial da terapêutica. Há quem seja mais radical e desencoraje a utilização de probióticos em doentes críticos, especialmente nos que têm linhas centrais intravasculares.4,8,9
Este assunto tem uma importância crescente pois, apesar do aumento progressivo da incidência das infeções invasivas causadas por Saccharomyces cerevisiae, estas continuam a ser subestimadas, consequência quer da ignorância do papel cada vez mais preponderante desta levedura como microorganismo patogénico oportunista, quer por diagnósticos microbiológicos por vezes erróneos que identificam a maioria das leveduras isoladas como pertencentes ao género Candida.9,15
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