Introdução
A Síndrome CREST é uma doença auto-imune multissistémica, variante limitada da Esclerose Sistémica, que se caracteriza por calcinose, fenómeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia e telangiectasias. O envolvimento cutâneo é caracteristicamente distal aos cotovelos e joelhos podendo também envolver cabeça e pescoço.
O diagnóstico de Esclerose Sistémica é confirmado pela clínica e pelos achados laboratoriais e imagiológicos,1apoiados pelos recentes critérios de esclerose sistémica da ACR – EULAR (American College of Rheumatology and European League Against Rheumatism). Esses critérios incluem: 1. Espessamento cutâneo dos dedos de ambas as mãos estendendo-se proximalmente até à articulação metacarpo-falângica; 2. Úlceras digitais; 3. Telangiectasias; 4. Alterações na capilaroscopia; 5. Hipertensão Arterial Pulmonar e/ou Doença intersticial Pulmonar; 6. Fenómeno de Raynaud; e 7. Qualquer um dos anticorpos relacionados (anti-centrómero, anti-topoisomerase I [anti-Scl70], anti-RNA topoisomerase III).2
A esclerose sistémica tem uma incidência na Europa de cerca de 20 casos por milhão, sendo uma patologia maioritariamente diagnosticada em mulheres. Até à data, não há certezas quanto a factores ambientais que predisponham para o aparecimento da doença.3Uma coorte demonstrou que a idade média do diagnóstico ronda os 45 anos de idade e que cerca de 90% dos doentes têm a doença antes dos 65.3, 4
Nos últimos anos tem sido identificada uma variedade de auto-anticorpos presentes nesta patologia, que podem estar associados a características muito específicas – nomeadamente demográficas, clínicas, envolvimento de órgão e sobrevida – tornando-se assim biomarcadores úteis de fenótipos clínicos, padrão de envolvimento orgânico, prognóstico e monitorização.5-7
Sabe-se actualmente que esta doença constitui um factor de risco independente para aterosclerose8e calcificação coronária severa9comparativamente à população em geral, ainda que na ausência de outros factores de risco cardiovascular.9Foi também descrito que os portadores da doença têm um risco aumentado de eventos cardiovasculares como enfarte do miocárdio, principalmente nos primeiros anos após o diagnóstico.10, 11Sabe-se ainda que o aparecimento tardio (≥ 65 anos) da doença está relacionado com a presença do anticorpo anti-centrómero e com um aumento de risco para hipertensão pulmonar, fraqueza muscular, doença renal e doença cardíaca.3, 4Cerca de 14% das mortes relacionadas com a Esclerose Sistémica são por doença miocárdica.2
Caso Clínico
Homem de 70 anos, caucasiano, reformado do sector terciário, sem factores de risco cardiovascular conhecidos, sem exposições ambientais de relevo.
Como antecedentes apresentava cardiopatia isquémica com enfarte agudo do miocárdio (EAM) anterior extenso 5 anos antes do internamento com necessidade de cateterismo, anemia crónica (ferropenia + hipovitaminose B12), hipotiroidismo, patologia esofágica inespecífica em estudo, doença renal crónica e doença arterial periférica (DAP) grave e incapacitante.
Medicado com triflusal 300mg b.i.d., clopidogrel 75mg o.d., carvedilol 6,25mg b.i.d., pantoprazol 20mg em jejum, furosemida 20mg o.d., espironolactona 25mg o.d., complexo de hidróxido férrico-polimaltose, ácido ursodesoxicólico 250mg b.i.d., alprazolam 0,5mg o.d., pentoxifilina 400mg b.i.d. e vitaminas do complexo B + Cálcio.
Recorre ao Serviço de Urgência (SU) por febre, taquipneia e dor pleurítica constante e sem irradiação na porção inferior do hemitórax esquerdo.
Apresentava-se consciente e orientado, aspecto emagrecido, fácies esclerodérmico (Figura 1-A), mucosas descoradas e desidratadas, escassas telangiectasias dispersas pelo tronco e face em número inferior a 10 e prurido generalizado. À auscultação cardíaca com taquicardia, sons cardíacos arrítmicos, sem sopros ou extra-sons. Auscultação pulmonar com crepitações finas na metade inferior do tórax bilateralmente e ausência de murmúrio vesicular na base esquerda. Abdómen sem alterações de relevo.
Extremidades dos membros superiores com esclerodactilia, prolongamento do tempo de preenchimento capilar e úlceras digitais (Figura 1-C). Os membros inferiores apresentavam-se edemaciados até ao joelho. Apresentava ainda fenómeno de Raynaud constante nas mãos (Figura 1-B) e pés.
Analiticamente, destacava-se anemia normocítica e normocrómica, leucocitose com neutrofilia, Proteína C Reactiva (PCR) de 107,5 mg/L, Velocidade de Sedimentação normal. Função renal e tiroideia normais. Coagulação normal. Défice de vitamina B12.
Estendeu-se o estudo para diagnóstico de doença autoimune, apresentando anticorpos anti-nucleares e anti-centrómero positivos. Troponina T de alta sensibilidade com elevação inicial em contexto de insuficiência cardíaca descompensada com fibrilhação auricular (FA) rápida, que rapidamente normalizou após controlo do ritmo.
Os achados do exame objectivo e do estudo imunológico fizeram suspeitar de um componente auto-imune responsável por parte do quadro clínico. O fenómeno de Raynaud isoladamente é bastante inespecífico; no entanto, associado aos restantes achados do exame objectivo, levantou precocemente a suspeita de uma doença do espectro da esclerose sistémica.
No raio-X de tórax observava-se índice cardio-torácico superior a 50% com derrame pleural esquerdo e o ecocardiograma transtorácico revelou ventrículo esquerdo severamente dilatado com fracção de ejecção de 40%, aurícula esquerda severamente dilatada em FA e câmaras direitas não dilatadas, sem evidência de hipertensão pulmonar e sem derrame pericárdico, achados estes interpretados como consequentes a insuficiência cardíaca.
O Raio-x dos membros mostrou calcificação vascular (Figura 2) e o Eco-Doppler arterial dos membros inferiores revelou oclusão da artéria tibial anterior bilateralmente, achados que se coadunam com a calcinose característica da síndrome CREST.
A TC-Tórax revelou esófago dilatado e contendo na sua metade inferior conteúdo heterogéneo em provável relação com conteúdo de estase (provável alteração da motilidade); derrame pleural bilateralmente, com maior expressão à esquerda; ateromatose calcificada da artéria aorta torácica e segmentos abdominais abrangidos, e das artérias coronárias (Figura 3).
Nas provas funcionais respiratórias, detectou-se um padrão restritivo com diminuição acentuada da difusão de monóxido de carbono, que poderia ser justificado pela doença, mais ainda com anticorpo anti-centrómero positivo.
Foi realizada capilaroscopia que evidenciou capilares ramificados, áreas avasculares e megacapilares; padrão sugestivo de fase tardia de esclerodermia (Fig. 4).
As hipóteses diagnósticas colocadas foram insuficiência cardíaca descompensada por infecção respiratória, com derrame pleural e síndrome CREST.
Iniciou terapêutica com antibioterapia para a infecção respiratória com melhoria clínica e analítica. Para a patologia isquémica e DAP, manteve a dupla antiagregação plaquetária e foi instituída Pentoxifilina 400mg b.i.d. A sintomatologia da insuficiência cardíaca foi controlada com Furosemida 40mg per os o.d. Iniciou reposição vitamínica com Cianocobalamina.
Para controlo da doença auto-imune foi tratado com Prednisolona 10mg o.d. (com desmame progressivo até 5mg/dia), Hidroxicloroquina 400mg o.d. e Ramipril 1,25mg o.d. O perfil hipotensivo do doente não permitiu a introdução de antagonistas dos canais de cálcio.
Iniciou concomitantemente um programa de reabilitação cardíaca e cinesiterapia respiratória.
Após as intervenções medicamentosas e não medicamentosas em contexto de internamento, e após melhoria clínica e analítica, o doente teve alta para ambulatório com seguimento em consulta externa de Medicina Interna e consulta externa de doenças auto-imunes. Vários meses depois, o doente voltou a ser internado com nova descompensação da sua patologia cardíaca, acabando por falecer no hospital.
Discussão
Além do quadro de descompensação de insuficiência cardíaca e infecção respiratória que motivou o internamento do doente, foram também notados elementos clínicos, analíticos e imagiológicos que levaram ao diagnóstico de síndrome de CREST, nomeadamente as calcificações vasculares, o fenómeno de Raynaud, a patologia esofágica, a esclerodactilia, as telangiectasias e o estudo imunológico.
A dismotilidade esofágica deveria ser confirmada por manometria, porém, não são necessários todos os componentes do CREST para se firmar o diagnóstico.2
O anticorpo anti-centrómero está frequentemente associado a envolvimento pulmonar, doença esofágica11e doença cardíaca,2o que está de acordo com o quadro deste doente.
De salientar que além do sexo masculino e da idade, o doente não apresentava mais nenhum factor de risco para doença cardiovascular, o que nos leva a considerar a doença sistémica como causadora dos eventos vasculares. Assim, o evento coronário pode ter sido a primeira manifestação da doença que passou despercebida até à data do diagnóstico.
Com este caso, salienta-se a apresentação multissistémica da doença, afectando diversos órgãos para além da pele, sendo a componente da calcinose o gerador de eventos isquémicos, nomeadamente com um enfarte agudo do miocárdio como primeiro grande evento clínico de manifestação da doença, não identificada anteriormente. O diagnóstico infrequente desta patologia em idade avançada, que pela apresentação tardia aumenta o risco de doença de órgão alvo nomeadamente cardíaca,4torna muito difícil a tarefa de tratar este tipo de doentes e evitar a morte precoce pelas complicações da doença. Sabemos que um EAM raramente resulta de uma patologia desta natureza, contudo queremos realçar a importância do diagnóstico diferencial e da abordagem do doente como um todo.
Consentimento informado: aquando do internamento, o doente deu o seu consentimento oral para a publicação dos dados e imagens deste artigo.Figura I

Fotografias revelando fácies esclerodérmico com telangiectasias (A), fenómeno de Raynaud (B) e úlceras digitais (C)
Figura II

Radiografia do membro inferior esquerdo demonstrando evidente calcificação vascular
Figura III

TC do tórax com dilatação esofágica e conteúdo de estase (seta grande); coronárias e aorta calcificadas (setas pequenas)
Figura IV

Capilaroscopia: capilares ramificados (A); área avascular (B); megacapilares (C & D)
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