Introdução
A síndrome de Mounier-Kuhn é uma doença rara cuja etiologia não está totalmente esclarecida.1 Apesar de haver descrição em autópsias já no ano de 1897 por Czyhlarz, apenas foi descrita como uma entidade com características clínicas, radiológicas e endoscópicas próprias em 1932 por Mounier-Kuhn.2-3 Caracteriza-se pela dilatação marcada da traqueia e brônquios, com transição abrupta para o normal calibre das vias aéreas periféricas. Resulta da atrofia da camada de músculo liso e fibras elásticas, podendo associar-se à formação de divertículos nas vias respiratórias e infeções respiratórias baixas de repetição.1 Cerca de uma centena de casos estão descritos na literatura. Contudo, supõe-se que a incidência desta patologia estará subestimada, já que com frequência os clínicos não estão alerta para esta entidade, além de que muitos casos são assintomáticos ou apresentam-se com sintomatologia inespecífica, o que também contribui para diagnósticos tardios.2 O caso que apresentamos diz respeito a um doente com Síndrome de Mounier-Kuhn diagnosticado durante o internamento hospitalar por uma infeção respiratória.
Caso Clínico
Homem de 48 anos de idade, que recorreu ao Serviço de Urgência por agravamento do padrão habitual de dispneia, tosse produtiva com expectoração muco-purulenta e de cheiro fétido, anorexia e arrepios. Tratava-se de um doente com história prévia de infeções respiratórias de repetição desde a infância (frequentemente a justificar internamento), hábitos tabágicos marcados (48 unidades maço/ano), doença pulmonar obstrutiva crónicaeinsuficiência respiratória crónica sob oxigenoterapia de longa duração desde os 40 anos e ventilação não invasiva desde os 43 anos de idade. Tinha também história detuberculose pulmonar em 2013, tendo cumprido 6 meses de antibacilares. À admissão apresentava-se apirético e hemodinamicamente estável mas taquipneico, com saturação periférica de oxigénio baixa (75% em ar ambiente) e alterações auscultatórias, com crepitações e roncos dispersos bilateralmente. Analiticamente apresentava elevação dos parâmetros inflamatórios (Proteína C Reativa 93mg/L) e insuficiência respiratória tipo 1 (paO2 68 mm Hg com FiO2 21%). A telerradiografia de tórax pôs em evidência opacidades alveolares e reticulares no andar médio e inferior do campo pulmonar direito, imagens aureolares bilaterais, adivinhando-se alargamento do diâmetro traqueal (Fig.1). Para melhor esclarecimento foi realizada uma tomografia computorizada torácica que mostrou traqueobroncomegalia, medindo a traqueia cerca de 5 centímetros de diâmetro máximo(Fig´s. 2 e 4)e os brônquios principais cerca de 2,5 centímetros de diâmetro máximo.Também se notavam múltiplas bronquiectasias varicosas e quísticas em ambos os pulmões, sendo particularmente volumosas no lobo médio, língula e bases pulmonares (Fig. 3) No lobo superior direito também se notavam alterações parenquimatosas sugestivas de pneumonia necrotizante, com identificação de duas lesões arredondadas, com parede hipercaptante e conteúdo líquido, medindo cerca de 3,5 centímetros cada (Fig. 5). Iniciou antibioterapia com Imipenem, após identificação de isolamentos prévios dePseudomonas aeruginosaem amostras de expetoração. Com base na tomografia computorizada e história clínica assumiu-se o diagnóstico de síndrome de Mounier-Kuhn. Pediu-se estudo imunológico alargado,incluindoAlfa-1-Antitripsina, anticorpos antinucleares, anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, complemento, fator reumatoide, anticorpos antipeptídeo citrulinado, imunoglobulinas, eletroforese sérica eteste de suor, que foram negativos.Por otites de repetição (sem noção de infertilidade) pediu-se escovado dos cornetos nasais que exclui uma Discinésia Ciliar Primária. Para excluir definitivamente uma fibrose quística realizou espermograma, dúbio (oligoespermia com volume reduzido e pH normal), tomografia computorizada dos seios perinasais (não sugestiva) e pesquisa de mutações no gene CFTR, também negativa.
O doente esteve internado durante três semanas para cumprimento de antibioterapia endovenosa com melhoria clínica, analítica, gasimétrica e radiológica, não se tendo isolado qualquer agente. Teve alta com oxigenoterapia de longa duração (Gasometria arterial (FiO2 24%): pH 7,47, pCO2 51 mm Hg, pO2 58 mm Hg, SatO2 91%) ventilação não invasiva, indicação para imunização com vacina da gripe e vacina anti-pneumocócica e orientação para consulta externa de Pneumologia.
Discussão
Breatnachet al.examinou as radiografias torácicas postero-anteriores e laterais de um grupo de 808 doentes sem patologia respiratória, mediu o diâmetro coronal e sagital da traqueia e definiu como limite superior da normalidade para a faixa etária 20-79 anos um diâmetro coronal de 25 milímetros e sagital de 27 milímetros no homem e 21 milímetros e 23 milímetrosna mulher, respetivamente.4
A traqueomegalia pode ser congénita ou secundária a diversas patologias. A traqueomegalia adquirida pode ser consequência de infeção e inflamação crónica da traqueia, com lesão da parede e posterior dilatação. Pode ser igualmente secundária a tabagismo, fibrose pulmonar, fibrose quística e policondrite recidivante. Embora menos comum, outra causa adquirida possível é a entubação traqueal prolongada.5Dentro da traqueomegalia congénita destacam-se as síndromes de Ehlers-Danlos, Marfan e Mounier-Kuhn.2
Este último é mais frequente no sexo masculino e diagnostica-se habitualmente entre os 30 e os 40 anos de idade. Não é claro, mas coloca-se a possibilidade de existir suscetibilidade familiar e estão descritos casos de hereditariedade autossómica recessiva, embora a maioria corresponda a situações esporádicas.6-7
No que diz respeito à clínica, manifesta-se frequentemente por infeções respiratórias de repetição, sendo muitas vezes mal diagnosticadocomo doença pulmonar crónica obstrutiva (DPOC), atrasando o seu diagnóstico. Os sintomas podem ser frustes ou severos, com grande variabilidade e inespecificidade, desde tosse e dispneia, a hemoptises e disfonia por paralisia das cordas vocais.3
Uma classificação proposta desta síndrome divide-a em 3 tipos: tipo 1, quando há uma dilatação ligeira e simétrica da traqueia e brônquios principais; tipo 2, com dilatação assimétrica e marcada, com presença de diverticulose traqueal e normalização abrupta do calibre das vias aéreas (é o mais comum) e finalmente o tipo 3, quando os divertículos estão presentes até aos brônquios distais.1,2,7
O diagnóstico é com frequência acidental. A traqueobroncomegalia pode ser vista na radiografia torácica, mas a tomografia computorizada é mais precisa, fazendo diagnóstico quando o diâmetro da traqueia excede os 3 centímetros e o brônquio principal direito e esquerdo 2.4 centímetros e 2.3 centímetros, respetivamente. Alémdisto, a tomografia permite ainda ver diverticulose traqueal e brônquica, bronquiectasias e enfisema, que resultam da perda das fibras musculares e elásticas, tornando a parede das vias aéreas mais frágil e provocando dilatação e protusões saculares entre a cartilagem. Em conjunto com tosse ineficaz e diminuição daclearancemucociliar, há acumulação de muco, infeções de repetição, e consequentemente, bronquiectasias e enfisema.8-9
A espirometria mostra habitualmente um padrão obstrutivo, com aumento da capacidade pulmonar total e do volume residual, podendo em fases avançadas associar-se também um padrão restritivo. No nosso doente, as últimas provas de função respiratória mostraram alteração obstrutiva grave com air-trapping.
A broncoscopia mostra a dilatação traqueal e brônquica, bem como a presença de diverticulose, caso esta exista. Além disso, permite observar, igualmente, a dinâmica das vias aéreas, nomeadamente o colapso traqueal durante a expiração. Torna-se assim, importante não só para o diagnóstico, mas também para orientação terapêutica, já que pode haver necessidade de colocar uma prótese traqueal.6,10
No caso descrito, o diagnóstico de síndrome de Mounier-Kuhn baseou-se em critérios clínicos e imagiológicos, não tendo sido possível a realização de broncofibroscopia por falta de condições clínicas. No nosso ponto de vista, as infecções respiratórias de repetição são consequência da síndrome de Mounier-Kuhn.O tratamento desta patologia é de suporte, passa por cessação tabágica e evicção de outros poluentes, cinesiterapia respiratória para drenagem das secreções e tratamento das infeções com antibioterapia, quando necessário. Em casos graves, em que haja colapso das vias respiratórias, pode estar indicado a colocação de prótese traqueal.1,2,6No que respeita ao uso de próteses traqueobrônquicas, não existem indicações definidas. A sua aplicação pode ser útil na paliação de sintomas e estabilização da via aérea. Aplicada em casos selecionados como nos doentes não candidatos a cirurgia e no caso de doença avançada. Tem sido reportado bons resultados na melhoria da qualidade de vida e da dispneia, mas sem alterações significativas nas provas de função respiratórias.6, 11, 12, 13
O transplante pulmonar não parece ser benéfico.1,6 Muitos autores recomendam profilaxia das infeções respiratórias, vacinação contrainfluenzae pneumococo. A ventilação não invasiva pode ajudar na melhoria sintomática, na medida em que permite manter a patência das vias aéreas e facilita a drenagem de secreções.1
Os autores alertam para o diagnóstico desta entidade rara, já que pode ter implicações clínicas e terapêuticas diferentes de outras doenças mais comuns com que se pode confundir.
Figura I

Radiografia tórax com opacidades alveolares e reticulares no andar médio e inferior do campo pulmonar e imagens aureolares dispersas bilateralmente.
Figura II

TAC torácica a mostrar consolidação com níveis hidro-aéreos no lobo inferior direito, a sugerir pneumonia necrotizante. Bronquiectasias bilaterais, com preenchimento endoluminal.
Figura III

TAC torácica a mostrar marcada dilatação dos brônquios principais e bronquiectasias.
Figura IV

TAC torácica a mostrar uma exuberante dilatação da traqueia.
Figura V

TAC torácica a mostrar duas áreas de consolidação pulmonar com broncograma aéreo no segmento anterior do lobo superior direito.
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