Introdução
Os abcessos hepáticos são a segunda causa de doenças infeciosas hepáticas e, se não tratados atempadamente, podem ser fatais.1 A Klebsiella pneumoniae é um dos microrganismos envolvidos na formação de abcessos hepáticos, constituindo um problema de saúde pública no Sudeste Asiático, onde atingem uma prevalência de cerca de 80%.2,3 Foram relatados casos esporádicos noutros países da Ásia, da América do Norte, da Europa e na Austrália, estando, até à data, documentados dois casos em Portugal.2,4,5
São descritos como fatores de risco para esta entidade clínica a doença hepato-biliar, a doença colorretal, a diabetes mellitus e a história prévia de cirurgia ou de trauma abdominal. Lin et al referem que a etnia chinesa pode ser, por si só, um fator de risco major para o desenvolvimento de abcessos hepáticos. Estes autores verificaram que esta etnia está predisposta à colonização intestinal por Klebsiella pneumoniae serotipo K1/K2, a qual, por sua vez, está associada à formação de abcessos hepáticos piogénicos.6 Existem vários casos descritos nos quais não se identificaram fatores de risco.1,2
O quadro clínico é caracterizado, fundamentalmente, pela presença de febre (93% dos casos), dor no hipocôndrio direito, náuseas, vómitos e diarreia.2
Analiticamente destacam-se a leucocitose, a elevação da proteína C reativa e as alterações das provas hepáticas.
A tomografia computorizada (TC) do abdómen é o exame imagiológico de eleição, sendo a confirmação do diagnóstico possível através da identificação do microrganismo causal no conteúdo do abcesso.
O tratamento definitivo inclui a drenagem do abcesso e a antibioterapia sistémica. Podem ser utilizados vários esquemas terapêuticos, sendo preferidos inicialmente os agentes beta-lactâmicos de largo espetro ou as cefalosporinas de 3ª geração em associação com metronidazol. Os aminoglicosídeos podem ser usados, apesar da sua fraca ação ao nível da cavidade abcedada, pois erradicam os microrganismos da corrente sanguínea, diminuindo a probabilidade de complicações. A antibioterapia endovenosa deve ser realizada durante 2 a 3 semanas, sendo posteriormente concluído o ciclo de antibioterapia oralmente, perfazendo um total de 4 a 6 semanas de duração, segundo o antibiograma. Uma duração mais prolongada do tratamento poderá ser necessária se houver necessidade de múltiplas drenagens do abcesso ou se persistir evidência imagiológica do mesmo. No entanto, por vezes, pequenas cavidades abcedadas podem persistir apesar de ciclos longos de antibioterapia, em doentes assintomáticos.2
As principais complicações resultantes desta patologia são a possibilidade de desenvolver focos de infeção metastática, mais frequentemente a nível oftalmológico (endoftalmite) e neurológico (meningite).2–4 A taxa de mortalidade é cerca de 11% e a de recorrência de cerca de 4%.7
Pela raridade desta patologia no nosso país, os autores apresentam um caso clínico de abcesso hepático por Klebsiella pneumoniae adquirido na comunidade.
Caso Clínico
Homem, de 51 anos de idade, proveniente da China, residente em Portugal há três anos, trabalhador na indústria hoteleira, sem antecedentes patológicos relevantes e sem intervenções cirúrgicas prévias ou trauma, nomeadamente a nível abdominal.
Admitido no serviço de urgência por quadro de febre (temperatura máxima 39,5ºC), mialgias e cefaleias, com cerca de 3 dias de evolução.
Apresentava tensão arterial de 143/81 mmHg, frequência cardíaca de 108 bpm, temperatura timpânica de 39,3ºC e saturação periférica de 98% em ar ambiente. O restante exame objetivo era normal.
No estudo analítico de sangue (Tabela 1), destacava-se a presença de leucocitose com neutrofilia, trombocitopenia ligeira (137x109/L), proteína C reativa elevada e padrão de citocolestase hepática. O exame sumário de urina era normal.
A ecografia abdominal revelou dois pequenos nódulos hepáticos compatíveis com angiomas e vários focos milimétricos que corresponderiam a microquistos.
A telerradiografia do tórax não evidenciou lesões pleuroparenquimatosas agudas.
O doente foi internado no serviço de Medicina Interna por febre e lesões hepáticas de natureza a esclarecer.
Ao 4º dia de internamento, obteve-se isolamento de Klebsiella pneumoniae multissensível em hemoculturas. Por manutenção de febre e início de dor abdominal ao nível do hipocôndrio direito, realizou TC abdominal que revelou a existência de nódulo hepático com 76 mm de diâmetro, com acentuado aumento das dimensões relativamente ao exame ecográfico prévio, compatível com abcesso hepático (Fig. 1). Observava-se, ainda, aparente infiltração adiposa da submucosa do cólon, por possível processo inflamatório.
Foi realizada drenagem percutânea guiada por TC, com saída de líquido purulento, no qual se isolou Klebsiella pneumoniae multissensível. O exame bacteriológico de fezes revelou-se também positivo para Klebsiella pneumoniae tendo a colonoscopia sido normal.
Do ponto de vista terapêutico, houve necessidade de repetir a drenagem percutânea (14 dias após a colocação do primeiro dreno) e cumpriu antibioterapia com piperacilina/tazobactam, segundo o antibiograma, durante 21 dias. Observou-se, então, a redução gradual das dimensões do abcesso (Fig. 2).
Teve alta clínica e manteve antibioterapia com ciprofloxacina, durante 9 semanas, segundo o antibiograma. Durante o seguimento, manteve-se clinicamente assintomático, apirético e analiticamente com normalização dos parâmetros inflamatórios (Tabela 1). A reavaliação imagiológica por TC abdominal, efetuada 3 meses após o diagnóstico, revelou acentuada redução do volume do abcesso anteriormente drenado (Fig. 3).
Discussão
A epidemiologia dos abcessos hepáticos tem sofrido alterações nas últimas décadas. Previamente, ocorriam sobretudo em indivíduos com patologia hepato-biliar ou colorretal subjacente, sendo o principal microrganismo envolvido a Escherichia coli.3,4 Nos últimos anos, tem sido descrita uma nova síndrome invasiva, com maior incidência na região do Sudeste Asiático, relacionada com a presença de abcessos hepáticos piogénicos, causados por estirpes hipervirulentas de Klebsiella pneumoniae, em doentes sem fatores de risco conhecidos. Nestes casos, têm sido relatadas possíveis complicações a nível neurológico e oftalmológico.2,4,8 Têm surgido diversos estudos sobre a etiologia desta síndrome, tendo sido documentada a existência de portadores assintomáticos de Klebsiella pneumoniae,por colonização intestinal, nomeadamente de estirpes hipervirulentas serotipos K1/K2.6,9
Deste modo, os abcessos hepáticos piogénicos por Klebsiella pneumoniae adquirida na comunidade consideram-se como uma doença emergente, sobretudo no Sudeste Asiático.2,3 No entanto, pela crescente globalização, quer a nível turístico, quer decorrente de fluxos migratórios, têm sido reportados casos esporádicos de abcessos hepáticos por Klebsiella pneumoniae, nomeadamente nos Estados Unidos da América, França, Dinamarca, Espanha e, ainda, dois casos em Portugal.1,4,5,10–12
O caso clínico acima descrito ilustra uma situação clínica raramente descrita em Portugal.4 A particularidade de se tratar de um doente asiático com colonização intestinal por Klebsiella pneumoniae, parece-nos ter sido determinante para o desenvolvimento do abcesso hepático.6,9 Tal como referido por Lin et al, a colonização da mucosa intestinal e a consequente disseminação hematogénica, por via portal, para o fígado, foi o mecanismo patogénico dominante.2,6 Tendo tido uma apresentação clínica e analítica características, salienta-se neste caso a rápida evolução imagiológica observada, elemento fundamental para o estabelecimento do diagnóstico. Este foi confirmado pelo isolamento do microrganismo no líquido de drenagem do abcesso, em hemoculturas e no exame bacteriológico de fezes, não tendo sido possível a caracterização da respetiva estirpe.
O surgimento deste caso em Portugal, num doente de origem asiática, é um exemplo de patologia relacionada com os movimentos migratórios existentes. Pela importância no capítulo de saúde pública, tem sido questionada a eventual identificação de portadores assintomáticos, através de rastreio microbiológico de fezes, no sentido da prevenção de infeção.4 No entanto, não existem estudos, mesmo nos países onde a prevalência desta entidade é superior, que corroborem a necessidade desta documentação.
Conclusão
Com a descrição deste caso de abcesso hepático por Klebsiella pneumoniae num doente asiático, portador assintomático deste microrganismo na mucosa intestinal, para além de ilustrar uma situação clínica pouco frequente, pretende-se exemplificar e salientar o impacto que as atuais correntes migratórias representam ao nível epidemiológico e de saúde pública. Assim, esta entidade, com prevalência crescente no Sudeste Asiático, pode surgir esporadicamente noutros locais do mundo, sendo importante a documentação destes casos clínicos, para um diagnóstico célere e tratamento e seguimento adequados.
Agradecimentos: Os autores fazem um agradecimento especial à Unidade de Radiologia de Intervenção do Hospital de Curry Cabral – Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central, nomeadamente, Prof. Dr. Tiago Bilhim, Dr. Filipe Veloso Gomes e Dra. Élia Coimbra pela realização das drenagens do abcesso guiadas por imagem, fundamentais para o sucesso terapêutico do doente.
Quadro I
Quadro resumo com evolução de resultados de análises sanguíneas.
| Admissão | 1ª drenagem | 2ª drenagem | Alta | 3 meses de seguimento | Valores de referência |
Análise sanguínea (unidade de medida) | | | | | | |
Hemoglobina (g/dL) | 16,3 | 12,5 | 13,6 | 14,2 | 15,7 | 13,0 – 17,0 |
Leucócitos (x 10E9/L) | 12,9 | 19,4 | 6,8 | 4,8 | 5,1 | 4,0 – 10,0 |
Bilirrubina total (mg/dL) | 2,1 | 5,8 | 1,5 | 1,3 | ND | 0,2 – 1,2 |
Bilirrubina direta (mg/dL) | 0,6 | 4,7 | ND | 0,8 | ND | 0,0 – 0,5 |
AST (U/L) | 63 | 49 | 49 | 29 | 25 | 5 – 34 |
ALT (U/L) | 55 | 56 | 91 | 57 | 33 | < 55 |
Fosfatase alcalina (U/L) | 68 | 251 | 434 | 282 | 66 | 40 – 150 |
LDH (U/L) | 255 | 330 | 220 | 283 | 192 | 125 – 220 |
GGT (U/L) | 128 | 392 | 929 | 638 | 73 | 12 – 64 |
PCR (mg/dL) | 10,38 | 23,02 | 5,87 | 0,83 | 0,10 | < 0,5 |
AST - aspartato aminotransferase. ALT - alanina aminotransferase. LDH - desidrogenase lática. GGT - gama-glutamil transferase. PCR – proteína C reativa. ND – não disponível.
Figura I

Imagem de TC abdominal revelando abcesso hepático à admissão.
Figura II

Imagem de TC abdominal representando drenagem de abcesso hepático.
Figura III

Imagem de TC abdominal revelando controlo evolutivo de abcesso hepático, 3 meses após o diagnóstico.
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