INTRODUÇÃO:
A isquemia mesentérica é uma causa pouco frequente de dor abdominal, sendo responsável por menos do que 1 em cada 1000 admissões hospitalares.1 Pode classificar-se em aguda ou crónica, em função do tempo de evolução dos sintomas.
A isquemia mesentérica crónica (IMC) constitui uma condição rara caracterizada por dor abdominal pós-prandial causada por hipoperfusão intestinal, associada a emagrecimento devido a restrição alimentar. A maioria dos doentes apresenta-se com um quadro clínico de sintomas abdominais de agravamento progressivo, com um longo tempo de evolução, tendo já realizado investigação etiológica, sem um diagnóstico definitivo.1,2 Mais de 90% dos casos de IMC relaciona-se com doença aterosclerótica progressiva que afeta predominantemente a origem dos vasos viscerais. A IMC é mais prevalente no género feminino e a partir dos 60 anos de idade. Fatores de risco incluem o tabagismo, a hipertensão arterial, a diabetes mellitus e a hipercolesterolemia.3
A angiografia continua a ser o exame gold standard de avaliação das artérias gastrointestinais. No entanto, outros métodos não invasivos, como a angio-tomografia computorizada (angio-TC) e a angio-ressonância magnética (angio-RM) permitem, com elevada sensibilidade e especificidade, a avaliação da estenose das artérias gastrointestinais e da circulação colateral, apresentando ainda a vantagem de permitir a visualização dos tecidos circundantes.2,3
O principal objetivo terapêutico na IMC consiste na revascularização arterial, por cirurgia de revascularização ou por angioplastia percutânea, com ou sem implantação de stent.2
CASO CLÍNICO:
Doente do género feminino, 76 anos, caucasiana. História de doença arterial coronária submetida previamente a cirurgia de revascularização coronária, estenose carotídea bilateral, hipotiroidismo primário, hipertensão arterial essencial, dislipidemia, fenómeno de Raynaud e epilepsia secundária a calcificação sequelar frontal subcortical esquerda. A doente referia hábitos tabágicos pregressos e negava hábitos etanólicos ou toxifílicos.
Doente referenciada à consulta de Medicina Interna por dor abdominal epigástrica, intensa, que agravava com a ingestão alimentar, anorexia e emagrecimento significativo (cerca de 16 kg) com cerca de 2 anos de evolução. A doente já era seguida há 2 anos em consulta de Gastroenterologia, tendo realizado estudos endoscópicos que não revelaram alterações relevantes. Ao exame objetivo a doente apresentava um índice de massa corporal de 15 Kg/m2, com um peso corporal de 30 Kg e fenómeno de Raynaud em ambas as mãos (Fig. 1). A palpação abdominal era indolor, sem defesa ou sinais de irritação peritoneal.
Figura 1- Fenómeno de Raynaud nas mãos da doente
A doente foi internada no Serviço de Medicina para investigação etiológica.
A avaliação analítica revelou uma anemia normocítica normocrómica (nível de hemoglobina de 10.9 g/dL), velocidade de sedimentação eritrocitária de 40 mm/h e proteína C-reactiva de 1.30 mg/dL (intervalo de referência <0.5 mg/dL), sem outras alterações. A gasometria arterial não apresentava alterações relevantes. A eletroforese das proteínas séricas apresentou um padrão normal. A pesquisa de ovos e parasitas nas fezes foi negativa e a avaliação do grau de digestão dos alimentos não revelou alterações. Foi excluída doença celíaca.
Relativamente ao estudo do fenómeno de Raynaud, o fator reumatoide e os anticorpos antinucleares foram negativos. Realizou videocapilaroscopia que revelou transparência cutânea normal, sem edema peri-capilar e arquitetura capilar conservada, com capilares normoformados paralelos entre si e perpendiculares à margem peri-ungueal, presença de raras ectasias e ausência de megacapilares, ramificações, ou outros fenómenos de neoangiogénese.
Por suspeita de isquemia mesentérica, a doente realizou angio-TC abdomino-pélvica que revelou doença arteriosclerótica severa e difusa e a presença de calcificações e de um trombo mural posterior nos primeiros 4 centímetros da AMS, a condicionar uma redução significativa do seu lúmen (Fig. 2 e 3).
Figuras 2 e 3- Angio-TC abdomino-pélvica (setas vermelhas a evidenciar trombo na AMS, resultando numa redução do seu lúmen)
A doente iniciou anticoagulação e foi internada no Serviço de Cirurgia Vascular, tendo sido submetida a angioplastia da AMS e a tentativa de colocação de stent, esta última sem sucesso. Teve alta clínica sob anticoagulação oral e manteve seguimento em consulta de Medicina. Apesar de melhoria clínica inicial da intensidade da dor abdominal e da tolerância alimentar, a doente manteve algum grau de dor abdominal pós-prandial. Cerca de 15 meses depois foi novamente internada, no Serviço de Medicina, por agravamento da dor e perda de peso (29.6 Kg à admissão). Foi submetida a alimentação parentérica inicial, posteriormente substituída por dieta por via oral com reforço proteico, que tolerou, com aumento de cerca de 10% do peso corporal. Teve alta referenciada à consulta de Medicina, não tendo posteriormente comparecido.
DISCUSSÃO:
O diagnóstico de IMC pode ser difícil, uma vez que os sintomas são pouco específicos e os sinais encontrados no exame físico são limitados. Tal como no caso descrito, dor abdominal e emagrecimento levam na maioria das vezes à exclusão de neoplasias ou doença ulcerosa péptica, nomeadamente através da realização de estudos endoscópicos. No caso apresentado esta investigação não tinha permitido estabelecer um diagnóstico definitivo.
Foram excluídas doenças que pudessem resultar numa síndrome de má-absorção e explicar o emagrecimento significativo apresentado pela doente. Dada a história de dor abdominal pós-prandial, emagrecimento significativo e a evidência de doença aterosclerótica sistémica, a hipótese de isquemia mesentérica foi considerada. A angio-TC abdomino-pélvica confirmou doença aterosclerótica grave, tendo revelado um trombo na AMS. A trombose da AMS está geralmente associada a doença aterosclerótica crónica prévia a condicionar estenose,4 como era o caso da nossa doente. Frequentemente, os doentes com esta condição conseguem tolerar a obstrução de artérias viscerais major devido à natureza lentamente progressiva da aterosclerose, o que permite o desenvolvimento de circulação colateral.
Apesar de rara, a isquemia mesentérica deve ser considerada no diagnóstico diferencial de dor abdominal, uma vez que o seu reconhecimento e tratamento precoces melhoram consideravelmente o prognóstico, prevenindo complicações graves com elevada mortalidade.
Figura I

Fenómeno de Raynaud nas mãos da doente.
Figura II

Angio-TC abdomino-pélvica (setas vermelhas a evidenciar trombo na AMS, resultando numa redução do seu lúmen).
Figura III

Angio-TC abdomino-pélvica (setas vermelhas a evidenciar trombo na AMS, resultando numa redução do seu lúmen).
BIBLIOGRAFIA
1. Clair DG, Beach JM. Mesenteric Ischemia. N Engl J Med 2016; 374:959-68.
2. Ferreira RM, Canedo A. Isquemia Mesentérica Crónica – Um desafio diagnóstico. Galicia Clin 2013; 74 (4):195.
3. Acar T, Çakır V, Acar N, Atahan K, Hacıyanlı M. Chronic visceral ischemia: An unusual cause of abdominal pain. Turk J Surg 2018; 34:158-61.
4. Bala M, Kashuk J, Moore EE, Kluger Y, Biffl W, Gomes CA et al. Acute mesenteric ischemia: guidelines of the World Society of Emergency Surgery. World J Emerg Surg 2017; 12:38.