INTRODUÇÃO
A tuberculose miliar constitui uma forma de tuberculose extrapulmonar que resulta da disseminação hematogénea do Mycobacterium tuberculosis complex, a partir de uma infecção primária ou da reactivação de um foco latente.1
Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2016 foram reportados cerca de 6.3 milhões de novos casos de tuberculose, sendo 15% formas extrapulmonares.2
Nos adultos imunocompetentes, a tuberculose miliar corresponde a 2% dos casos de tuberculose e até 20% das formas extrapulmonares.3 Em Portugal, as formas extrapulmonares mais frequentes são a pleural e a linfática extratorácica.4
Nos últimos 30 anos, tem-se verificado uma mudança epidemiológica na tuberculose miliar. Outrora considerada uma doença das crianças, constata-se actualmente que a tuberculose miliar tem vindo a aumentar nos adultos e idosos em especial nas áreas urbanas. Das principais razões, destaca-se a epidemia VIH/SIDA e a utilização de terapêutica imunossupressora; por outro lado, a utilização precoce da TC tórax e de procedimentos invasivos tem vindo a contribuir para o maior número de diagnósticos.5
A tuberculose miliar ocorre, em regra, no contexto de depressão da imunidade celular associada a estados de imunossupressão, nomeadamente, o alcoolismo, a malnutrição, a diabetes mellitus, a doença renal crónica, a gravidez, o transplante de órgão, as doenças do tecido conjuntivo, entre outros.1,5,6
A apresentação clínica pode ser insidiosa e pouco específica, sendo a febre e os sintomas constitucionais, as manifestações mais comuns.7 A presença de síndrome febril indeterminado deve sempre levantar a suspeita de tuberculose miliar. O padrão radiológico micronodular pode estar ausente na radiografia de tórax de admissão e apenas se revelar semanas mais tarde. A TC de tórax veio permitir um diagnóstico mais precoce ao apresentar maior sensibilidade para estas alterações.7
CASO CLÍNICO
Sexo masculino, 79 anos, admitido no Serviço de Urgência (SU) por febre (39,5ºC), dispneia e tosse, com cerca de 2 semanas de evolução. Negava expectoração ou toracalgia. Referia antecedentes de cardiopatia isquémica e valvular (estenose aórtica grave), doença renal crónica, anemia e trombocitopenia autoimunes, sob corticoterapia desde há 2 anos (prednisolona 30 mg/dia). No que respeita a dados epidemiológicos, negava manipulações dentárias ou procedimentos invasivos recentes, antecedentes de tuberculose pulmonar ou contactos com pessoas com esta doença.
Na observação no SU, apresentava-se febril (39.9ºC), pressão arterial:126/70mmHg, frequência cardíaca:100bpme saturação de O2: 83% em ar ambiente. Apresentava a pele e mucosas hidratadas e pálidas, sem adenomegalias e a cavidade oral sem alterações. Na auscultação cardíaca apresentava sopro sistólico no foco aórtico de grau III/VI e na auscultação pulmonar não se identificaram alterações. O abdómen encontrava-se indolor, sem organomegalias palpáveis. Exame neurológico sumário sem alterações. Analiticamente apresentava hemoglobina: 10,2g/dL (prévia 11.5g/dL), leucócitos: 4.500x10^9/L, plaquetas: 38000 (prévia:50000), creatinina: 1.7mg/dL (prévia 1.2mg/dL), ureia: 62mg/dL, alanina aminotransferase (ALT): 44U/L, aspartato aminotransferase (AST): 34U/L, bilirrubina total: 1.0mg/dL e proteína C reactiva: 17,6mg/dL. Na gasimetria arterial em ar ambiente apresentava pO2: 45mmHg e lactatos: 2mmol/L. A serologia VIH foi negativa. A radiografia de tórax de admissão esboçava reforço intersticial, com discreta hipotransparência no terço inferior direito (Fig. 1). Na presença do quadro febril com sopro cardíaco, realizou hemoculturas e um ecocardiograma transtorácico, que confirmou estenose aórtica grave e excluiu vegetações. Ainda no SU, iniciou antibioterapia com ceftriaxone e claritromicina, por presumível pneumonia. Ao 6º dia de antibioterapia e após 3 dias, ocorreu recrudescência da febre de padrão héctico, manifestado por picos quotidianos de febre (39ºC) intervalados com apirexia, associado a calafrios, hipersudorese nocturna e tosse escassamente produtiva. O resultado das hemoculturas (HC) e do exame bacteriológico das secreções brônquicas, foi negativo.
Em face do agravamento clínico, suspendeu antibioterapia, realizou nova radiografia de tórax (Fig. 2) e TC de tórax (Fig. 3) que revelaram padrão micronodular bilateral.
Perante os aspectos imagiológicos evocadores de tuberculose miliar, foi observado pela oftalmologia que excluiu a presença de tubérculos coroideus. Foi realizado o teste IGRA (interferon gamma release assay), que foi negativo.
Colheu novas hemoculturas incluindo em BACTEC, realizou broncofibroscopia óptica (BFO) com colheita de lavado broncoalveolar e secreções brônquicas. Fez mielograma com mielocultura e biópsia da MO.
Na segunda semana de internamento, o doente apresentou rápido agravamento clínico com evolução para falência multiorgânica (renal, cardíaca e pulmonar). A radiografia de tórax apresentava opacidades bilaterais, evocando ARDS versus sobrecarga hídrica. Foi iniciada terapêutica antibiótica de largo espectro e adicionalmente, em face da gravidade clínica e da suspeita diagnóstica de tuberculose miliar, foi iniciado esquema de antibacilares. Requereu transferência para a unidade de cuidados intensivos (UCI), onde esteve internado durante 2 dias com necessidade de técnica dialítica e suporte vasopressor. Não necessitou de suporte ventilatório. No regresso ao Serviço de Medicina, o doente mantinha febre alta. Obteve-se, entretanto, PCR positiva para M. tuberculosis complex nas secreções brônquicas da BFO e identificados BAAR no lavado broncoalveolar. A hemocultura em BACTEC e posteriormente em meio de Lowenstein, identificou M. tuberculosis complex, sensível aos antibacilares de primeira linha. Na medula óssea, foram identificados granulomas e BAAR (Fig. 4 e 5). O doente teve alta ao 38º dia de internamento, com evolução favorável.
DISCUSSÃO
A tuberculose miliar constitui um desafio de diagnóstico por se apresentar muitas vezes de forma inespecífica e com um padrão radiológico no início, frequentemente indistinto. As dificuldades no diagnóstico são acrescidas nos idosos e imunossuprimidos por apresentarem manifestações clínicas e radiológicas atípicas e, no caso dos idosos, pela presença de outras comorbilidades que podem complicar ou mimetizar o quadro de apresentação.8
O nosso doente apresentou-se com febre e dispneia de início subagudo, destacando-se os antecedentes pessoais de estenose aórtica grave e de corticoterapia prolongada. É reconhecido que a imunossupressão, decorrente do uso de corticoterapia, aumenta o risco de infecções oportunistas; concretamente, doentes sob corticoterapia prolongada, apresentam duas vezes mais probabilidade de desenvolver tuberculose.9O resultado do teste IGRA do nosso doente, deve ser enquadrado neste contexto, dado que em doentes imunocomprometidos, a sensibilidade deste teste, no diagnóstico de tuberculose latente pode estar comprometida.9
Perante o quadro febril e a presença de um sopro cardíaco grau III/VI, considerou-se endocardite bacteriana, a qual se tornou menos provável por hemoculturas negativas e ecocardiograma transtorácico sem vegetações.
No internamento objetivou-se febre de padrão héctico, que se caracteriza por picos de temperatura acima dos 38ºC, retornando posteriormente à apirexia, pelo menos uma vez por dia, durante vários dias, associado a hipersudorese profusa.10 Este padrão, também denominado de febre intermitente ou séptica, está frequentemente associado a bacteriemias, no entanto, pode constituir a forma de apresentação da tuberculose miliar.11,12 O padrão da febre e os achados imagiológicos, tornavam a tuberculose miliar a hipótese de diagnóstico mais plausível.
O reforço bronco-vascular na radiografia de tórax de entrada do nosso doente, era inicialmente inespecífico, contudo evoluiu ao fim de 3 semanas, para um padrão micronodular, confirmado na TC de tórax. O padrão miliar pode estar ausente na radiografia de admissão em até 50% dos doentes, podendo vir a manifestar-se várias semanas após o decurso da doença.5,13 Em cerca de 10-30% dos doentes, a radiografia inicial apresenta consolidação com broncograma aéreo, padrão mosqueado ou nódulos assimetricamente dispersos.5 É neste contexto que a TC de tórax se tornou uma ferramenta indispensável, na medida que sendo mais sensível para o padrão miliar, permite uma suspeição diagnóstica precoce, mesmo quando os achados na radiografia de tórax são inespecíficos.
A suspeita de tuberculose miliar deve levar à realização sistemática de fundoscopia para pesquisa de tubérculos coroideus, que sendo patognomónicos da doença, autorizam o início da terapêutica. Estes podem ser identificados em até 20% dos doentes, com o uso de colírio midriático, e em cerca de 50% nas autópsias.5,8,14 No nosso doente, não foram identificados.
Na segunda semana de internamento, o doente apresentou manifesto agravamento clínico, com evolução para falência multiorgânica. Radiologicamente o quadro mimetizava ARDS (acute respiratory distress syndrome), o qual pode ser uma complicação da tuberculose miliar como parte de um quadro de falência multiorgânica.3 No nosso doente com estenose aórtica grave, a avaliação retrospectiva admitiu tratar-se de padrão de sobrecarga de volume, corroborado pela melhoria franca com diálise em UCI.
Perante o agravamento clínico do doente e os aspectos imagiológicos de tuberculose miliar, considerou-se imperativo iniciar antibacilares sob o risco de deterioração irreversível. A prerrogativa da utilização empírica de antibacilares na prática clínica, tornou-se actualmente excepcional, devendo ser individualizada e guiada por critérios de suspeição clínicos e epidemiológicos.1
O diagnóstico de tuberculose miliar, no nosso caso, ficou definitivamente estabelecido com o isolamento de M. tuberculosis complex na cultura em BACTEC e Lowenstein. Teve adicionalmente PCR positiva e BAAR nas secreções brônquicas. O agravamento da anemia e trombocitopenia prévias no contexto de padrão miliar, sugeria o atingimento medular pela tuberculose, como se demonstrou pela presença de granulomas e BAAR na biópsia de MO, sendo menos provável resultar de coagulação intravascular disseminada.
O doente apresentou evolução favorável sob antibacilares de primeira linha. Foi mantida corticoterapia não só pelo antecedente hematológico auto-imune mas também pelo seu potencial benefício reconhecido na tuberculose miliar.11
O nosso caso ilustra a enorme importância de manter um elevado grau de suspeição clínica para a tuberculose miliar, com particular atenção às populações de risco, nas quais podem aparecer manifestações clínicas e radiológicas atípicas, sendo por isso essencial promover a realização precoce de TC tórax e procedimentos invasivos adequados.
Figura I

Radiografia de tórax na admissão: reforço intersticial, com discreta hipotransparência no terço inferior direito
Figura II

Radiografia de tórax na segunda semana de internamento: padrão micronodular
Figura III

TC de tórax na segunda semana de internamento: padrão micronodular bilateral com adenopatias mediastínicas e condensação
Figura IV

Biópsia osteomedular: imagem da esquerda - Ziehl-Neelsen 10x. Seta vermelha: granuloma epitelióide com célula gigante multinucleada, do tipo de Langhans. Imagem da direita - hematoxilina e eosina 4x. Seta azul: granuloma epitelióide com células gigantes multinucleadas do tipo de Langhans.
Figura V

Biópsia osteomedular: Ziehl-Neelsen 40x. Seta vermelha: BAAR dentro de um histiócito epitelióide
BIBLIOGRAFIA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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