Introdução
O hidrotórax hepático caracteriza-se por um derrame pleural com características de transudado, habitualmente volumoso (>500ml), num doente com cirrose hepática, sem patologia cardíaca, pulmonar ou pleural que o justifique.1 É uma entidade rara, quando surge na sua forma isolada, isto é, sem ascite, encontrando-se poucos casos descritos na literatura.2
Caso Clínico
Doente do género masculino, 52 anos de idade, leucodermoide, pedreiro de profissão, com antecedentes pessoais de alcoolismo crónico (cerca de 80g/dia durante 9 anos) e doença hepática crónica etanólica Child-Pugh A com 6 pontos, MELD-Na 16 pontos, com hipertensão portal (documentada por ecografia, sem elastografia) e úlcera gástrica, fibrilhação auricular paroxística (não hipocoagulado) e hiperuricemia. Sem medicação habitual. Internado em contexto de hemorragia digestiva alta, com estudo endoscópico a documentar varizes esofágicas pequenas, sem ponto de rotura evidente, úlcera gástrica de fundo branco, sem sinais de hemorragia recente e bulbo duodenal sem lesões. No quinto dia de internamento, apresentou febre e dispneia de agravamento progressivo. Ao exame objetivo salientava-se febre (38,4ºC), auscultação pulmonar com murmúrio vesicular diminuído na metade inferior do hemitórax direito, com macicez à percussão, abdómen mole e depressível, sem dor ou defesa, sem organomegálias, sem ascite e sem edemas periféricos. A avaliação analítica revelou aumento dos parâmetros inflamatórios de fase aguda, leucocitose (18,74x10^3/µL) com neutrofilia absoluta de 15600 neutrófilos/uL,PCR 3,87mg/dl. Realizou gasometria em ar ambiente com alcalose respiratória e hipoxemia e radiografia de tórax com evidência de hipotransparência no terço inferior do hemitórax direito, compatível com derrame pleural (Fig.1), sem exame imagiológico anterior para estudo comparativo. Pedido NT-pro BNP 755pg/mL (dentro do intervalo da normalidade). Assumida infeção respiratória nosocomial, tendo iniciado empiricamente Piperacilina/Tazobactam. Apresentou melhoria dos parâmetros inflamatórios, com manutenção do quadro de dispneia e do derrame pleural direito. Do estudo analítico realizado destacavam-se: VS 54mm; ácido úrico 10,5mg/dl; ferritina 35,9ng/ml; eletroforese de proteínas: fusão beta-gama; função tiroideia normal; serologias VIH1 e 2 /VHB/VHC: negativas. IGRA negativo; alfa-fetoproteína 2,84; RPR (Rapid Plasma Reagin) negativo. Atendendo a uma ausência de resolução do derrame pleural e a um agravamento progressivo do quadro de dispneia, realizada toracocentese diagnóstica e evacuadora, com saída de líquido pleural amarelo límpido, com 165 células por mm3, com contagem diferencial com predomínio de mononucleares, com critérios de transudado, gradiente de albumina entre o soro e o líquido pleural1,4g/dl (pH 7,7; proteínas 1,20g/dl, albumina 0,50g/dl, LDH 58,2U/l, glicose 122,0mg/dl), ADA normal, bacteriologia negativa, sem BAAR. A citologia do líquido pleural foi negativa em 3 colheitas diferentes para células neoplásicas. Foi colocada drenagem pleural, para alívio sintomático, com drenagens de cerca de 3 litros/dia, durante uma semana, não tendo sido possível a retirada do dreno por agravamento da dispneia. Realizou ecocardiograma transtorácico com evidência de função conservada, cavidades não dilatadas e válvulas sem alterações estruturais significativas. Posteriormente, foi realizada tomografia computorizada do tórax (Fig. 2), onde se observou derrame pleural direito, sem alterações do parênquima pulmonar, passível de ser avaliado. Efetuou ecografia-doppler abdominal superior, com evidência de hepatopatia crónica e sinais de hipertensão portal, com estase mesentérica e colateralização gástrica significativa, sem ascite, com baço de morfologia e dimensões normais. Atendendo ao diagnóstico de doença hepática crónica com sinais de hipertensão portal, na ausência de patologia cardiopulmonar, assumiu-se como diagnóstico hidrotórax hepático isolado (ausência de ascite). Foi otimizada terapêutica com diuréticos e restrição salina, sem evidência de melhoria significativa, com manutenção de drenagem pleural de cerca de 2 litros/dia, tendo sido infrutífera a retirada do dreno. Atendendo à ausência de melhoria clínica, foi submetido posteriormente a videotoracoscopia médica, não se observando alterações macroscópicas da pleura, pulmão e diafragma. Realizou pleurodese médica com 8g de talco, que foi eficaz (Fig. 3). Após 6 meses, mantém-se assintomático, sem novos episódios de dispneia ou descompensação da doença hepática crónica, mantendo pequena lâmina de derrame pleural residual.
Discussão
O hidrotórax hepático tem uma prevalência de 4-6% nos doentes com cirrose hepática e ascite.2 Em 7% destes doentes, este pode surgir de forma isolada, isto é, como único sinal de descompensação da doença hepática crónica, como foi o caso do doente aqui descrito.1 A sua fisiopatologia ainda não se encontra totalmente esclarecida, no entanto a explicação mais aceite assenta na produção de líquido ascítico, associada a hipertensão portal, que por defeitos diafragmáticos passa para a cavidade pleural.3 Foi Lieberman quem pela primeira vez descreveu a existência de um fluxo valvular unidirecional, que sob efeito da pressão negativa gerada pela inspiração, faz com que o líquido ascítico passe da cavidade peritoneal para o espaço pleural.1 Huang et al classificaram estes defeitos diafragmáticos em quatro tipos: o tipo 1, sem defeito evidente; o tipo 2, com presença de bolhas diafragmáticas; o tipo 3, com presença de fenestrações no diafragma; e o tipo 4 com presença de múltiplas lacunas no diafragma.4 A existência de um derrame pleural isolado, na ausência de ascite pode ser explicada pelo facto de a capacidade de reabsorção peritoneal exceder largamente a pleural.3 No que se refere à apresentação clínica, o derrame pleural, tal como no caso apresentado, é habitualmente direito (85% dos casos), podendo no entanto ser esquerdo (13% casos) ou bilateral (2% dos casos).5 Os doentes com ascite podem tolerar cerca de 8 litros de líquido na cavidade peritoneal, sem sintomas, no entanto 1 a 2 litros na cavidade pleural são suficientes para gerar sintomas como dispneia, tosse, hipoxemia e, em casos mais graves, quadros de falência respiratória aguda.5-6 O diagnóstico é realizado tendo por base a existência de doença hepática crónica com hipertensão portal e implica a exclusão de patologia pleuropulmonar e cardíaca, tal como foi descrito no estudo acima. A ecografia abdominal e a radiografia de tórax permitem uma avaliação inicial, sendo complementadas pela tomografia computorizada na avaliação pleuroparenquimatosa.1 A elastografia hepática transitória pode também ser útil na documentação de fibrose hepática e cirrose. A avaliação do líquido pleural, com características de transudado, e o seu estudo citológico e microbiológico negativo são importantes fatores diagnósticos.1 O exame que permitiria definir, de forma absoluta, o diagnóstico seria a injeção intraperitoneal de um radioisótopo, como o99 TC (tecnécio-99) e observar o fluxo unidirecional de ascite para a cavidade pleural através dos defeitos diafragmáticos.7 Este exame não está comumente disponível, não tendo sido realizado.O tratamento definitivo do hidrotórax hepático refratário à terapêutica médica é o transplante hepático. Outras técnicas como o shunt intra-hepático porto-sistémico transjugular e a pleurodese podem ser opções terapêuticas.7 A opção de realizar pleurodese com talco neste doente mostrou-se eficaz, mantendo-se o doente em abstinência alcoólica desde há cerca de 6 meses, estável, pelo que ainda não foi proposto para transplantação hepática. No que se refere à pleurodese, está descrita uma taxa de sucesso a longo prazo entre os 22 e os 89%.8
Conclusão
O hidrotórax hepático sem ascite é uma entidade nosológica rara, sendo a sua apresentação clínica muito inespecífica. É necessária uma marcha diagnóstica sistemática na exclusão de outras causas de derrame pleural. O seu tratamento é muito dependente da doença hepática crónica subjacente, sendo o transplante hepático o único tratamento definitivo. A presença de um derrame pleural, num doente com doença hepática crónica, mesma na ausência de ascite, deve suscitar sempre a hipótese diagnóstica de hidrotórax hepático isolado.
Figura I

Radiografia de tórax ântero-posterior inicial: evidência de volumoso derrame pleural direito.
Figura II

Tomografia computorizada de tórax inicial: colapso passivo pulmonar direito em contexto de volumoso derrame pleural direito.
Figura III

Radiografia de tórax ântero-posterior após pleurodese com evidência de resolução do derrame pleural direito.
BIBLIOGRAFIA
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