Introdução
Os anticoagulantes orais estão logicamente associados a risco hemorrágico major (hemorragias intracranianas ou outros locais do SNC, intraoculares, pericárdicas, intra-articulares, intramusculares com síndrome compartimental ou retroperitoneais) e minor. Os AOD são uma alternativa aos antagonistas da vitamina K na prevenção do acidente vascular cerebral (AVC) e outros eventos tromboembólicos em doentes com FA.
A prevalência e incidência da FA aumentam à medida que a função renal vai diminuindo. Doentes com doença renal crónica (DRC) e FA têm morbilidade e mortalidade aumentadas pelo risco de eventos tromboembólicos e hemorrágicos. Segundo a literatura, os AOD estão associados a menor risco de eventos hemorrágicos em doentes com DRC comparativamente à varfarina.1
Os autores relatam o caso de um homem de 84 anos com FA sob apixabano que apresentou paraplegia das extremidades inferiores sem relato de trauma, tendo sido objetivado na TC um hematoma espinhal subdural.
Caso
Homem de 84 anos, leucodérmico, previamente autónomo nas atividades de vida diária, com antecedentes de AVC isquémico, cardiopatia isquémica, dislipidémia, FA permanente sob apixabano e DRC estádio G3bA1, foi trazido ao Serviço de Urgência do nosso hospital por lombalgia aguda com irradiação para os membros inferiores após massagem da região lombar, seguida de paraplegia. Após a massagem feita pela esposa na região lombar, o doente sentiu uma dor aguda excruciante nessa região, a que se seguiu imediatamente paresia bilateral dos membros inferiores, progredindo para paraplegia em poucas horas.
À observação apresentava Glasgow Coma Scale de 15, paraplegia flácida dos membros inferiores com força muscular grau 0/0, sensibilidade tátil e dolorosa ausentes inclusivé na zona perineal, Babinski bilateral e reflexos osteotendinosos rotulianos abolidos. Analiticamente apresentava Hemoglobina 9,6 g/dL, VGM 94.2, plaquetas 231000 e INR 1.22.
Realizou TC da coluna dorsal (Fig. 1) que mostrou: manga´ densa endocanalar dorsal, sobretudo inferior, que indicia presença de hematoma endocanalar, com possível deformação da medula. O doente foi transferido para outro hospital para observação por Neurocirurgia às 9h de evolução, onde foi submetido a laminectomia total de D10-D11 e parcial D9 com drenagem do hematoma. Após esta intervenção, realizou TC coluna dorsal (Fig. 2 e 3) que revelou: laminectomia e flavectomia bilaterais D10 e D11, com componente isodenso e pequenos aerocelos ao nível da zona do defeito ósseo de laminectomia, condicionando redução da permeabilidade do espaço subaracnoideu posterior e moldagem da vertente medular posterior. Oito dias após a intervenção, foi transferido para o nosso hospital para início de reabilitação motora.
No decorrer do internamento e secundariamente à imobilização, o doente desenvolveu úlceras de pressão nas regiões sagrada e trocantérica direita. Foi tentada desalgaliação, mas o doente manteve sinais e sintomas de retenção urinária, carecendo de algaliação crónica. Apresentou como intercorrências, um episódio de infeção do trato urinário com urocultura com isolamento de Pseudomonas aeruginosa e infeção das escaras com colheita do exsudado das úlceras de pressão positivas para Escherichia coli produtora de beta-lactamases de espetro estendido, assim como o isolamento desta mesma bactéria nas hemoculturas, para as quais recebeu tratamento adequado com boa resposta clínica e analítica. Foi ainda pedido o apoio da Psiquiatria por o doente apresentar depressão reativa à situação clínica vivenciada.
Teve alta da enfermaria para uma Unidade de Cuidados Continuados Integrados após 52 dias de internamento, antiagregado, mantendo paraplegia dos membros inferiores e ausência de sensibilidade (nível sensitivo D12 e nível motor L1), úlceras de pressão grau III no trocânter direito e região sagrada, e obstipação e retenção urinária de causa neurológica. Foi orientado para as consultas de Neurocirurgia, Imunohemoterapia e Psiquiatria. O doente veio a falecer 2 meses após a alta.
Discussão
O hematoma espinhal consoante a sua localização pode ser classificado em epidural, intradural (subdural), subaracnoideu ou intramedular. Os mais frequentes são os hematomas espinhais epidurais. O hematoma subdural espinhal define-se por uma coleção de sangue no espaço subdural que comprime e lesiona a medula espinhal, sendo uma condição rara causada por trauma, doenças sistémicas que afetam a coagulação ou iatrogenia.2
Na literatura, foram reportados escassos casos de hematoma espinhal subdural espontâneo (HSEE) associados ao uso de AOD, nomeadamente, rivaroxabano, apixabano e dabigatrano. Relativamente a doentes anticoagulados com rivaroxabano, foram descritos os seguintes casos: homem de 77 anos que se apresentou com dor interescapular súbita seguida de paraplegia, diagnosticado com hematoma subdural entre D6-D8;3 homem com 69 anos com dor súbita grave na região dorso-lombar seguida, imediatamente, por paresia bilateral dos membros inferiores que evoluiu para paraplegia com disfunção vesical e intestinal, apresentando hematoma subdural de D3 até ao cone medular;4 homem de 58 anos com dor interescapular súbita e perda de força nas extremidades inferiores evoluindo em horas para paraplegia, diagnosticado com hematoma intradural de C7-D2.5 Na literatura há relato de um caso de uma mulher de 75 anos anticoagulada com apixabano com início súbito de deficit motor crural bilateral de predomínio distal confirmando-se, após exame imagiológico, extenso hematoma subdural de D1-D7.6 Há ainda um caso descrito de hemorragia espinhal subdural após trauma minor associado ao dabigatrano, cujo quadro clínico se apresentou como uma mielopatia Brown-Séquard-like.7 Aparentemente, este é o segundo caso publicado de hematoma espinhal subdural não traumático num doente com FA anticoagulado com apixabano.
Tal como aconteceu com o nosso doente, na maioria dos casos, o início da sintomatologia é aguda e dramática, com dor tipo “facada” na região posterior do tronco ao nível da hemorragia, com irradiação para os membros superiores, inferiores e com progressivo aparecimento de distúrbio neurológico: a nível motor, sensitivo, autonómico. O intervalo entre o início dos sintomas e o aparecimento de deficit neurológico pode ir de minutos a semanas.8
No caso dos hematomas subdurais espontâneos de causa não traumática, acredita-se que a rutura de artérias e veias radiculares seja a responsável pela hemorragia, mas o mecanismo ainda não está nitidamente esclarecido.9
O exame complementar de diagnóstico preferível é a RMN (ressonância magnética nuclear) que oferece maior sensibilidade na definição do tipo de hemorragia e na abordagem de toda a extensão crânio-caudal do hematoma, em oposição à TC.10 As regiões mais atingidas são a transição cervico-dorsal e dorso-lombar, sendo esta última mais frequentemente afetada nos adultos. Neste caso, o doente apresenta alterações imagiológicas que aparentam ser já crónicas, embora não haja referência a qualquer patologia prévia da coluna dorsal e lombar documentada que pudesse amplificar/precipitar o efeito nocivo de uma lesão expansiva como no caso de uma hemorragia. O hospital da área de residência e onde o doente foi observado pela primeira vez, não dispondo de urgência de 24h de Neurocirurgia, nem de aparelho de RMN, decidiu pela transferência do doente para o hospital de referência na área da Neurocirurgia, tendo o corpo clínico deste hospital entendido repetir TC coluna dorsal com resultado sobreponível ao da TC realizada no hospital da área de residência. Após a intervenção cirúrgica, a equipa médica decidiu pela repetição de TC coluna dorsal, e, mais tarde, pela transferência para o hospital da área de residência para início de reabilitação motora. Após avaliação pela Neurologia e Neurocirurgia pós procedimento, e tendo em conta as alterações neurológicas irreversíveis, assim como a já resolução do hematoma via intervenção cirúrgica, interpretou-se como fútil uma nova transferência do doente para um hospital munido de aparelho de RMN para realização deste exame.
A primeira linha de tratamento normalmente é a intervenção cirúrgica emergente. Se quadro neurológico minor, com regressão progressiva dos deficits neurológicos ou alto risco cirúrgico, é aceitável optar-se por tratamento conservador.
Esta condição apresenta uma taxa de mortalidade de 1.3% e de morbilidade de 28% com lesões neurológicas permanentes.11 Os principais preditores de pior prognóstico são o status neurológico à admissão e a existência de coagulopatias.11 Já a extensão do hematoma, cirurgia e presença de hemorragia subaracnoideia não estão associados a pior outcome.11
A varfarina é um antagonista da vitamina K com eficácia terapêutica comprovada, mas com muitas limitações inerentes. Como alternativa para a prevenção e tratamento de eventos tromboembólicos em doentes com FA não valvular, surgiram os AOD como o dabigatrano, apixabano, rivaroxabano e edoxabano. Segundo os resultados obtidos através de ensaios clínicos constata-se que o dabigatrano e o rivaroxabano, respetivamente, têm um perfil hemorrágico semelhante ao da varfarina.12,13 No ensaio clínico ARISTOTLE,14 a eficácia e segurança do apixabano comparativamente à varfarina é similar em doentes com declínio da função renal. Estes três ensaios mostram ainda que com estes AOD há uma diminuição do risco de hemorragia intracraniana, mas um aumento da hemorragia gastro-intestinal.
Doentes com risco alto de recorrência do episódio poderão ser medicados apenas com um agente antiagregante plaquetar. Caso se decida por reiniciar a anticoagulação oral, estudos indicam que tal pode ser feito de forma segura entre 7-8 semanas após hemorragia intracerebral e um pouco mais tarde se hematoma subdural. Porém, a decisão de reiniciar a anticoagulação após ocorrência de hemorragia major é difícil e exige que se equacione o risco tromboembólico e hemorrágico do doente.15
O caso clínico que os autores reportam é relevante, na medida em que reforça a importância dos clínicos estarem alerta e considerarem a possibilidade de ocorrência de hemorragia do SNC em doentes que apresentem sintomas neurológicos agudos medicados com AOD.
Conclusão
O hematoma espinhal subdural espontâneo é uma emergência neurológica que pode surgir em doentes com FA não valvular anticoagulados com apixabano. A celeridade na atuação permite a obtenção de um prognóstico mais favorável. As sequelas, se irreversíveis, poderão ser devastadoras tanto para o doente como para a família.
O desenvolvimento de hematoma espinhal não traumático como consequência da anticoagulação é uma complicação rara e existem poucos casos descritos secundários a tratamento com AOD. A reintrodução de AOD após hematomas epidurais ou subdurais de causa não traumática é controversa.
É deveras importante, um nível de alerta cada vez maior por parte dos clínicos para este diagnóstico, que com a crescente utilização dos AOD e o aumento da esperança média de vida, o número absoluto de eventos hemorrágicos com esta classe farmacológica irá, visivelmente, aumentar.
Figura I

“Manga´ densa endocanalar dorsal, sobretudo inferior, sugestiva de presença de hematoma endocanalar, com possível deformação da medula espinhal.
Figura II

Laminectomia e flavectomia bilaterais D10 e D11 condicionando redução da permeabilidade do espaço subaracnoideu posterior e moldagem da vertente medular posterior.
Figura III

Laminectomia e flavectomia bilaterais D10 e D11 condicionando redução da permeabilidade do espaço subaracnoideu posterior e moldagem da vertente medular posterior.
BIBLIOGRAFIA
1. Caldeira, D., Rodrigues, F.B., Barra, M., Santos, A.T., de Abreu, D., Gonçalves, N., … Costa, J. Non-vitamin K antagonista oral anticoagulants and major bleeding-related fatality in patients with atrial fibrillation and venous thromboembolism: A systematic review and meta-analysis. Heart. (2015); 101(15):1204-11. doi: 10.1136/heartjnl-2015-307489.
2. Domenicucci, M., Ramieri, A., Paolini, S., & Russo, N. Clinical article spinal subarachnoid hematomas: Our experience and literature review. Acta Neurochirurgica. (2005); Volume 147, Issue 7, pp 741–750. doi.org/10.1007/s00701-004-0458-2.
3. Dargazanli, C., Lonjon, N., & Gras-Combe, G. Nontraumatic spinal subdural hematoma complicating direct factor Xa inhibitor treatment (rivaroxaban): A challenging management. European Spine Journal. (2015); doi: 10.1007/s00586-015-4160-2.
4. Castillo, J. M., Afanador H.F., Manjarrez, E., & Morales, X.A. Non-traumatic spontaneous spinal subdural hematoma in a patient with non-valvular atrial fibrillation during treatment with rivaroxaban. American Journal of Case Reports. (2015); Jun 19;16:377-81. doi: 10.12659/AJCR.893320
5. Zaarour, M., Hassan, S., Thumallapally, N., & Dai, Q. Rivaroxaban-induced nontraumatic spinal subdural hematoma: An uncommon yet life-threatening complication.
6. Colell, A., Arboix, A., Caiazzo, F., & Griv, E. Iatrogenic spinal subdural hematoma due to apixaban: A case report and review of the literature. Case Reports in Hematology. (2018); Volume 2018, Article ID 4507638, 5 pages. doi.org/10.1155/2018/4507638
7. Wolfe, A.R., Faroqui, R.M., Visvikis, G.A., Mantello, M.T., & Perel, A.B. Spinal subarachnoid and subdural hematoma presenting as a Brown-Sequard-like myelopathy following minor trauma in a patient on dabigatran etexilate. Radiology Case Reports. (2017); 22;12(2):257-260. doi: 10.1016/j.radcr.2017.02.004.
8. Kreppel, D., Antoniadis, G., & Seeling, W. Spinal hematoma: A literature survey with meta-analysis of 613 patients. Neurosurgical Review. (2003); 26:1-49. doi: 10.1007/s10143-002-0224-y.
9. Masdeu, J.C., Breuer, A.C., & Schoene, W.C. Spinal subarachnoid hematomas: Clue to a source of bleeding in traumatic lumbar puncture. Neurology. (1979); 29: 872–876.
10. Kobayashi, K., Imagama, S., Ando, K., & Nishida, Y. Acute non-traumatic idiopathic spinal subdural hematoma: Radiographic findings and surgical results with a literature review. European Spine Journal. (2017); 26(11):2739-2743. doi: 10.1007/s00586-017-5013-y.
11. Pereira, B.J., de Almeida, A.N., Muio, V.M., & de Oliveira, J.G. Predictors of outcome in nontraumatic spontaneous acute spinal subdural hematoma: Case report and literature review. World neurosurgery. (2016); 89:574-577.e7. doi: 10.1016/j.wneu.2015.11.010.
12. Connolly, S.J., Ezekowitz, M.D., Yusuf, S., Eikelboom, J., Oldgren, J., Parekh, A., et al. Dabigatran versus warfarin in patients with atrial fibrillation. New England Journal of Medicine. (2009); 361(12):1139-51. doi: 10.1056/NEJMoa0905561.
13. Patel, M.R., Mahaffey, K.W., Garg, J., Pan, G., Singer, D.E., Hacke, W., et al. Rivaroxaban versus warfarin in nonvalvular atrial fifbrillation. New England Journal of Medicine. (2011); 365:883-891. doi: 10.1056/NEJMoa1009638.
14. Granger, C.B., Alexander, J.H., McMurray, J.J., Lopes, R.D., Hylek, E.M., Hanna, M., et al. Apixaban versus Warfarin in Patients with Atrial Fibrillation. New England Journal of Medicine. (2011); 365:981-992. doi: 10.1056/NEJMoa1107039.
15. Pennlert, J., Overholser, R., Asplund, K., & Carlberg, B. Optimal timing of anticoagulant treatment following intracerebral hemorrhage in patients with atrial fibrillation. Stroke. (2017); 48(2):314–320. doi: 10.1161/STROKEAHA.116.014643.