INTRODUÇÃO:
A trombocitopenia imune, que representa a patologia hematológica auto-imune mais frequente,1 caracteriza-se pela presença de anticorpos anti-plaquetares, os quais se ligam a plaquetas e megacariócitos, levando à sua destruição pelo sistema reticuloendotelial.2 Muitas vezes, esta condição é assintomática e apenas detectada em análises de rotina. Noutras situações, apresenta-se por pequenas hemorragias mucocutâneas, porém, em casos raros, podem ser observadas hemorragias fatais (intra-cranianas ou de outros órgãos internos).3
É sabido que a trombocitopenia imune pode decorrer no contexto de outras doenças, nomeadamente linfoproliferativas, infecciosas e imunológicas.2,3
A relação causal entre esta patologia e a infecção por Helicobacter pylori (HP) foi proposta, pela primeira vez, por um grupo italiano, em 1998, que reportou o aumento significativo da contagem plaquetar em oito dos 11 doentes submetidos à erradicação desta bactéria.1,4-6 O HP é uma bactéria gram-negativa que coloniza a mucosa gástrica, estando implicada na patogénese das úlceras gástricas e duodenais e representando um factor de risco para o linfoma e adenocarcinoma gástricos.4 É, também, reconhecido o seu papel no desenvolvimento de patologias extra-gástricas, além da trombocitopenia imune.2-4,7 Vários estudos demonstraram uma evolução positiva da contagem plaquetar após a sua erradicação.1-3,8
Deste modo, na presença de um diagnóstico sugestivo de trombocitopenia imune, é aconselhável a realização da pesquisa da infecção por esta bactéria e, caso esta seja positiva, a sua erradicação.2,3
CASO CLÍNICO:
Apresentamos o caso de uma doente de raça caucasiana, de 76 anos, que apresentava, como co-morbilidades, hipertensão arterial, dislipidemia e trombocitopenia crónica com 3 anos de evolução. Encontrava-se medicada, em ambulatório, com prednisolona (40mg), perindopril/indapamida (5/1,25mg), sinvastatina (20mg), omeprazol (10mg) e alprazolam (0,25mg).
A causa da trombocitopenia foi amplamente estudada, em consulta externa de Imuno-hemoterapia e Oncologia, com estudo analítico exaustivo e exames de imagem. Apesar do esforço diagnóstico, não foi determinada a etiologia desta condição. Foram realizados, inclusivamente, mielograma e biópsia óssea, sendo que este último exame foi sugestivo de síndrome mielodisplásico. No entanto, dado o atingimento isolado da linhagem plaquetar e o facto de não haver outros dados a favor deste diagnóstico, optou-se, em reunião multidisciplinar, pela manutenção de vigilância clínica e laboratorial.
Pela suspeita de se tratar de uma trombocitopenia auto-imune, a doente, durante o ano precedente, esteve sob corticoterapia sistémica. Nesse mesmo período, realizou, igualmente, ciclos de imunoglobulina poliespecífica, para a qual apresentou uma resposta parcial apenas nas primeiras administrações.
Mesmo encontrando-se medicada com prednisolona, a doente apresentou agravamento da trombocitopenia (com valores plaquetares <10 000 por microlitro) e equimoses fáceis de novo, pelo que foi internada no Serviço de Medicina Interna, para repetição do estudo etiológico e orientação terapêutica.
No exame físico, apenas eram evidentes as equimoses, com predomínio nos membros superiores. Não se verificaram outras alterações, nomeadamente adenomegalias ou organomegalias palpáveis.
O hemograma completo demonstrou trombocitopenia isolada, não havendo evidência de outra citopenia. No esfregaço de sangue periférico foi confirmada a presença de trombocitopenia grave e anisocitose plaquetária. Não foram objectivados sinais indirectos de hemólise e o teste de Coombs foi negativo. O estudo auto-imune apresentou-se normal, assim as serologias infecciosas e a função tiroideia. Na imunoelectroforese de proteínas séricas, não foi detectado nenhum pico monoclonal. Não foram verificados défices vitamínicos, nomeadamente ácido fólico e vitamina B12. A ecografia abdominal não mostrou esplenomegalia ou outra alteração de relevo.
Uma vez constatada a ausência de investigação prévia de HP, procedeu-se à pesquisa do antigénio desta bactéria nas fezes e, tendo o resultado sido positivo, iniciou-se terapêutica tripla de erradicação.
Cerca de 15 dias após o início deste tratamento, e numa altura em que se ponderava a repetição da biópsia óssea, verificou-se um aumento progressivo e posterior normalização sustentada do valor das plaquetas. Na consulta de reavaliação aos oito meses, observou-se manutenção da normal contagem plaquetar, após 6 meses de suspensão da corticoterapia.
DISCUSSÃO:
É sabido que, num subgrupo de doentes com trombocitopenia imune e infectados com HP, o número de plaquetas recupera após a erradicação desta bactéria.9 De facto, desde há muito tempo que é conhecida a associação entre a trombocitopenia imune e infecções específicas.7,10 Alguns dos agentes infecciosos mais estudados são, além do HP, o vírus da hepatite C e o vírus da imunodeficiência humana.7
A patogénese da trombocitopenia imune em associação com a infecção por HP é provavelmente multifactorial e, apesar dos estudos realizados, ainda permanece pouco elucidada.2,9
O mimetismo molecular representa um dos mecanismos sugeridos através do qual as infecções determinam eventos auto-imunes.2,3,5,7,8,10 Nestes casos, as proteínas do agente infeccioso (como o gene A associado a citotoxina – CagA, no caso do HP) desencadeiam uma resposta imune e observa-se uma reacção cruzada com os antigenes plaquetares.3,6-8,10 Quando os antigenes microbianos são apresentados às células B, estas transformam-se em plasmócitos que secretam auto-anticorpos.7 Os plasmócitos encontram-se no sangue periférico e na medula óssea e os anticorpos por eles produzidos ligam-se, principalmente, a glicoproteínas (GP) das plaquetas, como a GPIIb/IIIa e GP Ib.7,10 Este processo acelera a destruição das plaquetas pelo sistemas reticuloendotetial10, a deposição de complemento e a apoptose plaquetar e inibe a produção megacariocítica.7
Outro mecanismo que pode explicar a forma como a infecção por HP culmina no desenvolvimento de trombocitopenia consiste na modulação da função dos monócitos/macrófagos através da activação do receptor Fcγ destas células.2,9,10 O receptor Fcγ representa o receptor primário para a imunoglobulina G e é responsável por diferentes acções, como a fagocitose, a libertação de citocinas e a citotoxicidade celular dependente de anticorpos.7 Assim, os monócitos destes doentes apresentam uma capacidade fagocítica mais marcada.9
O HP pode, por fim, desenvolver acções não-específicas no sistemas imunitário do hospedeiro, promovendo, por exemplo, a emergência de células B auto-reactivas.2,9
A detecção da infecção por HP deve ser considerada no estudo de adultos com trombocitopenia imune.2,3,5,11 Vários estudos clínicos demonstraram uma resposta na contagem plaquetária em cerca de 50% dos doentes com trombocitopenia imune que realizaram terapêutica de erradicação do HP.3,4,9,10 Além disso, verificou-se que a repercussão analítica apresenta uma duração de vários anos e os casos de recidiva são escassos.9
Este caso pretende alertar para a associação entre a trombocitopenia e a infecção por HP, a qual é muitas vezes esquecida na prática clínica.
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