Introdução
De acordo com a evidência actual disponível, a maioria dos acidentes vasculares cerebrais (AVC) isquémicos são de natureza trombótica, seguidos de embolias de origem cardíaca, sendo 20-30% de origem indeterminada, os quais são classificados como criptogénicos.(1–3) A forte associação de AVC criptogénico e foramen ovale patente (FOP), particularmente em doentes com menos de 55 anos, sugere que o embolismo paradoxal através de FOP possa ser uma causa importante de enfarte cerebral. Contudo, uma vez que a prevalência de FOP na população adulta é de 20-25%, e na maioria dos casos os doentes estão assintomáticos, a detecção de FOP em doentes mais idosos na presença de AVC isquémico exige a correspondente avaliação entre o verdadeiro risco de causalidade ou de mero achado incidental.(1,4,5)
Caso Clínico
Homem de 69 anos, internado no Serviço de Gastroenterologia, através do Serviço de Urgência (SU), por hematoquézia aguda, apresentando-se com pressão arterial (PA) de 131/68 mmHg, abdómen livre e hemoglobina (Hb) 6,6 g/dL; a colonoscopia documentou diverticulose cólica como fonte de hemorragia. Fez 1 unidade de concentrado eritrocitário. No 7º dia internamento desenvolveu quadro súbito de alteração do estado de consciência e diminuição da força muscular no hemicorpo esquerdo. Este quadro foi precedido e acompanhado de febre, tosse fracamente produtiva e dispneia. Salientava-se na observação pressão arterial 130/56 mmHg, frequência cardíaca de 105 bpm e pressão parcial de oxigénio de 54 mmHg; auscultação cardíaca com sons rítmicos, sem sopros ou extra-sons, auscultação pulmonar com murmúrio vesicular mantido e sem ruídos adventícios e pulsos carotídeos sem alterações. No exame neurológico destacava-se desvio do olhar conjugado para a direita, pupilas mióticas, simétricas e reactivas, apagamento do sulco nasogeniano à esquerda, plegia flácida do membro superior esquerdo, com mobilidade dos membros inferiores contra a gravidade, e reflexo cutâneo-plantar em flexão à direita e indiferente à esquerda. Realizou de imediato tomografia computorizada crânio encefálica (TC-CE), a qual não mostrou alterações isquémicas ou hemorrágicas agudas. Foi transferido para o Serviço de Medicina Interna, mantendo-se febril com temperatura timpânica de 38ºC. Na revisão da anamnese apurou-se história de diabetes mellitus tipo 2, insulina-tratada e tabagismo e a ausência de hipertensão arterial ou dislipidémia e sem história heredofamiliar de estados de hipercoagulabilidade. O doente era seguido desde há vários anos em centro de referência de reumatologia com os diagnósticos de artrite reumatóide e lúpus eritematoso sistémico e estava medicado com prednisolona oral 20 mg/dia.
Ao 13ºdia de internamento a ressonância magnética crânio encefálica (RM-CE) revelou múltiplas lesões isquémicas em ambos os hemisférios cerebrais e hemisfério cerebeloso direito; o ecodoppler dos vasos do pescoço não revelou alterações. O electrocardiograma (ECG), a par da monitorização electrocardiográfica contínua na Unidade de Cuidados Intermédios durante vários dias, não detectou qualquer arritmia. O ecocardiograma transtorácico foi normal. A avaliação laboratorial mostrou hemoglobina glicada (HbA1c) de 6,9%, colesterol total 192 mg/dL, colesterol HDL 43 mg/dL e colesterol LDL 83 mg/dL. Os resultados de outros exames laboratoriais, incluindo hemograma completo, ionograma, tempo de tromboplastina parcial activada e tempo de protrombina não revelaram alterações. As hemoculturas e urocultura não detectaram microorganismos e a punção lombar revelou líquor límpido com uma célula nucleada e sem alterações no exame bioquímico. A broncofibroscopia foi normal e os exames microbiológicos do lavado bronco-alveolar e secreções brônquicas foram negativas. Dada a manutenção de hipoxemia, fez angio-TC torácico que identificou defeito de replecção do ramo interno da artéria interlobar inferior direita, sugestivo de trombo endoluminal; a TC abdómino-pélvica não mostrou alterações. Perante a evidência de múltiplas lesões isquémicas cerebrais bilaterais, sem causa identificada, prosseguiu-se investigação etiológica com a realização de ecocardiograma trans-esofágico com soro salino agitado, o qual mostrou septo interauricular fino com passagem precoce de microbolhas da aurícula direita para aurícula esquerda através de foramen ovale. Foi administrada enoxaparina na dose de 1mg/Kg/12 em 12 horas, com evolução favorável e posteriormente introduziu-se rivaroxabano. Teve alta referenciado a consulta multidisciplinar de Cardiologia e Neurologia com vista a decisão sobre o encerramento da FOP ou manutenção da terapêutica médica, a qual nunca teve lugar porque o doente veio a falecer 1 mês após o internamento por quadro abdominal agudo devido a hérnia inguinal estrangulada.
Discussão
A grande maioria dos AVC isquémicos são de causa trombótica e logo seguidos de causa cardioembólica. Cerca de 20-30% dos AVC não têm causa determinada e designam-se como criptogénicos.(1) O embolismo paradoxal através dum foramen ovale patente tem sido historicamente implicado como causa de AVC e de outros eventos isquémicos sistémicos.(4) No caso descrito, o doente apresentou-se com quadro clínico-imagiológico de AVC isquémico agudo, com múltiplas lesões isquémicas na RM-CE, que apontavam para a causa cardioembólica como o mecanismo fisiopatológico mais provável. O doente, apresentava alguns factores de risco vascular para AVC, como a idade, diabetes mellitus e tabagismo, mas não tinha história de HTA ou dislipidémia e não se identificaram outras situações de alto risco como fibrilhação auricular, válvulas mecânicas ou placas ateroscleróticas estenosantes carotídeas. Dos antecedentes reumatológicos do doente, o LES é causa de AVC no adulto jovem, sendo a sua frequência variável. A vasculite em si raramente é a causa do AVC, o qual pode ocorrer por outros mecanismos, nomeadamente doença hipertensiva de pequenos vasos, cardioembolismo ou trombose arterial ou venosa, condicionada pela presença dum estado pró-trombótico. O doente encontrava-se, no entanto, com aparentes sinais de remissão, não favorecendo o LES como a causa do AVC.(6,7)Neste contexto, o FOP documentado por ecocardiograma trans-esofágico, poderá ser considerada muito provavelmente como a causa do AVC, mas também poderá ser um achado incidental, uma vez que FOP se encontra em cerca de 25% da população em geral.(5) O score RoPE (the risk of paradoxical embolism) avalia a probabilidade que um AVC embólico de fonte indeterminada seja devido a FOP (a pontuação varia de 0 a 10, com scores mais elevados indicando uma probabilidade maior). O score é baseado na presença ou ausência de factores de risco cardiovasculares como idade, hipertensão arterial, diabetes mellitus, tabagismo, história de AVC ou acidente vascular transitório e ainda a localização.(8,9) O doente apresentava um score RoPE contabilizado em 5, o qual indica um risco de 34% do AVC atribuível ao seu FOP. Os estudos complementares, com excepção do estudo pró-trombótico, que dada a idade do doente não foi realizado, não identificaram outra causa de AVC, considerando-se assim, e apesar da idade do doente, muito plausível o diagnóstico de FOP como a causa do AVC. Após a alta hospitalar foi referenciado a uma consulta multidisciplinar (Neurologia e Cardiologia) para ponderação do eventual benefício do encerramento cirúrgico da FOP ou manutenção do tratamento médico. O papel do encerramento de FOP para prevenir a recorrência do AVC nos doentes com FOP e AVC criptogénico permanece controverso. Sendo plausível que o encerramento de FOP possa reduzir o risco da recorrência de AVC, dos vários estudos randomizados os mais recentes parecem favorecer o encerramento de FOP comparativamente com a terapêutica médica sendo este benefício primariamente observado em doentes com idade inferior a 60 anos e FOP associado a aneurisma septal auricular ou shunts interauriculares de maiores dimensões ou ambos.(10,11)
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