Introdução
O enfisema subcutâneo caracteriza-se pela presença de ar nos tecidos subcutâneos e constitui possível complicação de tratamentos dentários, nomeadamente exodontias, principalmente do terceiro molar inferior.1,2,4,6,7 O uso inadequado de equipamentos de ar comprimido, como seringas de ar, turbinas e peças de mão de alta rotação, pode originar a acumulação de ar em espaços fasciais da cabeça e do pescoço e mais raramente com extensão ao mediastino.5,6 Clinicamente há quase sempre o desenvolvimento de uma tumefação imediata, que, na ausência de complicações, tem uma evolução benigna e uma resolução em 5 a 7 dias,2,6 no entanto, é necessário um correto diagnóstico para excluir situações potencialmente graves, como a ocorrência de pneumomediastino ou pneumotórax.2
Caso Clínico
Mulher de 26 anos, com antecedente pessoal de taquicardia sinusal medicada com ivabradina 5mg de 12/12 horas. Submetida a procedimento odontológico de destartarização por Higienista Oral. Durante o procedimento iniciou queixas de aumento de volume da hemiface direita, nas regiões submandibular e infraorbitária direitas associada a dor local e crepitação subcutânea, pelo que recorreu ao serviço de urgência (SU).
À observação no SU, apresentava enfisema subcutâneo da hemiface direita com envolvimento periorbitário e região mandibular (Fig. 1). Não apresentava queixas, sinais de dificuldade respiratória ou instabilidade hemodinâmica; a avaliação analítica não apresentava alterações; o eletrocardiograma estava em ritmo sinusal, com frequência cardíaca controlada (85 batimentos/minuto), sem extrassístoles, desvio do eixo elétrico ou alterações da repolarização ventricular; a tomografia computorizada (TC) cervicofacial e torácica de urgência revelava importante quantidade de infiltrado gasoso enfisematoso em topografia cervical, sobretudo anterior e lateral com distribuição transespacial mais expressiva à direita (Fig. 2). O enfisema estendia-se aos planos superficiais e profundos ao longo dos espaços mastigadores, carotídeos e espaço retrofaringeo, alcançando inferiormente o mediastino superior no compartimento anterior (Fig. 3).
Permaneceu no SU para vigilância da via aérea durante 6 horas e por manter estabilidade clínica foi internada no Serviço de Medicina para tratamento conservador.
Durante o internamento manteve o repouso, monitorização cardiorrespiratória e iniciou profilaxia antibiótica para mediastinite com amoxicilina/ácido clavulânico 1,2g de 8/8 horas, que cumpriu em internamento por 4 dias, com prescrição para ambulatório por mais 3 dias.
Na reavaliação imagiológica por TC cervicofacial e torácica, verificou-se marcada diminuição do conteúdo aéreo dos espaços parafaríngeos, mastigadores, visceral e mediastino. Teve alta ao 5º dia de internamento assintomática e hemodinamicamente estável.
Discussão e Conclusão
A maior parte dos casos de enfisema subcutâneo e pneumomediastino descritos na literatura tem relação com traumas da região cervicofacial.4,5 Porém nos últimos anos, o uso de equipamentos de ar comprimido, como seringas de ar, turbinas e peças de mão de alta rotação tem sido cada vez mais relacionado com a ocorrência de enfisema subcutâneo e pneumomediastino.3 Nestes procedimentos, as lacerações indevidas do periósteo (que podem ocorrer por falta de precisão no seu descolamento) favorecem a penetração do ar.5
Em 1995 Heyman e Babayof fizeram uma revisão de 75 casos relatados entre 1960 e 1993, demostraram que a ocorrência desta complicação pode estar relacionada com procedimentos dentários, desde restaurações até a extrações dentárias, estas últimas representado a maioria dos casos,6sendo a extração do terceiro molar frequentemente associada ao enfisema subcutâneo e pneumomediastino1,2,4,5,7 (extração dentária que mais comumente necessita da utilização de turbinas e peças de alta rotação de ar e incisão da mucosa adjacente).5 Porém, houve relatos de passagem de ar para espaço parafaríngeo mesmo em doentes que foram submetidos a tratamento endodôntico, para o qual não é necessário a incisão da mucosa adjacente,5 como o caso da doente por nós apresentado, submetida apenas a processo de destartarização, com uso de peças de alta rotação de ar. Tal achado sugere que, mesmo traumas mínimos na mucosa oral, quando expostos ao ar comprimido levam a dessecação dos espaços para e retrofaríngeos, com possível extensão para o mediastino.4
As bases das raízes dos três molares inferiores comunicam com os espaços sublinguais e submandibulares.1,5 Estes espaços por sua vez comunicam com os espaços pterigomandibular, parafaringeo e retrofaringeo, que são as vias responsáveis pela extensão para o mediastino.1,4,5
Os sinais clínicos de edema local, desconforto e/ou dor local e crepitação sugerem a instalação de enfisema subcutâneo.5 A presença de pneumomediastino pode ser diagnosticada clinicamente pelos sinais de dispneia, disfonia, toracalgia1,6 e sinal de Hamman (auscultação pulmonar de bolhas de ar sincronizadas com os sons cardíacos e não com o murmúrio vesicular, presente em 50% dos casos).5
O diagnóstico é clinico e imagiológico3,6 e implica o diagnóstico diferencial com hematoma, reação alérgica, angioedema ou infeção.6
O tratamento inclui repouso no leito e antibioterapia profilática, geralmente com regressão espontânea do quadro.4,5 Existem relatos de óbitos resultantes de complicações graves como mediastinite, pneumotórax e tamponamento cardíaco.2,4
Este trabalho pretende realçar a importância do conhecimento de potenciais complicações de alguns procedimentos odontológicos, cuja abordagem passa frequentemente pela Medicina Interna seja no SU ou no internamento.
Figura I

Enfisema subcutâneo da hemiface direita com envolvimento periorbitário e região mandibular.
Figura II

Imagem de corte horizontal de TC cervicofacial com infiltrado gasoso enfisematoso em topografia cervical anterior e lateral de distribuição transespacial mais expressiva à direita.
Figura III

Imagem de corte horizontal de TC torácica com a presença de pneumomediastino no compartimento anterior do mediastino superior.
BIBLIOGRAFIA
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