Introdução
A dispneia é um motivo frequente de recurso ao Serviço de Urgência (SU), com uma extensa lista de diagnósticos diferenciais associados, tanto de origem pulmonar como cardíaca. Trata-se também de uma causa frequente de internamento, tanto para controlo sintomático como para continuação da marcha diagnóstica. Um estudo de 2018 em hospitais europeus e da região Ásia-Pacífico incluiu 5569 doentes cujo principal sintoma aquando da ida ao SU era dispneia, 2/3 dos quais foram admitidos em serviço de internamento.1
A distinção entre as causas motivadoras de dispneia é difícil, sendo a história clínica e o exame físico essenciais. Os meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) são uma ferramenta útil, guiando o clínico na confirmação ou exclusão diagnóstica e na avaliação da eficácia terapêutica. A acessibilidade a um meio de diagnostico rápido e informativo que possa ser feito sem necessidade de deslocação do doente foi o maior motivador do uso da ecografia no doente crítico.
A ecografia à cabeceira do doente (ecoCD), equivalente ao conceito de POCUS utlizado na literatura internacional (Point-Of-Care Ultrasonography), é um meio de diagnóstico que tem ganho cada vez mais adeptos nos últimos anos. O seu uso na medicina intensiva e de emergência tem aumentado, assim como na enfermaria de Medicina Interna (MI), à medida que cada vez mais internistas procuram formação nessa área.
Esta técnica distingue-se da ecografia guiada por protocolos formais para avaliação morfológica ou funcional na medida em que é realizada como complemento à história clínica e exame físico do doente, tentando responder a questões específicas colocadas pelo observador.2 Trata-se de uma técnica dependente do operador e das circunstâncias em que o exame é realizado, estando a sua utilidade e fiabilidade inevitavelmente ligadas a quem o executa.
Os critérios para a utilização da ecoCD têm sido foco de revisão na literatura; no que diz respeito à abordagem da dispneia no doente agudo, a avaliação cardíaca e pulmonar à cabeceira tem sido vista como uma ferramenta útil para distinção entre causas pulmonares e cardíacas de dispneia, acrescentando informação em casos de insuficiência cardíaca aguda e doença vascular pulmonar.3
Parece, portanto, fundamental o investimento na formação e treino contínuo dos profissionais que realizam ecoCD, sendo já reconhecidas como barreiras à sua adoção o elevado custo dos aparelhos de ecografia, o treino insuficiente dos profissionais e o tempo necessário para esta prática.4
Caso Clínico
Apresentam-se dois casos clínicos em que se realça a importância da ecoCD, no doente com dispneia.
O primeiro é o de uma doente de 79 anos com história prévia de diabetes mellitus tipo 2 e hiperlipidemia, observada no SU por quadro de dispneia de esforço e ortopneia de agravamento progressivo na semana anterior, associados a edemas vespertinos bilaterais dos membros inferiores. Dos MCDTs realizados no SU destacava-se lesão renal aguda com uma taxa de filtração glomerular (TFG) de 27ml/m2 e d-dímeros 2465mcg/ml (normal<230mcg/ml). A radiografia de tórax mostrava aumento do índice cardiotorácico e ausência de sinais de processo infecioso pulmonar. Dada a elevação dos d-dímeros, foi admitido tromboembolismo pulmonar (TEP) e a doente foi internada após iniciar anticoagulação parentérica. À avaliação no serviço de MI, apresentava agravamento do quadro de dispneia, com necessidade do aumento de aporte de oxigénio (2L de oxigénio por cânula binasal para saturações de 93%) e hipotensão (90/62mmHg) sem compromisso da perfusão periférica. Optou-se por realizar ecoCD que mostrou dilatação das cavidades direitas com aplanamento do septo interventricular e estrutura filiforme com origem na aurícula direita e movimento para dentro do ventrículo direito (Fig. 1); a veia cava inferior (VCI) media 17mm e não apresentava cinética respiratória. O ecocardiograma transesofágico (ETE) confirmou a presença de uma massa móvel multilobulada na aurícula direita, correspondente a um trombo. Havia sinais de disfunção do ventrículo direito e procidência do septo interauricular para a aurícula esquerda. Dado o agravamento clínico da doente e a presença de trombo intracardíaco, optou-se por realizar terapêutica trombolítica com alteplase (100mg em 2 horas) havendo normalização dos parâmetros vitais (PA 125/60mmHg, 67 bpm, saturação de 100% em ar ambiente) (Fig. 2). A ecografia com Doppler dos membros inferiores não evidenciou sinais diretos ou indiretos de trombo; a doente fez angioTC durante o internamento que evidenciou defeito de preenchimento central no segmento distal da artéria pulmonar direita e tronco da artéria pulmonar de calibre normal.
O segundo caso é o de um doente de 42 anos, com história conhecida de hipertensão arterial e nefropatia hipertensiva estadio 3a, que recorreu ao SU em dois dias consecutivos por quadro de dispneia de esforço com 5 dias de evolução, acompanhado de tosse não produtiva, sem febre. Analiticamente apresentava elevação dos parâmetros inflamatórios, INR espontâneo de 2,04, TFG 54ml/m2, sem outras alterações. O eletrocardiograma no SU mostrava ritmo sinusal e complexos com baixa voltagem. A radiografia de tórax documentava derrame pleural a ocupar o terço inferior do hemitórax direito e alargamento do mediastino, sem imagens de condensação de novo. Admitiu-se infeção respiratória com derrame pleural metapneumónico. À admissão no serviço de MI apresentava-se polipneico em ar ambiente em repouso (30 ciclos respiratórios, saturação 98%), não conseguindo terminar frases e não tolerando o decúbito, normotenso (113/80mmHg), com ingurgitamento jugular bilateral a 30º e dor à palpação do hipocôndrio direito. Optou-se por realizar ecocardiograma à cabeceira em que se objetivou derrame pericárdico (Fig. 3) com 33mm de diâmetro junto à aurícula direita, colapso das cavidades direitas e imagem de “swinging heart”. A VCI media 20mm e não apresentava cinética respiratória. Com a colaboração da Cardiologia, foi realizada pericardiocentese com apoio ecográfico, drenando-se 850ml de líquido sero-hemático, havendo melhoria da dispneia e do ingurgitamento jugular assim como melhoria ecográfica (Fig. 4). O estudo etiológico não revelou causa para o derrame pericárdico; o prolongamento do INR foi interpretado em contexto de congestão hepática por insuficiência cardíaca aguda, verificando-se posterior normalização.
Discussão
Estes casos ilustram a importância da ecoCDdo doente na enfermaria de MI, em doentes com dispneia de instalação aguda. Em ambas as situações, foram tomadas decisões terapêuticas imediatas que alteraram o outcome clínico, que é um dos pontos principais a ter em conta quando se considera a realização da ecoCD num doente agudo.2
Relativamente ao primeiro caso, a ecoCD não apresentava uma imagem inequívoca de trombo intracardíaco, pelo que o ETE foi utilizado para confirmação dos achados e por disponibilidade imediata desse exame. Confirmada a presença de trombo na aurícula direita e dado tratar-se de uma doente com dispneia e hipotensão, optou-se por avançar para a trombólise, admitindo-se o TEP como diagnóstico mais provável e tendo em conta a elevada mortalidade dos doentes com estes achados associados a disfunção ventricular direita.5 O segundo caso representa outra das situações em que a ecoCD faz a diferença, permitindo a drenagem atempada do derrame pericárdico num doente que iria evoluir rapidamente para tamponamento cardíaco.
Uma questão que se tem discutido recentemente é a de quem deve realizar a ecoCD. Embora seja a Radiologia a especialidade mais experiente no uso da ecografia, nem todos os SUs dispõem de um radiologista em permanência ou com disponibilidade para a realização rápida deste exame, sendo o clínico que aborda inicialmente o doente a melhor pessoa para o realizar e integrar os achados imagiológicos no quadro clínico. De forma a superar o receio atual de que o médico no SU e nas enfermarias de MI não consiga uma interpretação adequada dos achados dada a menor experiência ecográfica,6 impõe-se mais uma vez a necessidade do treino dos profissionais e prática diária desta técnica, não se podendo excluir a vantagem que a colaboração entre as duas especialidades traria, sempre que a situação clínica do doente o permitisse. De facto, o diagnóstico de patologia potencialmente fatal e que altere a prática do clínico no imediato é aquilo que se pretende com esta técnica, sendo que toda a restante patologia poderá ser avaliada e estudada posteriormente.2
O uso desta técnica no SU é atualmente mais aplicado em doentes críticos, na sala de emergência, o que não aconteceu nos dois casos descritos acima. Atualmente, dada a elevada afluência aos SUs, torna-se cada vez mais necessário ser criterioso na avaliação da gravidade dos doentes e na decisão dos MCDTs a pedir. A indisponibilidade de ecógrafos aliada à inexperiência com esta técnica e à necessidade de rapidez no trabalho em urgência, faz com que este exame não seja considerado em alguns doentes em quem faria a diferença. É necessário continuar a incentivar a formação nesta área assim como implementar a sua utilização no quotidiano dos internistas.
Agradecimentos:Agradece-se a contribuição do Laboratório de Ecocardiografia do Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Marta, na pessoa das Dras. Luísa Branco e Ana Galrinho, pela reavaliação ecocardiográfica em laboratório nos dois casos acima descritos e discussão das imagens obtidas.
Figura I

Figura 1: Ecocardiograma à cabeceira. Incidência modificada para visualização das cavidades cardíacas direitas. Observa-se imagem filiforme na aurícula direita (seta) correspondente a trombo. AD: Aurícula direita, VD: Ventrículo direito, VE: Ventrículo esquerdo
Figura II

Figura 2: Ecocardiograma em laboratório. Incidência subcostal. Aurícula direita sem imagem filiforme após fibrinólise. AD: Aurícula direita, VD: Ventrículo direito, AE: Aurícula esquerda, VE: Ventrículo esquerdo
Figura III

Figura 3: Ecocardiograma à cabeceira. Incidência subcostal. Observa-se derrame pericárdico circunferencial com 32mm de diâmetro junto à aurícula direita e colapso das cavidades direitas. AE: Aurícula esquerda, VE: Ventrículo esquerdo
Figura IV

Figura 4: Ecocardiograma em laboratório. Incidência subcostal. Fina lâmina de derrame pericárdico junto ao ventrículo direito e esquerdo, sem colapso das cavidades direitas. AD: Aurícula direita, VD: Ventrículo direito, AE: Aurícula esquerda, VE: Ventrículo esquerdo
BIBLIOGRAFIA
1. Laribi S, Keijzers G, van Meer O, Klim S, Motiejunaite J, Kuan W Sen, et al. Epidemiology of patients presenting with dyspnea to emergency departments in Europe and the Asia-Pacific region. Eur J Emerg Med. 2018;1.
2. Royse CF, Canty DJ, Faris J, Haji DL, Veltman M, Royse A. Core review: Physician-performed ultrasound: The time has come for routine use in acute care medicine. Anesth Analg. 2012;115(5):1007–28.
3. Steeds RP, Garbi M, Cardim N, Kasprzak JD, Sade E, Nihoyannopoulos P, et al. EACVI appropriateness criteria for the use of transthoracic echocardiography in adults: A report of literature and current practice review. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2017;18(11):1191–204.
4. Bhagra A, Tierney DM, Sekiguchi H, Soni NJ. Point-of-Care Ultrasonography for Primary Care Physicians and General Internists. Mayo Clin Proc [Internet]. 2016;91(12):1811–27. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.mayocp.2016.08.023
5. Konstantinides S V, Meyer G, Becattini C, Bueno H, Geersing G-J, et al. 2019 ESC Guidelines for the diagnosis and management of acute pulmonary embolism developed in collaboration with the European Respiratory Society (ERS). Eur Heart J. 2019;1–61.
6. Monti, J. Who Owns POCUS. https://aiumthescan.wordpress.com/ [homepage na Internet]. The SCAN – Official blog of the aium [consultado 6 dez 2019].Disponível em:https://aiumthescan.wordpress.com/2019/11/19/who-owns-pocus/://aiumthescan.wordpress.com/2019/11/19/who-owns-pocus/