Introdução
A hipocaliémia, ou hipopotassemia, define-se pela presença de uma concentração plasmática deK+inferior a 3,5 mEq/L.1-2
Constitui um desequilíbrio hidroeletrolítico comum, presente em até 20% dos doentes internados1-2e até 14% dos doentes que realizam este doseamento em regime de ambulatório2.
Entre as etiologias mais frequentes estão a perda urinária ou gastrointestinal de K+, sendo que o enquadramento clínico é fundamental e remete, muitas vezes, para o diagnóstico etiológico.De entre as causas renais, a Síndrome de Gitelman (SG), apesar de rara, trata-se da tubulopatia hereditária mais frequente, com prevalência estimada em 1 a 10 casos por cada 40.000 habitantes.3É causada por mutações inativadoras bialélicas no geneSLC12A3que codifica o co-transportador Na+/Cl-sensível às tiazidas,expressona membrana apical das células do tubo contornado distal. É frequentementedetetadana idade pediátrica ou no adulto jovem.2-3
Clinicamente caracteriza-se por alta variabilidade fenotípica: o doente pode estar assintomático, apresentar sintomas ligeiros e inespecíficos (fadiga, cãimbras, parestesias, avidez por sal, por exemplo) ou sintomas severos e incapacitantes (convulsões, rabdomiólise, taquicardia ventricular, entre outros)3.
Os critérios clínicos e laboratoriais que apoiam a suspeita de Síndrome de Gitelman estão descritos na Tabela 1.3
A presença de hipocalciúria e hipomagnesiémia são altamente preditivas do diagnóstico clínico de SG.3A confirmação é realizada através do estudo genético, com a presença da mutação bialélica do geneSLC12A3.3
Caso Clínico
Apresenta-se o caso clínico de uma mulher de 28 anos, previamente saudável, admitida no Serviço de Urgência por clínica de gastroenterite aguda, com vómitos e diarreia com dois dias de evolução.
A doente encontrava-se hemodinamicamente estável, tendo-se documentado hipocaliémia grave (2,1 mmol/L), sem alterações eletrocardiográficas associadas. Iniciou correção endovenosa da hipocaliémia no serviço de urgência/ serviço de observação, tendo tido alta assintomática 48h após a admissão, sob reposição oral de cloreto de potássio e orientada para reavaliação em consulta externa de Medicina Interna.
Resolvido o quadro agudo, verificou-se persistência da hipocaliémia (K+2,7-2,9 mmol/L). A doente negava consumo de fármacos, terapêutica laxativa, suplementos ou chás e não apresentava antecedentes pessoais ou familiares relevantes. Clinicamente mantinha-se normotensa, tendo sido constatada a existência de poliúria no inquérito sintomático (diurese de aproximadamente 7L/24h), sintoma que a doente desvalorizava até então.
Do estudo complementar, conforme se apresenta na Tabela 2 e na Tabela 3, salienta-se função renal normal, tendo-se documentado hipomagnesémia (Mg2+0,6 mmol/L) com calcémia normal (corrigida ao valor de albumina) e alcalose metabólica (pH 7,448, HCO3-29,8 mmol/L).
O estudo hormonal revelou um aumento da Atividade da Renina Plasmática (ARP 23ng/ml/h; N:0,5-1,0 ng/ml/h).
O exame sumário de urina era normal, sem sedimento ativo. O ionograma urinário (Tabela 4) permitiu apurar o aumento da excreção urinária de K+(K+/Cr 8,8 mmol/mmol) e de Mg2+(Fracção de excreção urinária de Mg2+ou FE-Mg2+de 31%),assim comohipocalciúria (Ca2+/Cr 0,13 mmol/mmol).
A ecografia reno-vesical não mostrou alterações.
A sequenciação do geneSCL12A3detetoua variante patogénica c.625C>T, p.(Arg209Trp) no exão 5 em homozigotia, confirmando o diagnóstico de SG.
A doente foi aconselhada a manter ingestão liberal de sal e suplementação oral de cloreto de potássio e magnésio, tendo-se conseguido a correção da hipomagnesiémia, mantendo hipocaliémia ligeira.
Por intenção de engravidar foi encaminhada para consulta de genética clínica, tendo-se confirmado a mutação em heterozigotia em ambos os progenitores. Foi excluída a presença de mutação patológica no parceiro da doente.
Discussão
Num indivíduo saudável, o K+ingerido é eliminado 90% por via urinária e 10% por via fecal.1Na homeostasia deste ião, contribui ainda o mecanismo de redistribuição celular entre os tecidos ou fluído extracelular, uma vez que mais de 98% do K+corporal total se encontra a nível intracelular.1Assim, a hipocaliémia pode resultar de umadiminuição do aporte de K+, da sua redistribuição celular, ou de perdas renais ou não renais de K+(sobretudo gastro-intestinais).1-2
Importa realizar uma história clínica cuidadosa, pesquisando sintomas e a sua cronicidade, esclarecer a dieta, medicação e substâncias de consumo habitual (fundamental excluir toma de diuréticos ou laxantes, bem como de substâncias com efeito de distribuição celular do K+), e os antecedentes familiares. O exame físico deverá ter especial atenção ao estado de volémia e tensão arterial.
No caso apresentado, o contexto de vómitos e diarreia são sugestivos de perda gastro-intestinal de K+, uma das etiologias mais frequentes deste distúrbio.1-2
A refratariedade à terapêutica de suplementação, após a resolução das perdas gastro-intestinais, levou a considerar a existência de outros mecanismos etiológicos subjacentes.
O doseamento de K+urinário foi fundamental em esclarecer a existência de perda renal deste ião. Perante este achado, na ausência de hipertensão arterial, importa avaliar o estado ácido-base.2Caso se verifique hipertensão arterial, a avaliação do eixo renina-angiotensina-aldosterona é fundamental para orientar a suspeita clínica.1-2
No caso da doente, confirmou-se a presença de alcalose metabólica. Os principais diagnósticos diferenciais a considerar nos casos de hipocaliémia com alcalose metabólica e sem hipertensão arterial são: a perda gastro-intestinal por vómitos, o uso de diuréticos, o défice de magnésio sérico e as tubulopatias perdedoras de sal, como são a SG e a Síndrome de Bartter.1-2
A utilização de diuréticos constitui a causa mais frequente de hipocaliémia de causa renal, que ocorre em até 80% destes doentes.2Os diuréticos tiazídicos, do ponto de vista fisiopatológico, simulam a SG por atuar no mesmo transportador de Na+/Cl- a nível renal.1-3
Como previamente referido, a doente negava o consumo de diuréticos ou outras substâncias, bem como história de vómitos mantidos, pelo que estas causas foram excluídas.
Quando a história fornecida é dúbia, o doseamento de Cl-urinário pode ajudar a esclarecer a existência de vómitos sub-reptícios não reportados (Cl-urinário diminuído).1-2O doseamento de Cl- urinário normal é sugestivo da existência de tubulopatia, nomeadamente da SG ou da Síndrome de Bartter (SB). Esta última é causada por uma mutação autossómica recessiva no transportador de Na+/Cl- no ramo ascendente da ansa de Henle e caracteriza-se clinicamente por uma apresentação fenotípica que pode ser semelhante à SG.2-3
O diagnóstico em idade adulta e o fenótipo praticamente assintomático, bem como a presença de hipomagnesémia e hipocalciúria, favoreceram a suspeita clínica de SG face à SB na doente em questão. Na SB a apresentação clínica tende a ser mais sintomática e em idade pediátrica (frequentemente antes dos 3 anos de idade). A concentração sérica de Mg2+pode ser normal ou estar aumentada e a presença de hipercalciúria é muito frequente.2-3,4
O défice de magnésio sérico pode comprometer a eficácia da suplementação de K+ pela inibição da atividade da bomba Na+/K+ATPase a nível muscular, comprometendo o influxo intracelular deste ião.1As causas de hipomagnesiémia são múltiplas e sobrepõem-se a algumas causas de hipocaliémia, tais como a toma de diuréticos ou as próprias tubulopatias perdedoras de sal.1-2
Perante a refratariedade à suplementação com K+, a suplementação com Mg2+deverá ser instituída, mesmo com doseamento sérico de Mg2+normal (depleção de magnésio normomagnesémica).1-2
A SG apresenta frequentemente um curso benigno.No entanto, o seu diagnóstico é fundamental para a implementação da terapêutica dirigida e um seguimento adequado, de extrema importância na doença aguda (implicações terapêuticas, anestésicas, por exemplo), bem como na gravidez e na infância.
Deve preconizar-se aad libitumde sódio, respeitando a avidez pelo sal, e de alimentos ricos em potássio. Os suplementos de sódio não estão recomendados. A suplementação oral com cloreto de potássio visa a melhoria sintomática e, no caso de hipomagnesiémia, deverá serconsideradaadicionalmente a suplementação oral com magnésio que permitirá a adequada correção da caliémia.3
As doses devem ser adaptadas individualmente, sendoconsiderado aceitável um alvo terapêutico deK+sérico >3,0mmol/L e Mg2+sérico > 0,6 mmol/L. São, muitas vezes, necessárias altas doses de suplementação.3
No caso de refratariedade, pode ser considerado o uso de diuréticos poupadores de potássio, inibidores do sistema renina- angiotensina- aldosterona ou anti-inflamatórios não esteróides como a indometacina.3
O aconselhamento genético deve ser oferecido a todos os doentes com o diagnóstico de SG, bem como aos familiares e parceiros. O diagnóstico pré-natal é possível mas raramente necessário dado o bom prognóstico na maioria dos doentes. O agravamento das alterações iónicas durante a gravidez obriga ao adequado planeamento e seguimento clínico, com ajuste da suplementação e suspensão de fármacos teratogénicos.3
Até Julho de 2018 apenas quatro casos foram publicados de SG em Portugal5-7, não havendo registo do número de casos diagnosticados a nível nacional. Os autores pretendem relembrar a SG como causa de hipocaliémia persistente, reforçando a importância da suspeita diagnóstica quando a evolução clínica não é a esperada.
Quadro I
Critérios que apoiam a suspeita de Sindrome de Gitelman
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Hipocaliémia crónica (K+ < 3,5 mEq/L) com excreção renal inapropriada de K+ (Relação K+/Creatinina na urina ocasional >2,0 mEq/mmol) |
Alcalose metabólica |
Hipomagnesémia (Mg2+ < 0,7mmol/L ou 1,70 mg/dL) com excreção renal inapropriada de Mg2+ (Fração de excreção de Mg2+ urinário >4%) |
Hipocalciúria (Relação Ca2+/Creatinina na urina ocasional <0,2 mmol/mmol, no adulto) |
Aumento da Actividade ou dos níveis da Renina Plasmática |
Pressão Arterial normal ou baixa |
Ecografia renal normal |
Quadro II
Valores analíticos do estudo complementar sérico
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Hemoglobina | 16,8g/dL (N: 12,5-16 g/dl) |
Creatinina | 0,5mg/dL (N: 0,50-0.90 mg/dl) |
Azoto ureico | 9,7mg/dL (N: 8-23 mg/dl) |
Sódio | 142mEq/L (N: 135-145 mmol/L) |
Potássio | 2,9mEq/L (N: 3,5-5,1 mmol/L) |
Cloro | 95mEq/L (N: 96- 107 mmol/L) |
Magnésio | 1,20mEq/L (N 1,4 – 2,1mEq/L) |
Cálcio | 10,2mg/dL N 8,8-10,2mg/dL) |
Hormona estimulante da tiróide (TSH) | 2,29uUI/mL (N: 0,3-4 uUI/ml) |
Actividade da Renina Plasmática | 23ng/ml/h (N: 0,5-4,0 ng/ml/h) |
Aldosterona basal | 23,2pg/mL (N: 4,0-31,0 pg/mL) |
Anticorpos anti-nucleares | Negativos |
Quadro III
Gasimetria arterial em ar ambiente e repouso
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pH | 7,448 (N: 7,35-7,45) |
pCO2 | 43,8mmHg (N: 35-45mmHg) |
Bicarbonato | 29,8mmol/L (N: 18-24mmHg) |
pO2 | 98,2mmHg (N: > 80 mmHg) |
SaO2 | 98,3% (N: >95%) |
Sódio | 140mEq/L (N: 135-145 mmol/L) |
Potássio | 2,6mEq/L (N: 3,5-5,1 mmol/L) |
Cloro | 102mEq/L (N: 96- 107 mmol/L) |
Lactatos | 0.9mmol/L (N: 0,6-2mmol/L) |
Quadro IV
Ionograma urinário (urina das 24h)
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Volume urinário | 7,5L |
Creatinina | 1252,5mg/24h (16,7mg/L) |
Sódio | 247,5mEq/24h (33mEq/L) N: 100–260 mEq/24 h |
Potássio | 97,7mEq/24h (13,02mEq/L) N: > 20–100 mEq/24h, na ausência de hipocaliémia |
Cloretos | 235,5mEq/24h (31,3mEq/L) N: 80-250mEq/24h |
Cálcio | 60,0mg/24h (8mg/L) N: 100–300 mg/24h |
Magnésio | 127,5mg/24h (17mg/L) N: 155 a 245 mg/24 h |
FEMg2+ | 31% |
K+/Cr | 8,8 mEq/mmol |
BIBLIOGRAFIA
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2. Kardalas E, Paschou SA, Anagnostis P, Muscogiuri G, SiasosG, Vryonidou A. Hypokalemia: a clinical update. Endocrine Conections. 2018; 7: R135-R146. doi:10.1530/EC-18-0109.
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7. Rego T, Fonseca F, Cerqueira R, Agapito A. BMJ Case Rep. 2018. doi: 10.1136/bcr-2017-223663.