INTRODUÇÃOA púrpura trombocitopénica trombótica (PTT) é uma microangiopatia trombótica inicialmente caracterizada pela pentade clássica: trombocitopenia, anemia hemolítica microangiopática (AHMA), alterações neurológicas, disfunção renal e febre
1. Trata-se de uma patologia pouco frequente com uma incidência anual de 1 a 6 casos por milhão
2.
A PTT pode ser idiopática ou corresponder à manifestação de outras doenças
3. Apesar de rara, a associação com o lupus eritematoso sistémico (LES) está descrita
4. Porém, a sobreposição de critérios, como trombocitopenia e AHMA, gera dúvidas diagnósticas
3,5,6. Não obstante, os doentes que reúnem critérios para ambas as doenças associam-se a uma mortalidade mais elevada e alguns estudos sugerem benefício com terapêutica imunossupressora adjuvante
3,4,7,8. A identificação deste padrão tem implicações no prognóstico, tratamento e seguimento destes doentes
3,7.
Apresentamos um caso invulgar de uma doente internada por um quadro agudo sugestivo de PTT cujo estudo complementar fez admitir a possibilidade de LES.
CASO CLÍNICOMulher de 33 anos de idade, leucodérmica, internada por um quadro agudo com uma semana de evolução de fadiga e discrasia hemorrágica com hemorragia gengival, menorragias e múltiplas equimoses nos membros. Não se apuravam outros sinais e sintomas de novo. Não havia história de trauma, consumo de tóxicos ou fármacos.
Ao exame objectivo apresentava-se hemodinamicamente estável (pressão arterial: 112/63mmHg, frequência cardíaca: 75/min), apirética, eupneica, com palidez mucocutânea e escleróticas subictéricas, equimoses dispersas nos quatro membros, sem eritema malar ou noutras zonas expostas ao sol. A observação cardíaca, pulmonar, abdominal, articular e neurológica não apresentava alterações. Laboratorialmente destacavam-se anemia (hemoglobina 8,7g/dL), volume globular médio (VGM) 89fL, trombocitopenia (11000/µL), morfologia de sangue periférico com policromatofilia e esquizócitos, bilirrubina total 1,28mg/dL, lactato desidrogenase (LDH) 891UI/L, haptoglobina <20mg/dL, Coombs direto negativo, INR e tempo de tromboplastina parcial ativada (aPTT) não aumentados, creatinina sérica 0,6mg/dL e proteína C-reactiva <0,5mg/dL. Sem elevação dos valores séricos de troponina T de alta sensibilidade, aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT), gama-glutamiltransferase (γGT) e fosfatase alcalina (FA). Análise sumária de urina não apresentava alterações. Teste imunológico de gravidez negativo. As serologias para vírus da imunodeficiência humana (VIH), vírus da hepatite B e C foram negativas. A radiografia do tórax não apresentava alterações patológicas, mas o ecocardiograma revelou uma lâmina de derrame pericárdico.
A hipótese diagnóstica de PTT foi evocada perante trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática tendo iniciado aférese terapêutica com permuta de plasma diária e metilprednisolona 1g/dia ev durante 3 dias. A doente respondeu favoravelmente ao tratamento deixando de surgir novas equimoses e com normalização da contagem plaquetar ao 10º dia de tratamento. Terminou os ciclos de plasmaférese dois dias depois da normalização da contagem de plaquetas. A doente foi ainda medicada com ácido fólico (5mg/dia), bem como com ácido acetilsalicílico (100mg/dia) assim que a contagem de plaquetas ultrapassou 50000/µL até dois meses após a fase aguda.
Dos restantes parâmetros laboratoriais pendentes colhidos na admissão antes do início de plasmaférese destacam-se ADAMTS13 (a disintegrin and metalloproteinase with a thrombospondin type 1 motif, member 13) com nível de actividade baixo (<5%) e níveis elevados de anticorpo anti-ADAMTS13 (77,68μL). O estudo microbiológico, nomeadamente hemoculturas e urocultura, foi negativo. O estudo auto-imune relevou anticorpos anti-nucleares (ANA, título 1/160, padrão homogéneo), anti-dsDNA (anti-double stranded deoxyribonucleic acid 90 UI/mL) e anti-Smith positivos. Os anticorpos anti-cardiolipina e β-2 glicoproteína I, anticoagulante lúpico, factor reumatóide, anticorpo antipeptídeo citrulinado 2 (anti-CCP2), anticorpo anti-citoplasma de neutrófilos (ANCA) foram negativos. O complemento estava ligeiramente diminuído (C3 84mg/dL; C4 8mg/dL).
Perante estes resultados foi colocada a possibilidade de associação de microangiopatia trombótica com LES pelo que se associou hidroxicloroquina 400mg/dia à prednisolona 40mg/dia, e foi encaminhada para a consulta de Doenças Imunomediadas.
DISCUSSÃOA suspeita de PTT foi evocada perante trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopática com teste de Coombs negativo, apesar de não se observar febre nem disfunção neurológica ou renal
5. De facto, a pentade clássica da PTT só está presente em 5% dos doentes
3. A apresentação clínica inicial e os parâmetros laboratoriais não eram compatíveis com diagnósticos alternativos que também cursam com microangiopatia trombótica como coagulação intravascular disseminada (coagulação normal), síndrome hemolítica-urémica (sem disfunção renal), neoplasia disseminada, emergência hipertensiva, toxicidade ou microangiopatia trombótica associada à gravidez/puerpério.
O diagnóstico de PTT é primariamente presumido perante microangiopatia trombótica na ausência de outra causa óbvia e subsequentemente corroborado pela diminuição da actividade da ADAMTS13. Esta enzima é uma metaloprotease responsável por clivar multímeros de factor de von Willebrand de modo a regular a agregação plaquetar e está envolvida na fisiopatologia das microangiopatias trombóticas
7. Na impossibilidade de obter um resultado célere da actividade enzimática da ADAMTS13, a escala PLASMIC foi utilizada para quantificar a probabilidade diagnostica
9. Efetivamente, a suspeição clínica foi consubstânciada por uma pontuação de 6 na escala de PLASMIC que se associa a uma probabilidade elevada (72%) de existir uma actividade da ADAMTS13 inferior a 15%
9.
A história natural de doença não tratada caracteriza-se por uma deterioração clínica progressiva e uma evolução para morte em aproximadamente 90% dos casos
1,5,10. Os avanços no tratamento associaram-se a uma redução na mortalidade para menos de 20%, pelo que este deve ser instituído rapidamente caso se suspeite do diagnóstico
1,5,10.
A aférese terapêutica com permuta de plasma é a intervenção mais importante na gestão da PTT e o atraso no seu início associa-se a um pior prognóstico
10. Vários estudos demonstraram a sua eficácia clínica, beneficio na redução da mortalidade e superioridade face à transfusão de plasma, que resultam do efeito aditivo da remoção do inibidor (anticorpo anti-ADAMTS13) com a suplementação de ADAMTS13 funcional
10. A transfusão de plasma pode ser equacionada como medida temporária em doentes cuja transferência para um centro com capacidade para plasmaférese signifique um atraso inevitável no início do tratamento.
O glucocorticoides são amplamente utilizados como terapêutica adjuvante neste contexto, apesar de não existirem ensaios clínicos aleatorizados que comprovem o seu benefício
10. Estudos observacionais associam a sua utilização a uma recuperação mais rápida e este efeito é atribuído a uma diminuição na produção do inibidor
1,3,10. Alguns especialistas orientam a escolha do glucocorticoide em função da gravidade clínica (ditada por alterações neurológicas ou cardíacas)
3. Nos doentes sem sinais de gravidade e com via oral utilizável sugerem que possa ser equacionado 1mg/Kg/dia de prednisolona
3. Em doentes graves tendem a favorecer pulsos de 1g de metilprednisolona intravenosa durante 3 dias (administrada depois da plasmaférese), seguido de 1mg/Kg/dia de prednisolona oral
3. Outros autores favorecem a utilização de pulsos de metilprednisolona na generalidade dos doentes dado o seu perfil de segurança e via de administração que contorna problemas de absorção do fármaco
10.
A utilização do rituximab evoluiu nos últimos anos. No passado a sua prescrição era reservada para os casos graves, refratários ou recorrentes
1. Atualmente a sua utilização tem-se generalizado na sequência de estudos observacionais que descrevem segurança e indiciam eficácia na redução do tempo até à remissão e risco de recorrência
10. Em casos selecionados o início de tratamento com rituximab pode ser diferido até serem obtidos os resultados dos testes da ADAMTS13. No caso vertente, a estabilidade clínica relativa da doente ditou que se aguardasse pelo resultado do estudo pendente. Todavia, quando este ficou disponível a doente já tinha recuperado significativamente.
A possibilidade do diagnóstico de LES manifestando-se como microangiopatia trombótica foi posteriormente elaborada perante as alterações clínicas (derrame pericárdico) e imunológicas (positividade de ANA, anti-dsDNA, anti-Smith)
11. Esta associação está descrita na literatura e vários padrões clínicos têm sido investigados, podendo o diagnóstico de LES preceder (50-73%), suceder (3,8-15%) ou ser estabelecido em simultâneo (12-45%)
4,12.
A nossa doente apresentava actividade da ADAMTS13 muito reduzida, bem como a presença de anticorpos anti-ADAMTS13 e anti-dsDNA. Em doentes com LES a sua actividade pode estar reduzida, o que parece correlacionar-se inversamente com a actividade do lúpus e presença de anticorpos anti-dsDNA
13,14. Os anticorpos anti-ADAMTS13 em doentes com LES poderão estar envolvidos na associação com microangiopatia trombótica, mas esta relação não está completamente estabelecida
13.
No contexto de microangiopatia trombótica, o diagnóstico de LES tem implicações no prognóstico, tratamento e seguimento destes doentes
7. Esta população apresenta menor resposta à plasmaférese, maior necessidade de terapêutica imunossupressora, maior taxa de recidiva e mortalidade quando comparada com a PTT idiopática (30-60% vs 10%)
7.
O tratamento do LES com manifestações hematológicas graves consiste na combinação de glucocorticoides em doses moderadas a altas com agentes imunosupressores (preferencialmente a ciclosporina pela menor toxicidade medular) como poupadores de corticoides
15. Por outro lado, o rituximab, está indicado em doentes refratários ao tratamento glucocorticoide e no caso de recorrência
1,15.
A doente foi encaminhada para reavaliação precoce em consulta de Doenças Imunomediadas com o objectivo de monitorizar o desmame de corticoides dada a elevada taxa de recidiva, bem como de promover protecção solar, vacinação, atividade física e perda de peso
15.
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