INTRODUÇÃO
A vasculite por imunoglobulina A (IgA), habitualmente conhecida por púrpura de Henoch–Schönlein (PHS) foi descrita a primeira vez em 1802, por Heberden. Posteriormente, em 1837, Schönlein, estabeleceu a associação entre púrpura e artralgias e em 1874 Henoch acrescenta à síndrome sintomas gastrointestinais e, em 1899, envolvimento renal.1
Esta patologia é particularmente frequente nas crianças estando por isso mais estudada nesse grupo etário.1-3 A incidência anual nas crianças varia entre 3 a 26 por 100000, muito superior à incidência nos adultos, 0,1 a 1,8 por 100000.1
A PHS é uma vasculite sistémica, leucocitoblástica, imunomediada, com acometimento de pequenos vasos.1-4 A maioria dos casos ocorre no Outono ou Inverno, sendo habitualmente precedidos por infeções das vias respiratórias superiores, o que reflecte o papel que alguns agentes infecciosos, desempenham na história natural da PHS.1-4Na fase aguda da PHS há libertação de citocinas pró-inflamatórias não específicas, elevação dos níveis séricos de IgA e infiltração de neutrófilos polimorfonucleares em redor dos vasos.4 Acredita-se que exista uma predisposição genética na génese da PHS, tendo sido identificados genes de susceptibilidade no sistema HLA, mais concretamente HLA-DRB1.1
O diagnóstico de PHS baseia-se em sintomas, sinais e achados histológicos. Os achados clássicos na fase aguda são púrpura palpável não trombocitopénica (frequentemente extremidades inferiores), artralgias/ artrite, dor abdominal e hematúria/ proteinúria.2,5 Histologicamente identificam-se depósitos de IgA na parede vascular.3 Nas últimas décadas têm sido estabelecidos vários critérios de diagnóstico desta síndrome; contudo, são direccionados para a idade pediátrica, carecendo de validação nos adultos, onde são pouco sensíveis para a distinção de outras formas de vasculite, tais como a crioglobulinemia e a poliangeite microscópica.1
Descreve-se de seguida o caso clínico de um indivíduo com diagnóstico de PHS na idade adulta.
CASO CLÍNICO
Homem de 72 anos, caucasiano, sem outros antecedentes patológicos significativos, referenciado a consulta de Medicina Interna por artralgias e lesões purpúricas e petequiais dispersas por toda a superfície corporal. Cinco anos antes da observação na consulta referida, o utente teve o primeiro episódio de lesões tipo púrpura e petéquias nos membros inferiores associadas a astenia. Num período de quatro meses, apresentou agravamento dessas lesões, com extensão a todo o corpo, associadas a artrite dos tornozelos (dor, edema, rubor e calor), náuseas, vómitos e dor abdominal. Neste contexto foi internado no serviço de Medicina. Por persistência de episódios de agudização das artrites e lesões cutâneas, associadas a dor abdominal, dejeções de fezes líquidas e episódios de retorragias e hematoquézias, foi submetido a colonoscopia que mostrou colite inespecífica. Neste contexto considerada a hipótese de doença inflamatória intestinal, e sob orientação de gastroenterologia, iniciou tratamento com azatioprina 150mg id e prednisolona 20-40mg id. Perante ausência de resposta com esquema terapêutico inicial, foi substituída azatioprina por infliximab, mantendo corticoterapia. Verificou-se deste modo resolução da diarreia e retorragias, mantendo-se as lesões cutâneas e artralgias sem progressão. Três anos depois repetido estudo endoscópico do tubo digestivo (incluindo videocápsula), que não revelou alterações compatíveis com doença inflamatória intestinal, sendo suspenso tratamento com infliximab mas mantendo prednisolona 20mg id. Nesta altura orientado para consulta de Medicina Interna.
Após a suspensão de infliximab apresentou agravamento e extensão das artralgias (punhos, cotovelos, joelhos e tornozelos) e persistência de lesões petequiais e purpúricas a nível dos membros inferiores; no entanto, sem recorrência de dor abdominal, retorragias ou hematoquézias. Sem febre, emagrecimento, lesões aftosas mucosa oral, sintomatologia cardíaca, respiratória ou genitourinária.
Na primeira consulta, ao exame físico, o doente estava consciente, colaborante, sem sinais de dificuldade respiratória, normotenso, apirético, auscultação cardíaca e pulmonar sem alterações, abdómen indolor, sem tumefações ou organomegalias, sem adenomegalias palpáveis. Eram evidentes lesões petéquiais e púrpura, entre 2mm e 60mm de diâmetro, palpáveis, indolores, ligeiramente pruriginosas dispersas nos membros inferiores e tronco. Joelho e tornozelo esquerdos com edema, calor, rubor e dor à mobilização.
Analiticamente apenas com discreta elevação de VS (11mm), sem alterações no hemograma, função renal e hepática sem alterações, estudo imunológico (ANA, anticoagulante lúpico, anticardiolipina, antiglicoproteina, complemento, fator reumatóide e crioglobulinas) sem alterações e serologias víricas (HIV, VHC e VHB) negativas. Radiografia do tórax e ecografia abdominal sem alterações.
Realizada biópsia de pele, cujo estudo anatomo-patológico mostrou processo inflamatório polimorfo de padrão perivascular, atingindo preferencialmente vasos de pequeno calibre, de predomínio neutrofílico, sendo esses achados morfológicos compatíveis com vasculite leucocitoblástica. Estudo de imunofluorescência positivo para IgA.
Perante a evidência de uma púrpura vasculítica, não trombocitopénica, associada a oligoartrite migratória, foi considerado como provável o diagnóstico de PHS. Mantida terapêutica com prednisolona, a iniciar desmame gradual, e iniciado tratamento com lansoprazol 20mg id, cálcio+vitaminaD 875/1132 mg id e risedronato 35mg semanal.
Durante desmame de corticoterapia, aquando de prednisolona na dose de 5mg id, é internado por artrite e púrpura generalizadas, náuseas, dor abdominal tipo cólica e hematoquézias. Verificada rápida melhoria clínica com o incremento da dose de corticóide. Nesse internamento realizado estudo digestivo endoscópico, sendo visualizadas na colonoscopia várias sufusões petequiais na mucosa a envolver o íleon terminal e cólon, reto com erosões aftóides, aspectos esses compatíveis com vasculite do cólon, embora o estudo histológico não mostrasse lesões de vasculite. Foi reobservado por gastroenterologia, que considerou tratar-se de doença auto-imune não especificada com envolvimento intestinal. Decidida reintrodução de azatioprina como poupador de corticoide e durante a redução de dose de corticoterapia verificado novo agravamento clínico que motivou internamento. Pela primeira vez foi identificada hematúria microscópica na urinálise.
A presença deste novo dado, associado a vasculite sistémica com atingimento cutâneo, articular e intestinal e biópsia de pele compatível com vasculite leucocitoblastica e depósitos de IgA na imunoflurescência, permitiu estabelecer diagnóstico definitivo de PHS. Iniciado tratamento com metotrexato 10mg/semana, com estabilização da doença durante 3 meses. Entretanto, teve novo episódio de retorragias; e perante recidiva, decidido tratamento com imunoglobulina humana, o que possibilitou desmame lento de corticoterapia e ausência de recidivas durante 5 meses. Perante novo agravamento clínico, com boa resposta a pulso de metilprednisolona EV, foi proposto tratamento com rituximab. Com esta terapêutica obteve-se uma resposta parcial, com registo de 3 episódios de agudização em 6 meses, menos exuberantes. Apesar desta resposta parcial não foi possível desmame de prednisolona, pelo que foi decidido tratamento mensal com 1g de ciclofosfamida. Com este novo esquema decorreram 8 meses sem crises e foi possível redução de prednisolona a 7,5mg id. No fim deste período verificada nova recidiva com agravamento da púrpura, vómitos, retorragias e hematúria macroscópica, com ecografia reno-vesical normal. Fez pulsos de metilprednisolona, com posterior aumento de prednisolona para 20mg/dia e substituição de ciclofosfamida por micofenolato de mofetil (MMF) na dose de 1500mg/dia, o que resultou em estabilidade da doença durante 7 meses. Na sequência de novo desmame de corticoterapia, ao atingir a dose de prednisolona de 7.5mg/dia, reiniciou hematúria macroscópica associada a agravamento da púrpura e artralgias. Apesar do aumento de prednisolona para 40mg/dia e MMF para 2500mg/dia manteve exacerbações da doença e desenvolvimento de doença renal crónica com proteinúria nefrótica. Reiniciou rituximab com melhor controlo de doença, incluindo a redução da proteinúria para a faixa não nefrótica e, a permitindo redução de prednisolona para 12.5mg/dia. Não obstante, desde o reinício do rituximab verificaram-se quatro intercorrências infeciosas: uma cistite aguda por E. coli, uma pneumonia sem isolamento de agente, uma pielonefrite aguda por pseudomonas aeruginosa e uma oriquiepididimite sem agente isolado.
DISCUSSÃO
O caso clínico apresentado demonstra inequivocamente a severidade que a PHS pode ter na idade adulta, contrariamente à idade pediátrica, onde esta patologia é habitualmente auto-limitada e com prognóstico favorável a longo prazo.1,6 Habitualmente, nos adultos, são menos frequentes a dor abdominal e febre, enquanto sintomas articulares se tornam mais prevalentes.1 O envolvimento renal é mais frequente e mais severo nos adultos, comprometendo fortemente o curso da doença.1,6
A dificuldade diagnóstica desta vasculite sistémica nos adultos prende-se com o facto de o quadro clínico não se manifestar em simultâneo, sendo que muitas vezes sintomas como artralgias ou dor abdominal precedem as manifestações cutâneas.6
Dez a 20% dos doentes têm sintomatologia relacionada com o trato gastrointestinal, sendo os mais comuns a dor abdominal tipo cólica, náuseas, vómitos e anorexia.7
A abordagem da PHS no adulto é dificultada pelo facto de não haver correlação entre a apresentação inicial e o prognóstico a longo prazo, bem como pela imprevisibilidade de recorrências. Sabe-se que nos adultos há recidiva da doença em 20% dos casos.1
Quando a púrpura é a única manifestação da PHS, habitualmente a doença é auto-limitada, sendo apenas recomendável tratamento conservador. Por outro lado, quando há evidência de disfunção de órgão, particularmente frequente nos adultos, é recomendada corticoterapia.8 Nos casos de doença severa ou recidivante, recomenda-se tratamento com agentes imunosupressores.9
As recomendações relativamente à escolha do tratamento ideal no adulto são escassas, contrariamente à população pediátrica onde existem guidelines bem definidas. Os doentes refractários à corticoterapia podem ser tratados com agentes como azatioprina, ciclosporina ou ciclofosfamida.8 Alguns trabalhos têm descrito a azatioprina como eficaz no tratamento da nefrite associada a PHS e vasculite leucocitoblástica cutânea no adulto.10 No entanto, nas situações de nefrite glomerular com crescentes, a ciclofosfamida deverá ser o fármaco de eleição.8 Um estudo retrospectivo mostrou benefício na associação de micofenolato de mofetil a baixa dose de prednisolona para indução de remissão nos doentes com PHS e proteinúria moderada.11 Entretanto, perante os resultados pouco satisfatórios com terapêuticas imunosupressores convencionais, têm surgido alguns estudos com novos agentes imunomoduladoras, onde o rituximab parece ter um papel promissor.9
Apesar dos avanços terapêuticos, o prognóstico a longo prazo permanece pouco favorável nos casos com início na idade adulta, com uma taxa de sobrevivência de 74% mas apenas 20% de taxa de remissão completa.8
BIBLIOGRAFIA
1.Audemard-Verger A, Pillebout E, Guillevin L, Thervet E e Terrier B. IgA vasculitis (Henoch-Shönlein purpura) in adults: Diagnostic and therapeutic aspects. Autoimmun Rev. 2015 ; 14(7):579-85.
2.Yang YH, Yu HH e Chiang BL. The diagnosis and classification of Henoch-Schönlein purpura: an updated review. Autoimmun Rev. 2014; 13(4-5):355-8.
3.Hočevar A et al. IgA vasculitis in adults: the performance of the EULAR/PRINTO/PRES classification criteria in adults. Arthritis Res Ther. 2016;18:58
4.Yang YH, Chuang YH, Wang LC, Huang HY, Gershwin M e Chiang BL. The immunobiology of Henoch-Schönlein purpura. Autoimmun Rev. 2008;7(3):179-84
5.Kang Y et al. Differences in clinical manifestations and outcomes between adult and child patients with Henoch-Schönlein purpura. J Korean Med Sci. 2014;29(2):198-203 6.Huang WK et al. Henoch-Schönlein purpura with intussusception in an adult. Am J Med Sci. 2012;344(4):337-97.Kaswala D, Chodos A e Ahlawat S. Henoch-Schonlein Purpura With Gastrointestinal Involvement in an Adult Patient. Gastroenterol Hepatol (N Y). 2016; 12(5):321-3 8.Tanaka Y et al. Effects of Cyclophosphamide Pulse Therapy on the Clinical and Histopathological Findings, Particularly Crescent Formation, in a Patient with Adult-onset Steroid-refractory Henoch-Schönlein Purpura Nephritis. Intern Med. 2015;54(17):2207-119.Pindi Sala T et al. Successful outcome of a corticodependent henoch-schönlein purpura adult with rituximab. Case Rep Med. 2014;2014:619218 10.Fotis L, Tuttle PV, Baszis KW, Pepmueller PH, Moore TL e White AJ. Azathioprine therapy for steroid-resistant Henoch-Schönlein purpura: a report of 6 cases. Pediatr Rheumatol Online J. 2016; 14(1):3711.Han F et al. Mycophenolate mofetil plus prednisone for inducing remission of Henoch-Schönlein purpura nephritis: a retrospective study. J Zhejiang Univ Sci B. 2015; 16(9):772-9.