Introdução
A paralisia do III par craniano é variável e complexa, uma vez que o nervo oculomotor inerva vários músculos extraoculares e transporta as fibras parassimpáticas que inervam o esfíncter da pupila e o corpo ciliar.1,2 Considera-se completa quando envolve a musculatura extrínseca e intrínseca pelo que o olho se apresenta em exotropia, hipotropia, ptose e midríase não reativa.3 Os doentes referem diplopia horizontal, vertical ou oblíqua (consoante a direção do olhar) acompanhada de ptose.3
As características clínicas da paralisia do III par variam consoante a topografia da lesão e podem correlacionar-se com a sua etiologia.3 Topograficamente podem ser centrais ou periféricas. A maioria das lesões centrais é secundária a enfartes vasculares. Mais raramente, podem ser secundárias a tumores, infeções e hemorragias do tronco cerebral.2,3,4 As lesões periféricas também podem ter várias etiologias.3 Uma avaliação clínica minuciosa é fundamental pois pode ser possível prever a localização e a etiologia da lesão e assim orientar o diagnóstico.3
Nas neoplasias do Sistema Nervoso Central (SNC), e particularmente nos linfomas, pela sua natureza rapidamente progressiva, pela potencial irreversibilidade e pelas consequências nefastas com sintomas graves e incapacitantes, está recomendado que o diagnóstico seja feito o mais rapidamente possível.5 As manifestações iniciais do linfoma do SNC mais comuns são: alterações da personalidade, náuseas, vómitos, convulsões, défices neurológicos focais.5 A marcha diagnóstica envolve exames de imagem, punção lombar e biópsia.5,6 A ressonância magnética é dos testes de imagens mais fidedignos na caracterização de lesões do SNC. Apesar dos linfomas não terem um aspeto patognomónico, têm características que pode sugerir o diagnóstico e até predizer a resposta à quimioterapia (grau de integridade da barreira hemato-encefálica).6 A biópsia mantem-se o exame preferencial para o diagnóstico definitivo mas o riscos da técnica limitam muitas vezes a sua utilização, particularmente nos doentes mais idosos.6 Assim, a avaliação do líquido cefalorraquidiano tem uma importância particular: para além de permitir excluir outras hipóteses de diagnóstico (por exemplo infeções do SNC), permite frequentemente o diagnóstico.6 Quando há envolvimento meníngeo, a citologia do liquido cefalorraquidiano poderá evidenciar células neoplásicas, excluindo a necessidade da biópsia.6
Caso Clínico
Mulher, 84 anos, parcialmente dependente, solteira, caucasiana. Antecedentes pessoais de hipertensão arterial estadio 1 (JNC8) e dislipidemia mista, sem lesões de órgão alvo conhecidas, ambas controladas com terapêutica instituída (lisinopril 20mg id, Amlodipina 5 mg id e Sinvastatina 20 mg id).
Recorreu ao serviço de urgência (SU) por ptose incompleta à direita de aparecimento súbito há 1 dia. Negava cefaleia, alterações da força muscular, da sensibilidade, da linguagem e da marcha, ou outras queixas. Ao exame físico, apresentava limitação da adução e midríase, sem mais défices neurológicos. Realizou tomografia computorizada sem contraste que não demonstrou imagens sugestivas de isquemia aguda, apresentava algumas lacunas compatíveis com doença microvascular. Foi avaliada por Neurologia nas urgências, onde foi diagnosticada neuropatia isquémica do III par, tendo alta sob ácido acetilsalicílico 100 mg id e indicação para oclusão alternada dos olhos.
Após 1 semana, recorreu de novo ao SU por agravamento da ptose prévia e ptose de novo do olho contralateral. Referia também cefaleia frontal em pontada, intensidade 7/10, sem fatores agravantes, aliviantes ou precipitantes conhecidos. Acrescia anorexia, astenia e noção de perda ponderal, que não sabia quantificar, com o mesmo tempo de evolução. Ao exame objetivo apresentava-se hemodinamicamente estável, eupneica, sem alterações à auscultação cardíaca ou pulmonar. Ao exame neurológico estava vígil, colaborante e orientada no tempo, espaço e pessoa, sem alterações formais da linguagem ou articulação, com ptose completa à direita e ligeira ptose à esquerda, midríase bilateral, ausência de movimento de adução e infraversão bilateral, sem outras assimetrias faciais, sem alterações da força muscular ou da sensibilidade, com reflexo cutâneo plantar indiferente bilateralmente e sem sinais de irritação meníngea.
No estudo analítico, apresentava hemograma sem alterações, função renal normal (Creatinina 0,54 mg/dL, Ureia 24 mg/dL), ionograma com hiponatrémia (Na 127 mmol/L, K 4,1 mmol/L), DHL 386 UI/L, PCR negativa, exame sumário de urina e sedimento sem alterações. O eletrocardiograma de 12 derivações apresentava-se em ritmo sinusal, sem alterações de relevo. Fez TC CE com angio que mostrava lesão expansiva na região da cisterna suprasselar ligeiramente hiperdensa, com ávida captação de contraste que se prolonga pela haste hipofisária espessada, medindo cerca de 10 mm de maior eixo, lesão semelhante adjacente ao corno frontal do ventrículo esquerdo, com discreto edema do parênquima adjacente e moldagem sobre a parede ventricular, espessamento e realce anómalo de ambos os nervos oculomotores na entrada do seio cavernoso.
A doente foi internada para estudo complementar do qual se realçam: imunofenotipagem de sangue periférico e proteinograma sem alterações, serologias víricas HIV 1/2, HVB e HCV negativas, perfil lipídico sem alterações. Realizou ressonância magnética cranioencefálica, que mostrou evidência de hipersinal difuso no hipotálamo e o quiasma ótico, estruturas espessadas e com restrição à difusão, que se prolongam às fitas óticas (particularmente à direita), assim como ao segmento pré́-quiasmático do nervo ótico direito; hipersinal difuso interessando o corpo caloso, intensa captação de contraste na região optoquiasmática e focos de captação mais ténues no joelho do corpo caloso, captação linear das paredes dos ventrículos laterais, com nodularidades na parede lateral do corno frontal esquerdo (Fig. 1); espessamento e captação dos terceiros nervos cranianos, sobretudo à direita (segmento cisternal), questionando-se espessamento do nervo trigémeo esquerdo e verificando-se foco de captação nodular na glândula pineal (Fig. 2). Realizada punção lombar que mostrou líquor com características inflamatórias, com predomínio linfócitário; citologia com celularidade aumentada, presença de população linfocitária constituída por células intermédias a grandes e imunofenotipagem com presença de linfócitos B monoclonais, de tamanho intermédio, com fenótipo anómalo (CD5+), compatível com envolvimento por Linfoma B; bacteriológico negativo, VDRL e FTA-abs, DNA Borrelia e BAAR negativos. Efetuado TC toraco-abdomino-pélvico para estadiamento que não revelou adenomegalias ou outras lesões suspeitas de malignidade.
Assumido o diagnóstico de Linfoma B com sinais de meningite linfomatosa. Durante o internamento, a doente manteve degradação do estado geral. Foi discutido em equipa multidisciplinar conjuntamente com Neurocirurgia e Hemato-Oncologia, definindo-se, tendo em conta a localização, extensão da doença e estado geral da doente, tratamento paliativo incluindo dexametasona 4mg 12h/12h (posteriormente substituída por Prednisolona 40 mg 1x/dia). A doente veio a falecer 1 mês após a alta hospitalar, em contexto de intercorrência infeciosa com necessidade de reinternamento.
Discussão
A avaliação de uma paralisia isolada do III par com envolvimento pupilar é de suma importância, por poder constituir o primeiro sinal de patologia cujo diagnóstico atempado pode mudar o curso da doença, nomeadamente o aneurisma intracraniano (geralmente da artéria comunicante posterior - ACoP), infeções e neoplasias.3 As manifestações variam conforme a localização das lesões e a etiologia, por isso é importante uma abordagem inicial adequada com conhecimento em neuroanatomia na avaliação nos doentes com alterações neurológicas, para permitir uma melhor investigação diagnóstica.2,3
As lesões do nervo oculomotor podem ser de etiologia central ou periférica. A etiologia central cursa com dois tipos de lesões: as nucleares e as fasciculares. Dentro do primeiro grupo, a lesão isolada do núcleo do oculomotor é rara e geralmente está associada a outros défices neurológicos. Classicamente, caracteriza-se por paralisia unilateral do III par, com achados bilaterais de ptose incompleta e limitação da elevação (devido à inervação cruzada do reto superior e elevador da pálpebra). A pupila pode, ou não, estar atingida conforme o atingimento dos núcleos de Edinger-Westphal. As lesões nucleares podem também causar um envolvimento isolado de um músculo extraocular. As lesões fasciculares provocam paralisias unilaterais completas ou incompletas, são na maioria das vezes acompanhadas por sinais e sintomas neurológicos, que localizam a lesão no mesencéfalo, e originam síndromes clínicos como síndrome de Nothnagel, síndrome de Benedikt, síndrome de Claude e síndrome de Weber.3
As lesões periféricas envolvem predominantemente o espaço subaracnoideu, o seio cavernoso e a órbita. O espaço subaracnoideu é o local mais comum de paralisia isolada do III par. No caso de lesão isquémica, surge disfunção da musculatura extrínseca, quase sempre com função pupilar intacta, dado o atingimento das fibras da motricidade extrínseca mais internas. A compressão aneurismática apresenta-se, caracteristicamente, com disfunção da musculatura extrínseca e intrínseca, sendo o local mais comum a ACoP. Lesões compressivas subaracnoideias podem ocasionalmente poupar a pupila devido à distribuição uniforme da compressão, o que faz com que as fibras pupilomotoras de baixo calibre, localizadas na região mais dorsal do nervo, resistam à lesão por compressão inferior. As lesões inflamatórias, infeciosas e neoplásicas que afetam as meninges causam paralisia do nervo oculomotor geralmente acompanhada de outros défices de pares cranianos. O III par é suscetível ao trauma no espaço subaracnoideu, especialmente durante procedimentos neurocirúrgicos, mas também nos traumatismos crânio-encefálicos.3
A paralisia isolada do III par, envolvendo o seio cavernoso, ocorre numa minoria dos casos e tem etiologia microvascular. Mais frequente, esta associa-se a comprometimento de outros nervos cranianos, tais como o troclear, abducente, ramo maxilar do trigémeo e fibras oculossimpáticas. A combinação de paralisia do oculomotor com síndrome de Horner é quase patognomónica de lesão do seio cavernoso.3 As lesões da órbita apresentam-se geralmente com uma polineuropatia craniana unilateral, envolvendo vários pares cranianos (II, III, IV e VI), associada a proptose e dor.3
Neste caso clínico, os autores apresentam uma paralisia isolada do nervo oculomotor, bilateral, com disfunção da musculatura intrínseca e extrínseca (completa à direita e incompleta à esquerda) secundária a um linfoma, em que a clínica ao contrário do habitual é muito pouco sugestiva quer da localização quer da natureza da lesão.3 Apesar da paralisia isolada do terceiro par craniano ocorrer mais frequentemente no espaço subaracnoideu, uma lesão isolada, bilateral, seria pouco provável nesta topografia, tendo em conta o previamente descrito.3 Por outro lado, a afetação simultânea da musculatura extrínseca e intrínseca praticamente exclui uma lesão isquémica, torna menos provável uma neoplasia e aumenta a suspeição de lesões com crescimento rápido como um aneurisma.2,3 Portanto, no caso clínico apresentado e contrariamente ao descrito na literatura, o exame físico e a TC sem contraste seriam insuficientes para o diagnóstico definitivo desta doente. Coloca-se em destaque a importância da melhor caracterização imagiológica, por TC contrastada e RMN, realizada no internamento de Medicina Interna.4
Tendo em conta os achados imagiológicos e o envolvimento central do espaço subaracnoideu até adjacente ao seio cavernoso, seria de prever uma apresentação com mais défices neurológicos nomeadamente com envolvimento doutros pares cranianos.1
Na abordagem aos doentes que se apresentam com alterações neurológicas e síndrome constitucional, para além do envolvimento direto de lesões, também deve ser considerada a hipótese de fenómenos paraneoplásicos.7 Particularmente, as doenças linfoproliferativas podem provocar disfunção do sistema nervoso periférico através de vários mecanismos com manifestações clínicas, eletrofisiológicas e patológicas diferentes.8 No caso particular do linfoma, o mecanismo de envolvimento neurológico mais frequente é a metastização leptomeníngea que ocorre em 1/3 dos casos, sendo os síndromes paraneoplásicos muito pouco frequentes ocorrendo em menos de 1% dos doentes (os mais descritos no linfoma são angeíte do SNC, encefalite límbica e degeneração cerebelar).7 O síndrome paraneoplásico caracterizado por neuropatia periférica é a manifestação neurológica mais frequente das paraproteinemias como o mieloma múltiplo, mieloma osteoesclerótico e macroglobulinemia de Waldenström.7,8 Por isso, a avaliação de uma neuropatia deve sempre incluir uma eletroforese das proteínas séricas e imunofenotipagem do sangue periférico, tal como foi realizado neste caso clínico, o reconhecimento rápido é importante uma vez que as neuropatias respondem às terapêuticas dirigidas à doença de base (radioterapia e quimioterapia).7,8 Nesta doente, os défices neurológicos devem-se a envolvimento direto pelo linfoma, tanto no parênquima encefálico como diretamente nos nervos oculomotores, como se vê nas imagens de RMN. Neste exame de imagem, é ainda possível excluir os principais síndromes paraneoplásicos relacionados com o linfoma que habitualmente têm características típicas imagiológicas.7
Para o tratamento do linfoma primário do SNC existem várias opções terapêuticas como radioterapia, quimioterapia sistémica (metotrexato, rituximab e temozolomida) e quimioterapia intra-tecal.9 Fatores como a extensão da doença, idade e estado funcional influenciam a escolha da abordagem mais adequada para o doente.10
Apesar da panóplia de tratamentos disponíveis, atualmente o prognóstico do linfoma do SNC é reservado, sendo a cura atingida numa minoria dos casos. Sendo a idade e o status funcional os mais consistentes fatores de prognóstico, e tendo em consideração a neurotoxicidade associada à terapêutica, foi decidido não progredir no tratamento desta doente (Karnofsky Performance Score de 20 pontos), privilegiando as medidas de conforto.9,11
Figura I

Imagem de ressonância magnética obtida em sequências de tempo de repetição longo, após administração de contraste, onde se observa captação linear das paredes dos ventrículos laterais.
Figura II

Imagem de ressonância magnética obtida em sequências de tempo de repetição longo, após administração de contraste, onde se observa hipersinal difuso envolvendo o hipotálamo (seta branca) e captação do terceiro nervo craniano (seta amarela)
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