Introdução:
A tuberculose peritoneal é rara, representando 0,1 a 0,7% de todos os casos de tuberculose, 4 a 10% das formas extrapulmonares e 25 a 60% dos casos de atingimento abdominal.1 Nos Estados Unidos da América, de 1993 a 2006, o atingimento peritoneal registou-se em 4,9% dos casos de tuberculose exclusivamente extrapulmonar e em 2017 foi identificado em 6,2% dos casos (n = 118).2,3 A prevalência em Portugal é desconhecida.
A tuberculose peritoneal é mais comum entre os 25 e os 55 anos, nas mulheres em países em desenvolvimento e nos homens em zonas mais industrializadas - talvez pelo seu peso como força de trabalho entre emigrantes. A peritonite tuberculosa (PT) pode estabelecer-se através de quatro mecanismos principais: reativação de um foco peritoneal latente, disseminação hematogénea de um foco pulmonar ou miliar, invasão direta a partir dum foco intestinal, ganglionar ou das trompas de Falópio e por via linfática a partir de gânglios abdominais.1 A infeção peritoneal conduz inicialmente a uma ascite exsudativa, evoluindo para formas fibroadesivas, nodulares ou caseificantes. Os principais fatores de risco são: cirrose hepática, diálise peritoneal contínua, diabetes mellitus, neoplasias, síndrome de imunodeficiência adquirida e terapêutica imunossupressora. Contudo, existem séries de doentes que não apresentam óbvios fatores de risco.1,4,5
Na maioria dos casos, a PT manifesta-se por um quadro insidioso e arrastado de febre, dor abdominal e ascite. O líquido ascítico é tipicamente um exsudado rico em linfócitos e com um gradiente albumina sérica-ascítica (GASA) < 1,1 g/dL.6
Geralmente, a tomografia computorizada (TC) abdominopélvica revela ascite, adenomegálias, espessamento peritoneal, do omento e mesentérico, aspetos que podem mimetizar carcinomatose peritoneal.1,5-8
A baixa rentabilidade do exame cultural micobacteriológico do líquido ascítico, bem como o tempo até positivar, exigem frequentemente o recurso a laparoscopia ou laparotomia exploradora, cujos dados de visualização direta e colheita de biópsias dirigidas aumentam significativamente a probabilidade do diagnóstico definitivo.4-7
CASOS CLÍNICOS
Caso 1
Homem de 33 anos, Nepalês, residente em Portugal há 8 anos com viagens frequentes ao Nepal. Trabalhador na área da restauração, residia em quarto alugado com um amigo com diagnóstico recente de tuberculose pulmonar. Internado por quadro com 3 meses de evolução de aumento do volume abdominal, anorexia, astenia e febre. A TC toracoabdominopélvica (TAP) revelava: derrame pleural bilateral e pericárdico, conglomerado adenopático retrotraqueal e retrocarinal, volumosa ascite, hipercaptação peritoneal e densificação da raiz do mesentério. No exame cultural da biópsia ganglionar mediastínica isolou-se Mycobacterium tuberculosis (Mt). A biópsia peritoneal obtida por laparotomia mostrou processo inflamatório crónico granulomatoso, com necrose central e raras células gigantes multinucleadas, compatível com tuberculose. A biópsia de gânglio mediastínico evidenciou linfadenite granulomatosa compatível com sarcoidose ou tuberculose. A evolução foi favorável sob terapêutica antibacilar.
Caso 2
Homem de 64 anos, Português, com antecedentes de doença hepática crónica alcoólica. Internado por astenia e ascite. Na TC AP constatava-se: ascite e espessamento peritoneal difuso com sinais de organização/loculação, densificação da gordura subperitoneal, fígado dismórfico sugestivo de cirrose, adenomegálias retroperitoneais e junto do epíploon gastrohepático. A TC Tórax evidenciou quadro parenquimatoso pulmonar sugestivo de etiologia tuberculosa. No exame cultural do lavado broncoalveolar e do líquido ascítico identificou-se Mt. O doente faleceu sem terapêutica antibacilar.
Caso 3
Homem de 30 anos, Nepalês, residente em Portugal há 4 anos, tendo previamente vivido na Índia; desmpregado, residia em casa alugada com irmão e namorada. Internado por anorexia, emagrecimento, aumento do perímetro e dor abdominal e febre. Na TC TAP identificou-se pequeno derrame pleural bilateral, imagem sugestiva de cavitação no lobo inferior direito e ascite. Foi isolado Mt no exame cultural do líquido ascítico e da biópsia peritoneal obtida por laparoscopia, com teste de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) positivo nesta amostra. O Mt era resistente à estreptomicina e isoniazida, sensível a pirazinamida, etambutol e rifampicina. Evolução favorável sob terapêutica antibacilar.
Caso 4
Mulher de 24 anos, natural do Bangladesh, a residir em Portugal há 2 anos, com última viagem ao Bangladesh há 1 ano; empregada em mercearia, vivia com o marido e filha em casa alugada. Internada por quadro com 2 semanas de evolução de febre, emagrecimento e aumento do perímetro e dor abdominal. A TC TAP mostrava volumosa ascite abdominopélvica e densificação do grande epíploon, bem como múltiplas adenopatias em topografia pré-traqueal, cadeias linfáticas dos grandes vasos e infracarinais e, no mediastino anterior, densificação da gordura com micronodularidade, compatível com resquícios clínicos. O TAAN e o exame micobacteriológico do líquido ascítico foram positivos para Mt. Iniciou terapêutica empírica com antibacilares de 1ª linha (Isoniazida, rifampicina, etambutol e pirazinamida); o TSA apresentava sensibilidade a todos os antibacilares de 1ª linha. Houve boa evolução clínica sob terapêutica antibacilar.
Características dos doentes
Após revisão dos processos clínicos entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2018, foram incluídos 3 homens e 1 mulher com idade média de 37,75 anos (24-64 anos), 3 dos quais eram estrangeiros.
Nos antecedentes, 1 doente tinha doença hepática crónica e outro contacto recente com tuberculose. Todos negavam tuberculose no passado. Os três doentes estrangeiros vivam em condições socio-económicas precárias.
Quanto ao quadro clínico, todos apresentavam dor e aumento do perímetro abdominal, febre e ascite, com referência frequente a queixas de astenia, anorexia e emagrecimento.
Na tabela 1 estão referidos os principais resultados analíticos, destacando-se a elevação da velocidade de sedimentação (VS) com média de 66,3 mm na 1ª hora, e da adenosina deaminase (ADA) sérica, com valor médio de 70,8 U/L. A serologia HIV foi negativa nos 4 casos. O líquido ascítico era um exsudado em 3 casos, sendo inconclusivo (exsudado vs. transudado) no doente com doença hepática crónica. Quanto à celularidade, em 2 casos havia um predomínio linfocítico, e em 2 casos de polimorfonucleares. O GASA foi <1,1g/dL em 3 doentes. Os resultados dos exames micobacteriológicos constam na tabela 2. Não foram isolados outros agentes para além do Mt.
O diagnóstico de PT baseou-se na histologia típica numa biópsia peritoneal (caso 1) e no exame cultural micobacteriológico do líquido ascítico (casos 2, 3 e 4), num deles com TAAN positivo (caso 4).
Relativamente aos resultados da TC TAP: todos os doentes apresentavam ascite e espessamento peritoneal, com descrição de adenomegálias retroperitoneais e fígado cirrótico no caso 2. Foram registadas alterações intratorácicas em todos os doentes: derrame pleural em 3 casos, alterações do parênquima pulmonar nos casos 2 e 3, adenomegálias mediastínicas no caso 1 e 4 e densificação da gordura com micronodularidade, compatível com resquícios clínicos no caso 4.
A marcha diagnóstica variou desde um diagnóstico rápido, com recurso a métodos pouco invasivos até necessidade de cirurgia. Foram submetidos a cirurgia diagnóstica 2 doentes, 1 a laparotomia e outro a laparoscopia, ambas sem complicações pós-operatórias. A instituição de terapêutica com 4 antibacilares foi célere nos doentes em que o TAAN na biópsia peritoneal (caso 3) e no líquido ascítico (caso 4) foi positivo, e no caso 1, que apresentou histologia típica na biópsia peritoneal. Em 2 doentes documentou-se tuberculose extraperitoneal: ganglionar intratorácica (caso 1) e pulmonar (caso 2), ambos com exame cultural com isolamento de Mt. Os dados clínicos e imagiológicos sugeriam a forte possibilidade de coexistência de tuberculose pleural nos casos 1 e 2 e de tuberculose pulmonar no caso 3. O Mt era sensível a todos os antibacilares de primeira linha, à exceçãodo caso 3 que era resistente à isoniazida e estreptomicina. O doente que não fez antibacilares (caso 2) foi o único óbito.
Discussão
Nos países industrializados, o atingimento peritoneal é uma forma rara de tuberculose extrapulmonar, que ocorre geralmente em imigrantes de áreas de elevada prevalência.1-3 Na série apresentada, apenas um doente era português, sendo o único com fator de risco relevante para PT: a presença de doença hepática crónica.5 A PT é uma doença subaguda, com evolução insidiosa, de semanas a meses, sendo o quadro clínico dominado pela presença de dor abdominal, ascite e febre.1As alterações hematológicas são inespecíficas. As mais frequentes são anemia normocítica normocrómica, leucograma normal e aumento da VS. O líquido ascítico é habitualmente um exsudado, com pleocitose, que, em cerca de 68% dos casos, é de predomínio linfocítico. No entanto, nos doentes cirróticos e nos insuficientes renais, podem predominar os polimorfonucleares.5,6O GASA é frequentemente < 1,1 g/dL, excetuando-se os casos em que coexiste hipertensão portal, em que o GASA é > 1 g/dL.6 Alerta-se que o doseamento do CA125 sérico ou no líquido ascítico está elevado na maioria dos casos de PT, não tendo interesse diagnóstico, porque está aumentado em quase todos os doentes com ascite, independentemente da causa.6 A TC AP revela frequentemente ascite, com finas septações e um espessamento peritoneal difuso, mais acentuado ao nível do omento.7,8 A coexistência de PT com outras localizações de tuberculose, nomeadamente pulmonar, é variável, tendo-se registado em 3 dos casos apresentados, pelo que se impõe a avaliação imagiológica do tórax.6 A sensibilidade do exame direto do líquido ascítico é muito baixa (0-6%) e o exame cultural raramente é positivo (<20%). A demora de 4-6 semanas para o resultado e a baixa sensibilidade deste exame têm impacto prognóstico com elevada mortalidade.4 O TAAN amplifica o RNA ribossómico das micobactérias e permite a sua rápida deteção. A sua utilidade na PT ainda não está bem estabelecida. A baixa rentabilidade dos exames micobacteriológicos do líquido ascítico exige frequentemente a realização de uma biópsia peritoneal, guiada por TC ou obtida por laparoscopia ou laparotomia. O aspeto macroscópico no peritoneu na laparoscopia é sugestivo de PT em 85-100% dos casos: ascite, nódulos múltiplos amarelados, adesões peritoneais ou viscerais.1,6 As biópsias peritoneais revelam granulomas com caseificação em 76-100% dos doentes, pesquisa positiva de BAAR em 3-25% dos casos e o exame cultural positivo em 38-98%, sendo o papel do TAAN ainda indeterminado.1 A terapêutica preconizada para a PT inclui 2 meses de 4 antibacilares - isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol - e 4 meses dos primeiros dois, sendo controversa a utilização de Corticoterapia.1
O diagnóstico de PT é difícil, devendo ser considerado num quadro arrastado de abdómen distendido e doloroso com ascite, geralmente linfocítica e com GASA <1,1 g/dL. A obtenção de uma biópsia peritoneal, preferencialmente por laparoscopia, é determinante para aumentar a rentabilidade diagnóstica e permitir a exclusão de outras patologias, que podem mimetizar a PT, como a carcinomatose peritoneal e outras peritonites.
Quadro I
Avaliação laboratorial
Parâmetro laboratorial | 1 | 2 | 3 | 4 |
| | | | |
Hemoglobina (g/L) | 11.9 | 11.4 | 11.3 | 13.4 |
Leucócitos (*10^9) | 3990 | 6100 | 5900 | 3700 |
VS (mm/1ª hora) | 70 | - | 64 | 45 |
PCR (mg/dL) | 14 | 44.6 | 62 | 122 |
ADA sérica (U/L) | 72 | 82.8 | 53 | 40 |
AST (U/L) | 67 | 124 | 50 | 30 |
ALT (U/L) | 65 | 51 | 19 | 12 |
Líquido ascítico | | | | |
Leucócitos (células/mcL) | 3280 | 900 | 1800 | 900 |
Predomínio celular | 73% linfócitos | linfócitos | neutrófilos | neutrófilos |
Albumina (g/L) || GASA | 32.4 || 0.87 | 9 || 1.4 | 2.6 || 0.4 | 27.6 || 0.88 |
LDH (U/L) || Razão LDH ascite/soro | 566 || 1.55 | 173 || 0.82 | 628 || 2.23 | 427 || 1.69 |
Conclusão | exsudado | inconclusivo | exsudado | exsudado |
Quadro II
Resultados micobacteriológicos
Amostra | 1 | 2 | 3 | 4 |
| | | | |
Sangue | negativo | negativo | negativo | negativo |
Suco gástrico | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | - | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | - |
Expectoração | - | - | - | BAAR, TAAN e exame cultural negativos |
Líquido pleural | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | - | - | - |
Lavado Broncoalveolar | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | BAAR e TAAN negativos, exame cultural positivo | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | - |
Líquido ascítico | BAAR, TAAN e exame cultural negativos | BAAR e TAAN negativo e exame cultural positivo | BAAR e TAAN negativo e exame cultural positivo | BAAR negativo, TAAN e exame cultural positivos |
Biópsia ganglionar mediastínica | BAAR e TAAN negativo e exame cultural positivo | - | - | - |
Biópsia peritoneal | exame cultural negativo | - | TAAN e exame cultural positivos | - |
BIBLIOGRAFIA
1. KHAN Ahmed. Peritoneal tuberculosis: advances and controversies. Libyan J Med Sci 2018; 2:3-7
2. PETRO H., PRATT R., HARRINGTON T., LO BLUE P., ARMSTRONG L., Epidemiology of extrapulmonary tuberculosis in the United States 1993-2006. Clin Infect Dis 2009; 49:1250-357
3. Reported tuberculosis in the United states 2017https://www.cdc/tb/statistics/report/2017/default.htm
4. CHOW K., CHOW V., HUNG L., WONG S., SZETO C.. Tuberculosis peritonitis - associated mortality is high among patients waiting for the results of micobacterial cultures of ascitic fluid samples. Clin Infect Dis 2002; 35: 409-13
5. SUNTUR B., KUSCU F.. Pooled analysis of 163 published tuberculosis peritonitis cases from Turkey. Turk J Med Sci 2018;48:311-7
6. SANAY F., BZEIZI K. Systematic review: tuberculosis peritonitis - presenting features, diagnostic strategies and treatment. Aliment Pharmacol Ther 2005;22:685-700
7. POYRAZOGLU O., TIMURKAAN M., YALTIZ M., ATASEVEN H., DOGUKAN M., BAHCECIOGLU I. Clinical Review of 23 patients with tuberculous peritonitis: presenting features and diagnosis. J Dig Dis 2008;9:170-4
8. RAMANAN R., VENU V.. Differentiation of peritoneal tuberculosis from peritoneal carcinomatosis by omental rim sign: a new sign on contrast enhanced multidetection computed tomography. European J Radiol 2019; 113:124-34