Introdução
Clostridium difficile é uma bactéria Gram positiva, anaeróbia, formadora de esporos e produtora de toxina, que foi oficialmente renomeada como Clostridioides difficile em 2016.1 Esta bactéria é considerada comensal da microbiota intestinal. Atualmente, a infeção por Clostridium difficile (ICD) tornou-se uma das mais importantes infeções nosocomiais e a principal causa de diarreia associada aos cuidados de saúde, sendo a sua via de transmissão a fecal-oral. Os principais fatores de risco são a exposição a antibióticos (principalmente, cefalosporinas, clindamicina e fluoroquinolonas), idade superior 65 anos e hospitalização prévia.2 A principal barreira protetora contra ICD é a flora microbiota normal, pelo que o seu desequilíbrio tem um papel fulcral na patogénese desta infeção. As manifestações clínicas são muito heterogéneas, e podem variar entre o estado de portador assintomático até uma colite fulminante. Tipicamente, observa-se diarreia aquosa associada a dor abdominal, febre, náuseas, vómitos, astenia e anorexia.3,4
Após o tratamento efetivo de um primeiro evento de ICD, pelo menos um novo episódio ocorre em 10-25%, e é expetável que cerca de 65% dos doentes experienciem mais de uma recorrência desta infeção.5, 6
Relativamente ao tratamento, a Sociedade Americana de Doenças Infeciosas (IDSA) e a Sociedade Americana de Epidemiologia para os Cuidados de Saúde (SHEA) indicam a fidaxomicina e a vancomicina como sendo o principal tratamento das ICDs. A fidaxomicina tem eficácia comparada à vancomicina e em alguns grupos de doentes até superioridade, sobretudo na redução de recorrências.7-9
O TMF (Transplante de Microbiota Fecal) tem apresentado elevadas taxas de prevenção de recorrência da ICD e taxa de eficácia superior a 90%.10Muito recentemente (novembro de 2019) foi publicada no United European Gastroenterology Journal uma metanálise que demonstra a superioridade do TMF. Este fato poderá ser tido em conta nas próximas atualizações mas, por enquanto, a indicação não é fazer TMF em detrimento da antibioterapia.10,11
Caso Clínico
Descrevemos o caso clínico de uma mulher de 84 anos, com os diagnósticos de hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, insuficiência cardíaca e doença renal crónica. Teve internamento prévio por quadro de descompensação destas comorbilidade por pneumonia adquirida na comunidade, tratada com piperacilina com tazobactam e ceftriaxone. Desenvolveu ICD nosocomial (um dia após o término da antibioterapia com ceftriaxone) tratada com vancomicina (125mg por via oral 4id durante 10 dias), com resolução dos sintomas.
Foi readmitida 14 dias após a alta, com a primeira recorrência da ICD e nova descompensação das suas múltiplas comorbilidades, tendo repetido o tratamento com vancomicina, 125mg por via oral 4id durante 14 dias, seguido de um esquema de desmame (2i durante 7 dias, seguida de id durante 7 dias e por fim 1id de 2 em 2 dias por 4 semanas e 1id de 3 em 3 dias por 4 semanas). Foi novamente readmitida 15 dias após a alta com nova recorrência e instituída fidaxomicina, 200mg por via oral 2id durante 10 dias, com melhoria clínica. No entanto, posteriormente, teve recorrência de sintomas no mesmo internamento (7 dias após o término do ciclo anterior de antibioterapia) e, dado o internamento prolongado, a debilidade causada pela ICD e a ineficácia do tratamento antibiótico, foi decidido proceder a um TMF com dador familiar saudável. Foi feito o estudo microbiológico das fezes e estudo serológico (serologias para vírus da imunodeficiência humana, vírus da hepatite B, vírus da hepatite C e Treponema pallidum). Após recolha do material do dador, fez-se a preparação da amostra de fezes. O transplante fecal foi realizado por colonoscopia, instilando-se um total de 50cc da suspensão de fezes no íleo terminal, cego, cólon ascendente, cólon transverso, cólon descendente e cólon sigmoide, respetivamente, poupando-se o reto, para evitar urgência defecatória. Após a realização do transplante fecal, verificou-se uma rápida resolução do quadro clínico (nos 2 dias seguintes). Teve alta 10 dias após o procedimento, com normalização do trânsito intestinal. Manteve seguimento em consulta durante cerca de 6 meses, sem evidência de novo quadro de diarreia.
Discussão
Atualmente, o TMF tem-se vindo a mostrar uma terapêutica promissora na abordagem de ICD. O primeiro caso de TMF utilizado no tratamento de uma ICD recorrente ocorreu já no final do século XX, em 1983.12 Nos últimos anos desenvolveram-se numerosos estudos que comparam o tratamento das ICDs com vancomicina versus o tratamento com terapêutica não farmacológica através do TMF.
Um estudo randomizado comparou a eficácia do TMF com vancomicina, mostrando que 90% dos doentes tratados com TMF, após uma a três colonoscopias, ficaram curados. Em contrapartida, no grupo da vancomicina, apenas 26% tiveram resolução do quadro.13 Assim sendo, este estudo corrobora a elevada eficácia do TMF no tratamento da ICD recorrente, o que vai de encontro às recomendações publicadas em 2013 pela Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infeciosas, que declaram que o TMF apresenta nível de evidência “A” no tratamento destas infeções.14
Um estudo coorte retrospetivo mais recente envolveu 111 doentes com ICD severa. Destes doentes, 66 foram tratados com TMF e 45 foram tratados com antibioterapia, sem TMF. É de salientar que a taxa de mortalidade aos 3 meses foi de 42,2% nos doentes tratados com antibiótico e de 12,1% nos doentes tratados com TMF, com significância estatística apenas nos casos de ICD severa.15
Para além de reduzir a mortalidade nos casos de ICD severa, o TMF mostrou ser uma opção terapêutica, com altas taxas de eficácia e com reduzidas complicações. A ocorrência de complicações mais graves é pouco frequente e, normalmente, estão relacionadas com o procedimento endoscópico (hemorragias gastrintestinais, perfuração e pneumonia de aspiração). O procedimento poderá ser realizado por via endoscópica alta ou por colonoscopia. Quando a abordagem é feita via trato gastrintestinal superior, a instilação é feita ao nível do duodeno distal. A instilação de um menor volume de preparado fecal também pode ser feita através de uma sonda nasogástrica, nasoduodenal ou nasojejunal. Quando o TMF é feito via trato gastrintestinal inferior, a instilação é feita ao nível do íleo terminal, cego, cólon ascendente, cólon transverso, cólon descendente e sigmoide. Estes procedimentos são igualmente eficazes e seguros polo que a abordagem preferencial fica ao critério do endoscopista. No entanto os efeitos a longo prazo não estão totalmente elucidados, pelo que se recomenda follow-up destes doentes.
Tendo em conta o quadro clínico apresentado e as recomendações atuais, a equipa médica foi da opinião que esta doente teria indicação na realização deste procedimento, tendo em conta o seu nível de eficácia e o custo-benefício, tendo sido o primeiro TMF a ser realizado neste centro hospitalar.
Conclusão
A ICD tem proporções crescentes, consequência do uso indiscriminado de antibióticos numa população cada vez mais idosa. A terapêutica não farmacológica, nomeadamente o TMF, deve ser um tipo de terapêutica a ter cada vez mais em conta, devendo ser aplicada a pacientes criteriosamente selecionados.
BIBLIOGRAFIA
Referências
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