Introdução:
A prevalência de agentes multirresistentes continua a aumentar a nível mundial e está associada a importante morbi-mortalidade, constituindo uma grave ameaça à saúde pública. Geralmente, estes afectam doentes em meio hospitalar onde a exposição a antibióticos e a dispositivos invasivos, associada a factores intrínsecos do hospedeiro, funcionam como factores de risco para a sua aquisição. Contudo, nas últimas duas décadas, a explosão de genes de resistência antibiótica em elementos genéticos móveis como os plasmídeos, capazes de uma disseminação eficaz entre diferentes bactérias e hospedeiros, contribuiu para o registo da presença desses agentes na comunidade. 1
Na grande família das enterobacteriáceas tem-se assistido à frequente produção de β-lactamases de espectro alargado (ESBL) com o consequente aumento do consumo de carbapenemos. Este facto veio favorecer a emergência de enterobacteriáceas resistentes aos carbapenemos (ERC). 2
Esta resistência é causada por dois mecanismos principais: primeiro, a produção de ESBL ou de cefalosporinases associada a mutações das porinas, família de proteínas da membrana externa de agentes Gram negativo e, segundo, a produção das enzimas carbapenemases que por si só conferem resistência, sem necessidade de mutações cromossómicas adicionais ou outros mecanismos acessórios. 1, 3
Em 2015, foi revista pelo Center for Disease Control and Prevention a definição de ERC: qualquer enterobacteriácea resistente (excluindo a resistência intermédia) a qualquer carbapenemo ou produtora de carbapenemase. Para as enterobacteriáceas com susceptibilidade intrínseca diminuída ao carbapenemo (ex: Proteus mirabilis, Morganella morganii) é necessário que sejam resistentes a outro carbapenemo para além do imipenemo. 2
A nível mundial, a resistência das enterobacteriáceas aos carbapenemos deve-se principalmente à produção de carbapenemases, sobretudo da KPC, sendo o agente mais atingido a Klebsiella pneumoniae (KP). A produção de NDM é particularmente frequente na India, Paquistão e Bangladesh, estando a emergir noutros países asiáticos. Na Europa, a produção de NDM atinge sobretudo a KP e é mais frequente na Roménia, Polónia, região dos Balcãs, Grécia, Turquia e Itália, país onde muito recentemente foi identificado um surto de KP produtora de NDM. 1, 2, 4
Os registos europeus de E. coli produtora de NDM são esporádicos, desconhecendo os autores descrição em Portugal de infecção a este tipo de agente que apresenta importantes desafios terapêuticos.
Caso Clínico
Mulher de 42 anos, natural do Bangladesh, a residir em Portugal há 3 semanas. Apesar da importante barreira linguística, foi possível apurar antecedentes de cólicas renais, diabetes mellitus e colecistectomia. Referia internamento recente num hospital de New Delhi por “infecção renal”. Medicada habitualmente com insulina e metformina. Recorreu ao serviço de urgência por lombalgia direita e febre (39ºC). Apresentava-se taquicárdica, normotensa, sem dificuldade respiratória, bem oxigenada, normoventilada e sem hiperlactacidémia. No exame físico, a destacar palpação abdominal dolorosa nos quadrantes direitos e hipogastro, sem defesa e presença de Murphy renal à direita. Analiticamente registava-se leucocitose neutrófila (20.450 leucócitos/mm3 e 88.4% de neutrófilos), glicémia de 299mg/dL, clearance de creatinina de 85mL/min, natrémia de 130mEq/L e PCR de 114mg/L. A ecografia renal mostrou: rim direito de dimensões aumentadas e densidade heterogénea, com densificação da gordura peri-renal, rim esquerdo de menores dimensões com entalhes no contorno de aspecto sequelar e litíase renal bilateral, não obstrutiva. Foi instituída antibioterapia empirica com ceftriaxona, posteriormente modificada para colistina e tigeciclina, perante o isolamento em hemoculturas e urocultura de E. coli produtora de NDM, sensível apenas aqueles antibióticos e à gentamicina.
Posteriormente surge um quadro de náuseas, vómitos e dor epigástrica e nos quadrantes abdominais direitos, tendo a tomografia computorizada abdomino-pélvica confirmado os achados descritos na ecografia renal. Após 14 dias de antibioterapia dirigida, teve alta sem internamentos subsequentes.
Discussão
Na maioria dos países europeus, a aquisição e disseminação de enterobacteriáceas produtoras de NDM estão associadas a internamentos hospitalares. A KP é o agente mais afectado. 4-8 Os produtores de NDM são geralmente transmitidos através da movimentação de indivíduos colonizados ou infectados entre o subcontinente indiano, considerado o reservatório original, e o resto do mundo, sendo o Médio Oriente e a região dos Balcãs, considerados como reservatórios secundários. 2, 9
Em relação à E. coli, cuja resistência aos carbapenemes é na Europa inferior a 1% nos isolamentos invasivos, a situação é particularmente preocupante porque foram identificadas fontes ambientais no subcontinente indiano (água potável, sistema de esgotos). Neste contexto, podem causar infecções adquiridas na comunidade, por transmissão oro-fecal através da cadeia alimentar, atingindo indivíduos oriundos de áreas endémicas, mesmo os que não estiveram internados ou sob antibioterapia. 2, 8, 9
O turismo médico na Índia introduziu os primeiros casos de enterobacteriáceas produtoras de NDM na europa ocidental. Actualmente, a visita àquela área endémica com ou sem internamentos, constitui por si só, um risco de aquisição. 4-7
No caso presente, a colheita de amostras para exame microbiológico e a capacidade técnica do laboratório de identificação de produtores de diferentes tipos de carbapenemases permitiu dirigir a antibioterapia.
A antibioterapia para bactérias Gram negativas produtoras de carbapenemases é muito controversa, passando, nomeadamente, por doses elevadas de associações de carbapenemos, apesar da documentada resistência in vitro e do elevado risco de emergência de ERC com o consumo desta classe de antibióticos. 10, 11 Se em relação aos produtores de KPC surgiu recentemente um novo antibiótico eficaz, a ceftazidima/avibactam, este não é eficaz contra as metalo-β-lactamases como as do tipo NDM.
As enterobacteriáceas produtoras de NDM são resistentes a todos os β-lactâmicos, incluindo frequentemente o aztreonam, através da produção de β-lactamases de espectro alargado. No entanto, são geralmente susceptíveis à colistina e à tigeciclina, que devem ser utilizadas em combinação nas infecções graves a produtores de NDM com escassas alternativas terapêuticas. Recomendam-se doses elevadas de colistina (9 milhões de unidades/dia para uma função renal normal) e de tigeciclina (dose de carga de 200mg e dose de manutenção com 100mg de 12/12h). A colistina tem uma eficácia incerta nas pneumonias e tem risco de toxicidade renal e neurológica. A tigeciclina é um bacteriostático, eficaz nas infecções tecidulares, mas menos útil nas bacteriemias, dada a preferencial distribuição intracelular, e nas infecções urinárias, dados os baixos níveis urinários. 9-12
As medidas de prevenção e controlo da transmissão das ERC são de particular importância. Existem orientações internacionais e nacionais, muito difíceis de implementar, sobretudo em países de baixos recursos como Portugal. 13, 14 Actualmente, na maior parte da população hospitalar, não temos condições logísticas e financeiras para rastreio de colonização intestinal de enterobacteriáceas produtoras de carbapenemases. O rastreio deve ser ponderado para os doentes de especial risco, como os internados em unidade de cuidados intensivos, unidades de hematologia e transplantados.14
É fundamental o cumprimento da higiene das mãos e das precauções de contacto desde a admissão de doentes com factores de risco para colonização/infecção a agentes multirresistentes.13, 14 Os constrangimentos estruturais, financeiros, de recursos humanos e de equipamentos podem, por vezes, limitar o cumprimento de todas as precauções de contacto. Caso a caso, devem ser implementadas as que são exequíveis, nomeadamente o uso de equipamento de protecção individual no contacto com o doente, intensificar as medidas de limpeza e desinfecção das estruturas ambientais e limitar, se possível, as movimentações do doente na instituição.
A infecção a E. coli produtora de NDM é rara. No centro hospitalar onde esteve internada a doente apresentada, e que tem aproximadamente 1050 camas de adultos (excluídas camas de maternidade), apenas se registaram em 2 anos (2017-2018) dois isolamentos de enterobacteriáceas produtoras de NDM: a E. Coli do caso presente e uma Providencia stuartii isolada num exsudado de úlcera de decúbito.
A frequência crescente de agentes multirresistentes obriga a comunidade médica a um elevado grau de exigência e rigor no diagnóstico de infecções e na utilização criteriosa de antibióticos.
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