Introdução
A Síndrome Hemolítica Urémica (SHU) é uma entidade rara no adulto caracterizada pela tríade: anemia hemolítica microangiopática, trombocitopenia e lesão renal aguda.1,2 Tradicionalmente, a SHU é classificada de duas formas: a SHU típica, que ocorre com mais frequência em crianças e é principalmente causada por infeções entéricas causadas por bactérias produtoras da toxina Shiga; e SHU atípica (SHUa), que está associada em 50-60% dos casos a mutações nos genes do sistema do complemento e tem pior prognóstico, evoluindo na maioria dos doentes com doença renal crónica (DRC) terminal. O prognóstico nestes casos é reservado, com alta mortalidade e morbilidade na fase aguda da doença. Etiologicamente pode encontrar-se associada a infeção por Escherichia Coli produtora de verotoxina ou ter uma causa genética, autoimune, neoplásica, relacionar-se a um status pós-transplante ou à gravidez.2 É atribuída a designação SHU atípico (SHUa) quando não é encontrada uma causa secundária (infeção, fármacos, autoimunidade, malignidade, etc.). A SHUa é vista em 5% a 10% dos casos de SHU, podendo ocorrer em qualquer idade e ser esporádica ou familiar. Associa-se a uma desregulação do sistema do complemento (hereditária ou adquirida), a qual pode resultar da mutação de genes do complemento per si ou de alteração da função de outros agentes, como acontece no défice de metabolismo de cobalamina C, mutação do DGKE e na produção de anticorpos anti fator H.3 O crescente conhecimento da patogénese da SHUa (hiperativação da via alterna do complemento) foi acompanhado pelo aparecimento de um fármaco, eculizumab, que age como inibidor da via final do complemento.
Caso clínico
Relata-se o caso de uma doente com SHUa que apresentou resposta clínica e laboratorial com o uso de eculizumab. Mulher de 35 anos, operária fabril, sem antecedentes patológicos de relevo ou medicação crónica. Recorreu ao serviço de urgência por lipotimia após uma dejeção diarreica única, sem sangue, exsudado purulento ou muco. Da revisão de aparelhos e sistemas apresentava náuseas e vómitos, equimoses espontâneas, cataménio abundante e astenia progressiva com 12 dias de evolução e noção de redução da diurese desde o dia anterior. Objetivamente apresentava-se pálida, febril (38ºC), hipertensa (TA 170/100 mmHg) e em oligoanúria (diurese no momento de algaliação: 0 cc). O exame neurológico sumário à admissão era normal. Dos exames complementares de diagnóstico destacava-se: anemia hemolítica não autoimune (Hb 4.6 g/dL, reticulócitos 10%, hiperbilirrubinemia indirecta 1.67/2.26 mg/dL, DHL 2859 U/L, haptoglobina < 8 mg/dL, prova de coombs direta e indireta negativas e C3 ligeiramente diminuído-63), trombocitopenia (59000/uL) e lesão renal aguda (creatinina 10.5 mg/dL e ureia 217 mg/dL). Entre os achados laboratoriais negativos são de destacar a ausência de leucocitose, de distúrbios metabólicos e iónicos, de insuficiência respiratória e PCR baixa (16.4 mg/dL). A urina tipo II apresentava eritroproteinúria (eritrócitos >300/uL e proteínas >400 mg/dL) e o TC toraco-abdomino-pélvico não mostrava alterações de relevo. Iniciou suporte transfusional, fluidoterapia e corticoterapia sistémica. Estabelecido o diagnóstico provável de SHU a doente foi transferida para a Nefrologia onde iniciou hemodiálise, plasmaférese e antibioterapia empírica com quinolona. Do estudo etiológico destacou-se o consumo de complemento e a deteção de uma variante missense patogénica homozigótica em C3. O restante estudo imunológico e microbiológico foi negativo. Atendendo à etiologia genética assumiu-se SHU atípica, ainda que uma infeção por E.Coli possa ter sido o trigger ad initium (ocorre em 25-30% dos casos). Não foi possível a pesquisa de E. Coli enteropatogénica por resolução da clínica gastrointestinal sob ciprofloxacina. A doente iniciou eculizumab e evoluiu com melhoria clínica progressiva apesar de necessitar de técnica de substituição da função renal (TSFR) pelo menos nos 5 meses que sucederam ao diagnóstico.
DISCUSSÃO
Apresenta-se um caso de SHUa raro pela idade de apresentação, pela ausência de história familiar e também porque a mutação de C3 não é a causa genética mais prevalente de SHUa associado a alterações do complemento.4 Expõe-se este caso com intuito de salientar a importância do diagnóstico e tratamento precoces, bem como a determinação de um follow up apertado, uma vez que a SHUa no adulto é uma entidade grave e de mau prognóstico. Cerca de 50% dos doentes progridem para DRC end-stage, o que acontece em 60-80% dos casos particulares com mutação em C3. No caso particular desta mutação, a taxa de recorrência é de 50%.5 No caso da doente apresentada verificou-se progressão para DRC terminal, com necessidade de TSFR. O eculizumab é um anticorpo monoclonal humanizado, inibidor do complemento que tem sido utilizado em doentes com SHUa em ensaios clínicos, demonstrando acelerar a normalização hematológica e melhorar a função renal, protegendo-a a longo prazo.6
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA
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