Introdução A anemia megaloblástica, pertencente ao grupo das anemias macrocíticas [volume globular médio (VGM) >100 fL], é causada por defeitos na síntese de DNA dos percursores hematopoiéticos dos eritrócitos.
1, 2 A assincronia entre a maturação do núcleo e o citoplasma dos eritroblastos, promove o surgimento de células com núcleos grandes e imaturos relativamente ao citoplasma.
1, 3 Entre as causas mais comuns de anemia megaloblástica surge a deficiência de vitamina B12 (cobalamina) ou ácido fólico.
1, 2, 4 No que concerne à vitamina B12, esta é sintetizada exclusivamente por microrganismos e a única fonte para o ser humano é a ingestão de alimentos de origem animal.
3, 5 As causas para a deficiência de vitamina B12 dividem-se em secundárias a má absorção (nomeadamente a anemia perniciosa) ou a ingestão dietética insuficiente.
1-3, 6 O seu défice, além de ser causa de anemia, poderá também originar neuropatia, atendendo à participação da vitamina B12 no processo de mielinização do sistema nervoso central.
2 A prevalência do défice de vitamina B12 varia consoante a região geográfica avaliada, sendo mais frequente em regiões como a América central, do Sul, ou em alguns países africanos.
5Descrição do caso
Homem de 37 anos, autónomo e técnico informático. Apresentava queixas de astenia, com aproximadamente 3 meses de evolução e de agravamento progressivo. Negava outra sintomatologia constitucional como perda ponderal ou hipersudorese noturna. Negava também perdas hemáticas visíveis ou qualquer outra queixa na revisão por aparelhos e sistemas, nomeadamente do foro cardiovascular, respiratório, genitourinário ou gastrointestinal. Realizou um hemograma em ambulatório solicitado pelo médico assistente que revelou um valor de hemoglobina de 6.0 g/dL (VGM 117 fL), motivo pelo qual foi encaminhado ao Serviço de Urgência
Apresentava como antecedentes relevantes gastrite crónica atrófica, diagnosticada por endoscopia digestiva alta um ano antes, com exame histológico a referir lesões com atividade ligeira e atrofia moderada, metaplasia intestinal, sem displasia associada e Helicobacter pylori negativo. Relativamente aos hábitos e estilos de vida, destacava-se uma dieta estritamente vegetariana desde há 2 anos. Negava hábitos tabágicos, alcoólicos ou toxifilicos. Não se encontrava medicado cronicamente.
Ao exame objetivo, apresentava uma pressão arterial de 111/60 mmHg, frequência cardíaca de 71 bpm, frequência respiratória de 16 cpm e temperatura timpânica de 36,2ºC. Salientava-se lentificação psicomotora e a presença da pele e mucosas pálidas e escleróticas ictéricas. O restante exame físico não apresentava alterações de relevo, nomeadamente em ternos neurológicos.
A avaliação laboratorial evidenciou a presença de anemia macrocítica (Hemoglobina: 6.2 g/dL; VGM 119.1 fL; Hematócrito 16.8%), com contagem de reticulócitos de 0.9% (contagem absoluta de 0,4 x 10^12 e um índice de 0,15), esfregaço de sangue periférico com presença de macroovalócitos, neutrófilos com núcleos hipersegmentados e alguns esquizócitos. O doseamento de vitamina B12 era inferior a 80 pg/mL (N: 189-883 pg/mL) e o ácido fólico e ferritina estavam normais. Apresentava ainda haptoglobina indoseável (<8mg/dL), hiperbilirrubinemia à custa da indireta (bilirrubina total 1.87 mg/dL; bilirrubina direta 0.63 mg/dL; bilirrubina indireta 1.24 mg/dL) e aumento da desidrogenase do lactado (DHL) (2166 U/L). As restantes séries no hemograma bem como a função renal, hepática e tiroideia encontravam-se dentro da normalidade. O teste de Coombs foi negativo e o exame de imagem abdominal (tomografia computorizada) não evidenciou organomegalias nem adenopatias. O exame sumário de urina não apresentava alterações relevantes. Foram efetuadas pesquisas de anticorpos anti-células parietais gástricas e anti-fator intrínseco, ambos positivos, permitindo estabelecer o diagnóstico de anemia perniciosa (AP).
O doente teve alta medicado com cianocobalamina intramuscular, inicialmente diário e posteriormente semanal. Foi reavaliado 1 mês após a alta e apresentava resolução do quadro de astenia. Analiticamente, a hemoglobina encontrava-se em recuperação (Hb 11.9 g/dL; VGM 101 fL; hematócrito 40%), o esfregaço de sangue periférico demonstrava apenas raros macroovalocitos e raros neutrófilos com núcleos hipersegmentados e apresentava normalização dos indicadores de hemólise (nomeadamente DHL, haptoglobina e bilirrubinas).
Discussão
A AP é uma causa de anemia megaloblástica por má absorção, associada a gastrite atrófica crónica tipo A. 7 Apresenta uma incidência discretamente superior nas mulheres caucasianas (1:1.6), preferencialmente no grupo etário entre os 70 e os 80 anos, sendo que apenas uma pequena percentagem dos doentes apresenta uma idade inferior a 40 anos.1, 5 O défice de vitamina B12 nesta patologia surge pela diminuição do fator intrínseco (proteína que se conecta à cobalamina proveniente da dieta e promove o seu transporte para o íleo terminal onde é absorvida).7-9 Esta deficiência constitui uma consequência da presença de gastrite atrófica do corpo gástrico, que resulta na destruição da mucosa oxíntica e consequente perda de células parietais, acloridria e redução do fator intrínseco.7-9 A natureza autoimune do processo da atrofia gástrica é fundamentada pela presença de autoanticorpos dirigidos ao fator intrínseco bem como às células parietais, que impedem a formação do complexo cobalamina-fator intrínseco e, consequentemente, condicionam a sua absorção.5, 7, 9 Efetivamente, a AP é considerada comumente sinónima de gastrite autoimune, por se julgar ser a fase final de um processo de autoimunidade que culmina na destruição da mucosa gástrica oxíntica.7 Para além disso, associa-se também frequentemente a outras doenças autoimunes como a tiroidite autoimune, diabetes mellitus tipo 1 e vitiligo.1, 5, 6, 10
No presente caso, o doente apresentava anemia macrocítica associada a um esfregaço de sangue periférico com identificação macroovalócitos e neutrófilos com núcleos hipersegmentados, fortemente sugestivo de uma anemia megaloblástica por deficiência vitamina B12.3, 6, 10 Outras causas de macrocitose como alcoolismo, mielodisplasia ou iatrogenia farmacológica foram excluídas.4, 6 Os antecedentes de gastrite crónica atrófica e a evidência de deficiência grave de vitamina B12 tornavam o diagnóstico de anemia perniciosa o mais provável, tendo sido posteriormente confirmado com a positividade dos anticorpos anti-célula parietal e anti-fator intrínseco.2, 7, 10 Por outro lado, a dieta estritamente vegetariana também contribuiu para este défice, devido à não ingestão de alimentos de origem animal, única fonte dietética de cobalamina.3
Por concomitância, a hiperbilirrubinémia à custa da fração indireta, o aumento da DHL, a redução da haptoglobina e a presença de alguns esquizócitos no sangue periférico sugeria a existência de processo hemolítico associado.2, 11 De facto, a anemia hemolítica secundária ao défice de vitamina B12 é infrequente, principalmente quando presente ao diagnóstico, sendo o fenómeno da hemólise intramedular por eritropoiese ineficaz a sua causa mais frequente neste quadro clínico.2, 11 Ainda assim, a literatura sugere também que possa existir um componente de hemólise extramedular intravascular atendendo a que a carência de cobalamina origina hiperhomocisteinemia, o que influencia negativamente a função celular dos diferentes tecidos, desde o endotélio vascular ao músculo liso das células hematológicas, com o subsequente processo microangiopático.2, 4, 11, 12
Conclusão
O presente trabalho visa expor um caso de anemia megaloblástica por défice de vitamina B12 causado por uma associação de duas causas: anemia perniciosa e vegetarianismo, o que terá contribuído para a sua exuberante apresentação. Para além disso, destaca-se ainda a infrequente apresentação de anemia perniciosa nesta faixa etária e a possibilidade da presença de anemia hemolítica na apresentação de um quadro de deficiência de vitamina B12 grave, factos que requerem um elevado grau de suspeição para o diagnóstico.
BIBLIOGRAFIA
Referências bibliográficas
1. Kasper DL, Fauci, A. S., Hauser, S. L., Longo, D. L. 1., Jameson, J. L., & Loscalzo, J Harrison´s principles of internal medicine (20th edition.)(2015).
2. Waheed M, Elzouki A. Vitamin B12 deficiency presenting as hemolytic anemia. Libyan Journal of Medical Sciences. 2018;2(3):114-5.
3. Green R. Vitamin B12 deficiency from the perspective of a practicing hematologist. Blood. 2017;129(19):2603-11.
4. Gladstone E. Pernicious Anemia Presenting With Pancytopenia and Hemolysis: A Case Report2019.
5. Bizzaro N, Antico A. Diagnosis and classification of pernicious anemia. Autoimmunity reviews. 2014;13(4-5):565-8.
6. Wolffenbuttel BHR, Wouters HJCM, Heiner-Fokkema MR, van der Klauw MM. The Many Faces of Cobalamin (Vitamin B(12)) Deficiency. Mayo Clin Proc Innov Qual Outcomes. 2019;3(2):200-14.
7. Lahner E, Annibale B. Pernicious anemia: new insights from a gastroenterological point of view. World J Gastroenterol. 2009;15(41):5121-8.
8. Toh BH. Pathophysiology and laboratory diagnosis of pernicious anemia. Immunologic research. 2017;65(1):326-30.
9. Kulnigg-Dabsch S. Autoimmune gastritis. Wien Med Wochenschr. 2016;166(13-14):424-30.
10. Bunn HF. Vitamin B12 and Pernicious Anemia — The Dawn of Molecular Medicine. New England Journal of Medicine. 2014;370(8):773-6.
11. Cheema A BJ, Bajwa R, Hossain MA, Asif A Hemolytic Anemia an Unusual Presentation of Vitamin B12 Deficiency. J Hematol Thrombo. 2018;Dis 6: 285. .
12. Acharya U, Gau J-T, Horvath W, Ventura P, Hsueh C-T, Carlsen W. Hemolysis and hyperhomocysteinemia caused by cobalamin deficiency: three case reports and review of the literature. J Hematol Oncol. 2008;1:26-.