Introdução: O plasmocitoma é um tumor maligno raro com incidências descritas de 0,078/1000001 a 0,34/1000002 pessoas/ano, representando menos de 5% das discrasias de plasmócitos1, que resulta da proliferação monoclonal de plasmócitos produtores de imunoglobulinas (Ig). Existem dois tipos principais que são o plasmocitoma ósseo, que corresponde a 2/3 dos casos e se localiza predominantemente no esqueleto axial, e o plasmocitoma extra-medular (PEM) que corresponde a cerca de 4% dos distúrbios dos plasmócitos.2,3 A localização mais frequente dos PEM é a cavidade nasal ou nasofaringe2,4 e os principais sinais são epistaxis, rinorreia e obstrução nasal. O diagnóstico é estabelecido por exame histológico da lesão que apresenta infiltração monoclonal de plasmócitos e pela exclusão de envolvimento sistémico e lesão de órgãos-alvo. Dois terços dos doentes são do género masculino e a idade média ao diagnóstico situa-se entre os 55 e os 60 anos de idade.1,2 A etiologia é desconhecida, mas considera-se provável a estimulação crónica da mucosa do trato aéreo e digestivo por irritantes inalados ou infeções víricas.2 O Mieloma Múltiplo (MM) é uma neoplasia de plasmócitos monoclonais que representa mais de 10% das neoplasias hematológicas, com uma incidência de 4/100000 pessoas/ano2, sendo mais frequente em homens com mais de 65 anos. O diagnóstico implica uma infiltração de plasmócitos clonais na medula óssea (MO) superior a 10% ou evidência histopatológica de plasmocitoma extra-medular associado a disfunção de órgãos-alvo condicionada pela infiltração (anemia, hipercalcemia, lesões ósseas osteolíticas, lesão renal) ou um dos seguintes biomarcadores de malignidade: infiltração da MO >60% de plasmócitos, relação entre cadeias leves livres séricas envolvida/não envolvida >100, desde que a cadeia leve livre seja >100 mg/L, ou mais do que uma lesão focal óssea em ressonância magnética nuclear (RMN).5 Caso clínico: Apresentamos o caso de um homem de 58 anos, fumador, com consumos etílicos moderados e antecedentes de duas infeções respiratórias baixas nos 6 meses prévios. Recorreu ao serviço de urgência por dispneia, febre, tosse produtiva com expetoração amarela espessa com três dias de evolução e queixas de toracalgia direita posterior. Foi internado por pneumonia pneumocócica bilateral e derrame pleural bilateral de pequeno volume a condicionar insuficiência respiratória hipoxémica, associado a bacteriemia a Streptococcus Pneumoniae, anemia macrocítica (10,2g/dL, VGM 105fl) e lesão renal aguda (Cr 1,4mg/dl). Foi instituído tratamento que incluiu oxigénio, antibiótico e soroterapia. Apresentou melhoria progressiva dos sintomas mas referia manutenção da dor torácica posterior a nível da grade costal, diária, mais intensa durante a noite, sem melhoria significativa com paracetamol, referindo alguns meses de evolução. Apresentou agravamento progressivo do estado neurológico com sonolência e lentificação do discurso. Na realização do exame físico observou-se epistaxis em reduzida quantidade pela fossa nasal direita e referiu episódios esporádicos de epistaxis ligeira, sensação de obstrução nasal direita e hipoacusia com alguns meses de evolução. Foi solicitada colaboração de otorrinolaringologia que observou lesão neoformativa ulcerada na fossa nasal direita que obliterava a mesma, com ponto de partida no cavum, sem nódulos palpáveis nas cadeias ganglionares cervicais. Foi realizada biópsia e pedidos exames de imagem. A tomografia computorizada (TC) dos seios perinasais demonstrou “opacificação da fossa nasal direita por formação com densidade de tecidos moles, polipoide, que condiciona desmineralização dos cornetos, abaulamento e desmineralização da parede medial do seio maxilar (…) ocupando a coana e a nasofaringe (…) poderá tratar-se de um pólipo inflamatório ou de uma lesão neoformativa, designadamente papiloma invertido (…) estão presentes gânglios de características reativas nas cadeias submandibulares (…) sobressaem extensas áreas líticas na calote e base do crânio bilateralmente (figuras 1 e 2). O processo lítico atinge os elementos ósseos da coluna cervical onde assume padrão multifocal. Estão envolvidas as clavículas bilateralmente”. A RMN dos seios perinasais revelou ´marcado envolvimento da matriz óssea na abobada craniana, na base do crânio, no maciço maxilo-facal e também nas vértebras cervicais, com um aspeto heterogéneo (…) associado a componente de tecidos moles epicraniano, sugerindo infiltrado da medula óssea de muito provável natureza maligna. Confirma-se lesão de aspeto polipoide heterogénea em posição naso-coanal direita (….) a enquadrar com o envolvimento da medula óssea descrito. No estudo do pescoço observa-se conglomerado adenopático das cadeias espinais acessórias´ (figuras 3 e 4). O exame histológico da massa nasal revelou ´retalhos de mucosa respiratória e dermopapilar em cujo córion se identifica população neoplásica de células plasmocíticas”. Posteriormente realizou TC do tórax que evidenciou moderado derrame pleural bilateral e duas áreas de densificação de tecidos moles no mediastino, uma posterior ao esterno de 43x20mm e outra anterior, de 3cm, compatíveis com dois plasmocitomas e osteopenia difusa. O líquido pleural tinha características de exsudado, amicrobiano, negativo para celulas neoplásicas, e a biópsia pleural não revelou alterações. Analiticamente, durante o internamento verificou-se alcalose metabólica e hipercalcemia progressivas com máximos de 1,66 mmol/L de cálcio sérico, ausentes à admissão. Foi realizado estudo complementar dirigido à causa da hipercalcemia e a eletroforese das proteínas séricas revelou pico monoclonal em zona gama, a imunoeletroforese revelou predomínio de IgG/Kappa (IgG 6207mg/dl) e estavam presentes cadeias leves Kappa livres no soro (2050mg/dl; K/L 155) e na urina (24,6mg/dl). Também se observou um aumento da B2-microglobulina (18650 ng/mL) e uma discreta diminuição da albumina sérica (tabela 1). Foi instituído tratamento com fluidoterapia intensiva e diurético, sem efeito. Posteriormente foi administrado pamidronato de sódio, tendo-se verificado diminuição da dor torácica, recuperação do estado neurológico, redução dos níveis de cálcio sérico e melhoria da função renal. À data de alta apresentava resolução da pneumonia, ausência de insuficiência respiratória, sem queixas álgicas, sem alteração do estado de consciência, normalização da função renal e normocalcémia. Mantinha anemia macrocítica (8.4 g/dL). Foi orientado para consulta externa de oncologia onde realizou mielograma e biópsia óssea que revelou a presença de 28.14% de plasmócitos clonais para cadeias kappa das Ig, compatível com MM, e o estudo citogenético e FISH demonstraram amplificação ou rearranjo do gene CCND1 em 56% dos núcleos. Foi efetuada punção lombar que revelou ausência de invasão do sistema nervoso central. Foi estabelecido o dignóstico de Mieloma Múltiplo, discutido em consulta de grupo oncológico e proposto tratamento de indução com Bortezomib+Lenalidomida+Dexametasona, seguido de consolidação com quimoterapia intensiva e auto-transplante de medula óssea, encontrando-se atualmente no 5º ciclo. No decorrer do tratamento apresentou celulite da órbita direita, parésia de uma corda vocal, embora sem lesões tumorais faríngeas, e fractura patológica do cúbito esquerdo em local de aparente área lítica, submetida a tratamento conservador (figura 5). Apresentou ao longo deste período persistência da anemia macrocitica (entre 6-8,6 g/dL) tratada com transfusão de eritrócitos, função renal variável (Cr entre 1,6-3,5 mg/dl) e normocalcémia. Manteve tratamento regular com bifosfonato. Discussão: Apresentamos um caso raro de plasmocitoma extra-medular num homem de 58 anos de idade sem antecedentes relevantes. O nosso estudo foi inicialmente dirigido às causas da hipercalcemia que se manifestou durante o internamento e que condicionou repercussão neurológica, num doente que apresentava à admissão lesão renal aguda e anemia. A anamnese trouxe dados importantes como a existência de duas infeções respiratórias prévias nos seis meses anteriores para além do episódio de pneumonia bilateral com bacteriemia que motivaram o internamento. Todas as situações constituem complicações frequentes em doentes com mieloma múltiplo e são responsáveis por uma elevada morbilidade e mortalidade, condicionadas pelo estado de imunodeficiência promovido pela hipogamaglobulinemia e outros distúrbios imunes.6 Também a presença de dor torácica posterior com vários meses de evolução corresponde a um achado característico da doença. Os exames complementares de diagnóstico permitiram objetivar a presença de lesões ósseas osteolíticas no crânio, vértebras e esqueleto e a suspeita foi corroborada com a presença de diversos biomarcadores, nomeadamente um pico monoclonal de IgG, cadeias leves livres de imunoglobulinas séricas e urinárias e a presença de 28% de plasmócitos clonais na medula óssea. No entanto, novos dados do exame físico que surgiram durante o internamento, especificamente a presença de epistaxis unilateral aliada às queixas de obstrução nasal ipsilateral e a observação de uma massa na fossa nasal direita com extensão posterior, e tendo como suporte os resultados anteriores, levantaram a hipótese de se tratar de um plasmocitoma extra-medular como diagnóstico diferencial de carcinoma de células escamosas, atendendo aos hábitos do doente. Assim, pelos achados descritos, constata-se a presença de critérios de diagnóstico de mieloma múltiplo5, uma forma sistémica da doença que provavelmente disseminou de um plasmocitoma extra-medular. Encontram-se descritas na literatura taxas variáveis de progressão para MM desde 10% em 3 anos5, 30-50% em 2,5 anos2 e 47% a 5 anos.1 Neste caso, o doente apresentava desde há vários meses sinais e sintomas inespecíficos que não foram enquadrados de forma clara numa síndrome clínica, o que condicionou um atraso diagnóstico e terapêutico, impossibilitando o recurso à radioterapia que constitui o tratamento de primeira linha com intuito de controlo local e remissão da doença4, visto tratar-se de um tumor que apresenta alta radiossensibilidade2 e taxas de sucesso superiores a 90%.2,3No entanto, permanece o risco de progressão, principalmente nos doentes que apresentam persistência de proteína M sérica mais de um ano após a radioterapia.1
Figura I

Figura 1 – TC cerebral demonstrando lesões líticas na calote craniana-2
Figura I

Figura 1 – TC cerebral demonstrando lesões líticas na calote craniana-1
Figura II

Figura 2 – TC cerebral demonstrando lesões líticas na base do crânio-1
Figura II

Figura 2 – TC cerebral demonstrando lesões líticas na base do crânio-2
Figura III

Figura 3 - RMN cerebral (Plano Coronal): Plasmocitoma na fossa nasal direita
Figura IV

Figura 4 - RMN cerebral (Plano Axial): Plasmocitoma na fossa nasal direita
Figura V

Figura 5 – TC demonstrando fratura do cúbito esquerdo-1
Figura V

Figura 5 – TC demonstrando fratura do cúbito esquerdo-2
Figura VI

Tabela 1 – Resultados analíticos mais relevantes à admissão, durante o internamento e na alta
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