Introdução:
Em 1937, Shaw e Shaft descreveram numa autópsia o primeiro caso de esplenose, sendo denominada como tal pela primeira vez por Buchbinder, em 1939.1 Trata-se de uma condição adquirida, rara, tendo-se encontrando apenas quatro casos descritos na literatura portuguesa.1-4 Caracteriza-se pela presença de tecido esplénico heterotópico viável resultante de implantação direta ou migração celular intravascular após trauma esplénico ou esplenectomia.5 Surge em 25 a 65% dos doentes após trauma do baço e em 16 a 20% após esplenectomia. Os focos de esplenose são habitualmente detetados incidentalmente, mas, dependendo da localização, podem ser sintomáticos.6 Geralmente, os implantes esplénicos são vários e localizados na cavidade peritoneal, mas podem assumir localizações menos frequentes, nomeadamente intratorácica. A esplenose intra-hepática é rara e de difícil diagnóstico por tomografia computorizada ou ressonância magnética. O estudo imagiológico mostra habitualmente nódulos ou massas arredondadas, únicos ou múltiplos, que podem simular neoplasias.7 A cintigrafia com eritrócitos fragilizados marcados com 99mTc tem elevada sensibilidade e especificidade, sendo o melhor exame para confirmar o diagnóstico.
Caso clínico:
Homem, 55 anos, referenciado a consulta de Medicina Interna por nódulo hepático. Era seguido em consulta de Pneumologia por roncopatia e suspeita de apneia do sono que, no contexto do estudo complementar, realizou tomografia computorizada (TC) do tórax, de alta resolução, que na extensão abdominal revelou formação lobulada com 3 cm na superfície do lobo direito do fígado, incaracterizável por aquele exame. Associadamente, havia outras duas formações na loca esplénica com 4 e 3,6 cm de diâmetro (Fig.1).
À avaliação na consulta de medicina interna, apresentava-se assintomático. Referia história de acidente de bicicleta aos 12 anos de idade com fratura de costelas e traumatismo do baço, tendo sido submetido a esplenectomia. Sem hábitos tabágicos ou consumo de álcool. Trabalhador da indústria metalúrgica desde há mais de 30 anos. Sem outros antecedentes pessoais de relevo. Referia história de linfoma em dois irmãos com diagnóstico em ambos aos 40 anos de idade. Sem outros antecedentes familiares de relevo. Exame objetivo sem alterações. Estudo analítico, incluindo hemograma, estudo de coagulação e bioquímica com avaliação da enzimologia e função hepáticas, normal. Perante a suspeita de esplenose abdominal, realizou cintigrama com eritrócitos fragilizados marcados com 99mTc, que revelou múltiplos focos de acumulação de eritrócitos - pelo menos três em posição posterior ao lobo hepático direito, três na loca esplénica, um no plano axial de L1 à esquerda da linha média e mais três inferiormente a este, dois junto ao lobo hepático esquerdo e três na parede abdominal anterior esquerda, alinhados segundo o mesmo eixo vertical (Fig.2), confirmando assim o diagnóstico de esplenose abdominal.
Discussão:
Tecido esplénico ectópico pode representar um baço acessório ou um foco de esplenose. A existência de baço acessório resulta de uma anomalia congénita que ocorre durante o desenvolvimento embrionário. Por outro lado, a esplenose é uma condição benigna adquirida, resultante de lesão esplénica por traumatismo ou após esplenectomia, surgindo entre 5 meses a 32 anos após lesão ou cirurgia. O número de nódulos varia de 1 a 400, com diâmetro de 2 mm a 7 cm.8 Localizam-se habitualmente no quadrante superior do abdómen, mas podem assumir outras localizações.7 Podem ser identificados na parede peritoneal, no tubo digestivo, no grande omento, no diafragma, no parênquima ou superfície hepática, incluindo no ligamento falciforme.8 A esplenose intra-hepática resulta da migração de células do baço através do sistema porta, parecendo existir uma maior predisposição para o seu desenvolvimento na hepatite viral e na cirrose. Quando na superfície do fígado, encontra-se frequentemente no lobo esquerdo, podendo existir vários nódulos, bem como associação a esplenose extra-hepática, como neste caso.9 Encontra-se também descrita a localização intratorácica, que resulta da migração de tecido esplénico em caso de rutura diafragmática ou através do sistema linfático.10, 11
A esplenose é habitualmente assintomática e o diagnóstico incidental. O tecido esplénico é viável e funcionante, tal como se verifica no caso descrito, no qual não se identificam alterações analíticas como trombocitose, habitualmente presente em doentes esplenectomizados. Imagiologicamente, os nódulos são bem definidos e homogéneos. Na ecografia abdominal são nódulos hipoecogénicos comparativamente ao fígado, e na TC são isodensos, tal como o tecido esplénico saudável, com realce intenso e heterogéneo na fase arterial, homogeneizando na fase portal, após administração de contraste. Na ressonância magnética (RM) são nódulos hipointensos em T1 e hiperintensos em T2.12 Quando a sua localização é intrapancreática deve ser feito diagnóstico diferencial com as neoplasias pancreáticas hipervasculares como os tumores neuroendócrinos, sendo a cintigrafia com análogos da somatostatina ou a tomografia por emissão de positrões (PET) com 68Ga-DOTANOC insuficiente para esta diferenciação.13, 14 O cintigrama com eritrócitos fragilizados marcados com 99mTc é um exame não invasivo, com elevada especificidade na demonstração de tecido esplénico e que confirma o diagnóstico, independentemente da sua localização, tal como demonstra este caso.12 Em casos raros, quer por condicionarem sintomas, quer por dúvidas quanto ao diagnóstico, a biópsia ou a excisão podem estar indicadas.5 Salienta-se que se trata de uma condição benigna e, portanto, de bom prognóstico.5
Descrevemos este caso raro, cujo diagnóstico foi realizado mais de 40 anos após traumatismo abdominal, para realçar que no estudo de nódulos ou massas de novo em doentes com história de cirurgia ou trauma esplénico, a esplenose deve ser considerada no diagnóstico diferencial, evitando-se procedimentos invasivos desnecessários.5
Figura I

Tomografia computorizada. Formação lobulada com 3 cm na superfície do lobo direito do fígado; duas formações na loca esplénica com 4 cm e 3,6cm (setas).
Figura II

Cintigrama com eritrócitos fragilizados marcados com 99mTc. Múltiplos focos de acumulação de eritrócitos fragilizados (alguns assinalados pelas setas).
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