Introdução
A Raoultella planticola é um microorganismo gram-negativo, encapsulado, aeróbio e imóvel, encontrado frequentemente no solo ou em ambientes aquáticos1. Originalmente classificada como pertencente ao género Klebsiella, em 2001 foi reclassificada como Raoultella spp. após sequenciamento do gene 16SRNA e rpoB.1
Constitui uma causa rara de infeção em humanos, totalizando poucas dezenas de casos publicados na literatura desde a sua descoberta,2 com apenas 32 doentes descritos até 2018,3 dos quais 6 casos de infeção do trato urinário (ITU).2,4,5
Normalmente não afeta indivíduos imunocompetentes, estando acrescida a probabilidade de infecção em doentes oncológicos, hemodialisados, transplantados e diabéticos. 6-9 Os doentes institucionalizados são também uma população particularmente vulnerável a ITU, fundamentalmente aquando de algaliação crónica.10
O presente artigo descreve o caso de ITU por Raoultella planticola numa doente institucionalizada.
Caso Clínico
Apresentamos o caso de uma doente de 90 anos de idade, residente em lar e previamente dependente nas atividades da vida diária. Antecedentes pessoais de insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida de etiologia valvular (insuficiência mitral grave) e cronicamente algaliada por episódios recorrentes de retenção urinária.
Recorreu ao Serviço de Urgência por quadro de prostração, dor abdominal ao nível do hipogastro e febre de 38 ºC, com cerca de 24 horas de evolução e agravamento progressivo.
Ao exame objetivo encontrava-se vígil, com discurso incoerente e incapaz de cumprir ordens simples; pele e mucosas descoradas e desidratadas, anictérica e acianótica; eupneica em repouso e ar ambiente; auscultação cardio-pulmonar com sopro holossistólico III/VI audível no foco mitral, sem outras alterações com significado patológico; abdómen mole e depressível, doloroso à palpação profunda do hipogastro mas sem sinais de irritação peritoneal e sinal de Murphy renal positivo à direita. Apresentava uma tensão arterial de 141/77mmHg, frequência cardíaca de 98bpm, frequência respiratória de 19 com e temperatura timpânica de 37,8ºC.
Dos meios complementares de diagnóstico realizados, salienta-se leucocitose à custa de neutrofilia, proteína C reactiva aumentada e discreta citólise, bem como urina II positiva para sangue e leucócitos mas com nitritos negativos
(Tabela 1). A Ecografia renal revelou uretero-hidronefrose à esquerda sem causa obstrutiva identificável e sem alterações na ecoestrutura do rim direito.
Atendendo ao foco infecioso urinário, foram colhidas hemoculturas e urocultura, bem como instituída antibioterapia empírica com ceftriaxone. A doente foi internada ao cuidado da Medicina Interna com o diagnóstico presuntivo de ITU.
Verificada melhoria clinica e analítica progressivas, sendo que ao terceiro dia de internamento a doente apresentava um estado de consciência sobreponível ao seu habitual, apirexia sustentada, diminuição dos parâmetros inflamatórios e das transaminases (provável citólise transitória no contexto da infecção). As hemoculturas foram negativas, contudo a urocultura identificou uma
Raoultella planticola multissensível (sensibilidade a amoxicilina/ácido clavulânico, cefuroxima, trimetropim/sulfametoxazol e fosfomicina). Nesse sentido, foi mantida a antibioterapia inicialmente prescrita, com resolução da situação clínica e alta para domicílio.
Discussão
Apesar da
Raoultella planticola ser principalmente uma bactérica do solo e meios aquáticos, já foi isolada em fluidos e secreções humanas, tais como expectoração, urina e fezes.
2O primeiro caso reportado de infecção por este agente foi de um doente de 69 anos admitido por bacteriémia a
Klebsiella trevisanii (mais tarde reclassificada como
R. planticola), em 1986. Desde então este agente foi associado a poucas dezenas de casos de infeção reportados na literatura, entre os quais sépsis, pancreatite, abcesso retroperitoneal, pneumonia, celulite, fasceíte necrotizante, gastroenterocolite, peritonite, conjuntivite, apendicite, infeção de ferida cirúrgica e ITU.
2,3 Dos 32 casos publicados, 3 doentes faleceram e 22 recuperaram após antibioterapia, sendo que não existe informação adicional acerca dos restantes. Verificada uma taxa de mortalidade superior em doentes imunocomprometidos.
2,3,4Ainda que os mecanismos da patogenicidade deste agente não estejam completamente esclarecidos, sabe-se que não tem predileção por nenhum sistema de órgãos em particular e que, a sua capacidade de converter histidina em histamina por descarboxilase, pode levar a intoxicação escombróide, havendo um caso já publicado.
11Dos 6 casos de ITU descritos, 4 foram atribuídos ao estado de imunossupressão dos doentes, o qual terá permitido a invasão por espécies colonizadoras e dado origem a infeção clinicamente significativa; um caso provocado por equipamento de teste urodinâmico infetado; e um caso associado a consumo de marisco e história de incontinência vesical.
12No presente caso clínico, a par de outros casos conhecidos, os principais fatores de risco para a infeção por
Raoultella planticola, foram o estado de algaliação crónica e a institucionalização.
12 A instrumentação prolongada da via urinária facilita a formação de biofilme que protege os microorganismos da ação do sistema imunitário do hospedeiro, facilitando a sua infecciosidade, enquanto que a residência em instituições de saúde propicia a contaminação cruzada.
12A dificuldade na identificação deste agente é um facto repetidamente reportado, principalmente devido à possibilidade de confusão com o género
Klebsiella através dos métodos tradicionais. Nesse sentido, recomenda-se cultura e identificação por sistema automatizado VITEK-2 (bioMerieux).
2O tratamento antibiótico de ITU causada por este agente consiste em antibiótico com cobertura para gram-negativos, cujo espectro deve ser ajustado após disponibilização dos resultados culturais e informações microbiológicas. Na maioria dos casos, tal como neste, o agente é sensível à generalidade dos antibióticos com cobertura para gram-negativos; contudo já foram isoladas estirpes multirresistentes quer na comunidade como em instituições de saúde.
13-14Conclusão
A Raoultella planticola é uma bactéria incomum na flora portuguesa, afectando principalmente doentes imunocomprometidos e com múltiplas comorbilidades. A ITU por este agente deve ser tratada precocemente com antibioterapia dirigida, estando recomendada a monitorização do padrão de resistências de forma a evitar o desenvolvimento de estirpes resistentes em ambiente hospitalar.
Quadro I
Avaliação Analítica - admissão e alta hospitalar
Análises | Admissão | Alta |
| | |
Hemoglobina | 11 g/L | 12,1 g/L |
Hematócrito | 0,25 L/L | 0,3 L/L |
Volume Globular Médio | 95,5 fL | 95,1 fL |
Hemoglobina Corpuscular Média | 29,8 pg | 29,0 pg |
Leucócitos | 15x10^9/L | 5,2 x10^9/L |
Neutrófilos | 9,7x10^9/L | 2,2 x10^9/L |
INR | 1,3 | |
NT-proBNP | 603 pg/mL | |
Aspartato aminotransferase | 50 UI/L | 32 UI/L |
Alanina aminotransferase | 48 UI/L | 27 UI/L |
Sódio | 137 mmol/L | 140 mmol/L |
Potássio | 4,8 mmol/L | 3,6 mmol/L |
Cloro | 105 mmol/L | 110 mmol/L |
Creatinina | 1,5 mg/dL | 1,1 mg/dL |
Proteína C Reactiva | 170 mg/L | 12 mg/L |
Exame sumário de urina | | |
Densidade | 1,011 | |
Sangue | 2+ | |
pH | 5,0 | |
Proteínas | 1+ | |
Urobilinogénio | 0,2mg/dL | |
Nitritos | Negativo | |
Leucócitos | 54/c | |
Eritrócitos | 2/c | |
Células Epiteliais | Raras | |
| | |
| | |
| | |
BIBLIOGRAFIA
1. Bagley ST, Seidler RJ, Brenner DJ. Klebsiella planticola sp. nov.: a new species of enterobacteriaceae found primarily in nonclinical environments. Curr Microbiol. 1981;6(2):105–109.
2. Mehmood H, Pervin N, Israr Ul Haq M, Kamal KR, Marwat A, Khan M. A Rare Case of Raoultella planticola Urinary Tract Infection in a Patient With Immunoglobulin A Nephropathy. J Investig Med High Impact Case Rep. 2018;6.
3. Fager C, Yurteri-Kaplan L. Urinary tract infection with rare pathogen Raoultella Planticola: A post-operative case and review. Urol Case Rep. 2018;22:76-79
4. Skelton WP 4th, Taylor Z, Hsu J. A rare case of Raoultella planticola urinary tract infection in an immunocompromised patient with multiple myeloma. IDCases. 2017;8:9-11
5. Howell C, Fakhoury J. A case of Raoultella planticola causing a urinary tract infection in a pediatric patient. Transl Pediatr. 2017;6:102-103.
6. Yokota K, Gomi H, Miura Y, Sugano K, Morisawa Y. Cholangitis with septic shock caused by Raoultella planticola. J Med Microbiol. 2012;61(pt 3):446-449.
7. Kim SH, Roh KH, Yoon YK, et al. Necrotizing fasciitis involv- ing the chest and abdominal wall caused by Raoultella planti- cola. BMC Infect Dis. 2012;12:59.
8. Ershadi A, Weiss E, Verduzco E, Chia D, Sadigh M. Emerging pathogen: a case and review of Raoultella planticola. Infection. 2014;42:1043-1046.
9. Kim SW, Kim JE, Hong YA, Ko GJ, Pyo HJ, Kwon YJ. Raoultella planticola peritonitis in a patient on continuous ambulatory peritoneal dialysis. Infection. 2015;43:771-775.
10. Lam PW, Salit IE. Raoultella planticola bacteremia follow- ing consumption of seafood. Can J Infect Dis Med Microbiol. 2014;25:e83-e84.
11. Fager C, Yurteri-Kaplan L. Urinary tract infection with rare pathogen Raoultella Planticola: A post-operative case and review. Urol Case Rep. 2018;22:76-79.
12. Tseng SP, Wang JT, Liang CY, Lee PS, Chen YC, Lu PL. First report of bla(IMP-8) in Raoultella planticola. Antimicrob Agents Chemother. 2014;58:593-595.
13. Castanheira M, Deshpande LM, DiPersio JR, Kang J, Weinstein MP, Jones RN. First descriptions of blaKPC in Raoultella spp. (R. planticola and R. ornithinolytica): report from the SENTRY Antimicrobial Surveillance Program. J Clin Microbiol. 2009;47:4129-4130.
14. Koc S, Kabatas B, Icgen B. Multidrug and heavy metal-resis- tant Raoultella planticola isolated from surface water. Bull Environ Contam Toxicol. 2013;91:177-183.